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A garantia da ordem pública: uma contextualização histórica e política

Verificado que uma das circunstâncias autorizadoras do decreto de prisões preventivas, a evidenciar sua suposta necessidade, é a garantia da ordem pública, passa-se, por fim, ao enfrentamento da temática central, objeto da presente pesquisa para, ao final, estabelecer o nexo pretendido analisando a decretação da prisão preventiva sob o fundamento da manutenção da ordem social.

Para tratar de tal ponto, primeiramente se faz necessária uma análise histórica acerca do conceito de “ordem pública” no transcorrer da história do país. Nesta linha, se tem indissociavelmente uma análise das instituições legitimadas pelo Estado para garantir esta

situação, também denominada de “ordem social”, sendo necessária uma análise paralela de ambos os aspectos para que se compreenda a realidade da decretação da prisão preventiva sob o fundamento da manutenção da ordem pública.

Passando à exposição histórica do tema, de acordo com o texto de Joel Cordeiro Raphael (2015), toma-se como marco inicial o período da Independência do Brasil, em que surgiu a necessidade de organizar e manter o novo Estado, fazendo-se necessária a correlação constitucional entre a defesa nacional e a segurança pública. Neste contexto histórico, almejando-se o fortalecimento nacional enquanto nação recentemente independente, tem-se na Constituição de 1824 (BRASIL, 1824) o primeiro projeto de guarda policial. Aqui, a mesma seria como uma seção do exército, chamado na época de Força Armada Terrestre, tendo como função a manutenção da segurança pública no interior das comarcas. Exemplificando o que fora supracitado, tem-se a redação dos arts. 145, 147 e 148 da Constituição de 1824 (BRASIL, 1824) que dispõem:

Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independência, e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos, ou internos.

[...]

Art. 147. A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legítima.

Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Império.

Remetendo ao contexto consagrado pelo texto constitucional acima exposto, citam-se as palavras de Raphael (2015, p. 30):

Houve, assim, uma radical transformação de personalidade dos membros dela por meio de processos políticos e organizacionais, com o intuito de fazer delas uma Força sólida, robusta e permanente para a defesa da nova nação brasileira.

Em que pese as disposições contidas na redação do texto da Constituição de 1824 (BRASIL, 1824) sejam um dos primeiros documentos exemplificativos da preocupação do Estado com a manutenção da ordem social, seguindo a caminhada histórica do tema, pode-se citar como exemplo alguns dispositivos contidos na Carta Constitucional de 1891 (BRASIL, 1891), carta que inaugurou a República. Observando tais dispositivos, nota-se que estes confirmam a evolução e reafirmam a preocupação permanente da questão da ordem social por parte do Estado. Para exemplificar e melhor compreender este processo evolutivo, cabe analisar a redação do art. 14, da Carta Constitucional de 1891 (BRASIL, 1891) que diz:

Art. 14. As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas a defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais.

Consoante o texto da Carta Constitucional de 1891, Raphael (2015, p. 30) diz que

As forças armadas seriam instituições permanentes não apenas voltadas à defesa da Pátria, mas também voltadas para a manutenção das leis no interior, incumbindo-se de sustentar as instituições constitucionais. É por essa e por outras razões que o contato político entre as Forças e o Parlamento aguçava-se cada vez mais.

Após este período, qual seja, os anos em que perdurou no Brasil a Primeira República, abre-se no país uma nova realidade acerca das forças armadas e do exército. São meados de 1930, período em que o país vive historicamente a fase da Segunda República. Neste contexto histórico, percebe-se que as forças armadas e, principalmente o exército, ganharam especial destaque no centro do poder nacional, adquirindo muito mais solidez que na fase da Primeira República.

Supera-se a fase de preponderância do Estado unitário e cresce a concepção do federalismo no país. Com este fenômeno, os agora estados membros perseguiram o controle sobre o poder de polícia. Não só buscaram como de fato alcançaram tal objetivo, tendo cada Estado membro da federação autorização para institucionalizar sua polícia local.

Ante um novo momento histórico do país, como expõe o texto de Raphael (2015), surge também a necessidade da produção de um novo texto constitucional, mais adequado no sentido de melhor abranger a nova realidade vivenciada pelo país naquela época. Eis que surge a Constituição de 1934 (BRASIL, 1934), segunda Carta da República. Tal texto merece destaque porque distinguiu com mais clareza a função das atividades de polícia do papel das forças armadas se comparado com a norma anterior. Este novo texto solidificou a ideia das polícias estaduais como reserva do Exército quando mobilizadas ou a serviço da União. Exemplificando o que acaba de ser exposto, importante expor a redação dos arts. 5, 162 e 167 da Constituição de 1934 (BRASIL, 1934) que assim dispõe:

Art. 5. Compete privativamente a União:

V - organizar a defesa externa, a polícia e a segurança das fronteiras e as forças armadas;

XI - prover os serviços da polícia marítima e portuária, sem prejuízo dos serviços policiais dos Estados.

Art. 162 - As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei.

Art. 167 - As polícias militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União.

Logo após a Constituição de 1934 (BRASIL, 1934), inicia-se um novo momento no país. Tal momento é marcado pela entrada de Getúlio Vargas no poder, alterando a realidade da época ante a instituição de novas diretrizes políticas. Para relatar brevemente este momento histórico, citam-se as palavras de Raphael (2015, p. 38) que diz:

Com o apoio dos militares, Getúlio Vargas implanta o Estado Novo, ditadura que perdurou até o ano de 1945. Nesse contexto, a polícia já estava consolidada como força reserva do Exército, o que fez com que a outorga do texto constitucional de 1937 praticamente não alterasse os dispositivos constitucionais referentes à defesa nacional ou à segurança pública da Constituição de 1934.

Em que pese não tenham sido realizadas grandes inovações no texto constitucional de 1937, como mencionado, importante atentar que o novo texto trouxe pequenas novidades. Um exemplo de inovação é a atribuição à União da competência de legislar sobre o bem estar, a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Percebe-se a referida inovação ao se observar a redação do art.16 da Constituição de 1937 (BRASIL, 1937) que dispõe:

Art. 16 – Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias:

V – o bem estar, a ordem, a tranquilidade, e a segurança pública, quando o exigir a necessidade de unir regulamentação uniforme;

XXVI – organização, instrução, justiça e garantia das forças policiais dos Estados e sua utilização como reserva do Exército.

Finalizado o período do Estado Novo de Getúlio Vargas, ressurge uma nova fase democrática no Brasil. Em se tratando especificamente de segurança pública, a competência frente às polícias deixou de ser privativa da União, tornando os estados federados responsáveis pela manutenção e pelo exercício das atividades policiais. Esta nova realidade acaba por descentralizar o poder de polícia da União.

Embora tenha ocorrido a referida descentralização, a inserção das Polícias Militares na estrutura do Exército se consolidou no texto da Constituição de 1946 (BRASIL, 1946). Este fenômeno se comprova na redação do texto constitucional que faz uma significativa alteração no que tange as forças estaduais que, embora descentralizadas, passam a figurar como forças

auxiliares do Exército, abandonando a antiga concepção de forças de reserva. Corroborando com tal visão, cabível a citação do art. 183 da Constituição de 1946 (BRASIL, 1946) que diz:

Art. 183 – As polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército.

Parágrafo único – Quando mobilizado a serviço da União em tempo de guerra externa ou civil, o seu pessoal gozará das mesmas vantagens atribuídas ao pessoal do Exército.

Ainda, tratando acerca da Constituição de 1946 (BRASIL. 1946), importante frisar que esse estatuto legal trouxe em seu texto um sentido mais abrangente para o termo segurança. Assim, além de cuidar acerca do tema na esfera do combate ao crime, com as forças armadas e policiais, também se tem um inovador cuidado do tema no âmbito dos direitos fundamentais. Esta modificação ampliou os patamares da proteção constitucional para com a segurança, concedendo a esta relevância não só no controle ao crime, mas também na defesa patrimonial e questões ligadas a saúde, emprego e vida ambiental dos indivíduos.

Em 1964, segundo Raphael (2015), tem início um período de grande turbulência política no Brasil. Foi uma época de instabilidade, gerada principalmente pelo golpe militar que derrubou João Goulart. Além disto, trata-se de uma época onde a indústria, a tecnologia e a urbanização cresciam de forma mais acentuada e, inevitavelmente, fez-se necessária a implantação de um novo modelo de segurança pública, chamada de Grande Reforma Policial.

A aplicação deste novo modelo se deu por decretos e pela Constituição de 1967 (Brasil, 1967), reorganizando as polícias militares. Esta nova concepção policial foi marcada por uma maior concentração do poder e uma orientação vertical. Sinteticamente, toda atividade ostensiva ficou sob a responsabilidade da Polícia Militar, restando a Polícia Civil encarregada das demais atividades, quais sejam de ordem cartorial, burocrática, de investigação e de identificação de autoria de delitos.

Instaurado este momento de mudanças, sua consolidação perdura de 1979 até 1988, ano em que foi promulgada a nova Constituição. Foram anos em que a violência urbana despertou a atenção do Estado, haja vista a situação preocupante que apresentava. Após 1988, já sob o regimento da nova Constituição, observa-se a gradativa exaustão deste modelo

implantado, se tornando evidente a incompatibilidade da agregação de competências pelas polícias militares estaduais frente às novas necessidades da sociedade da época.

Perante o término do regime militar no Brasil, a nova Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) concedeu novamente ao ideário militar a responsabilidade pelo controle e pela supervisão das polícias ostensivas. Este fator fez com que a preparação e a formação dos policiais assumissem contornos com maior semelhança ao das forças armadas, distanciando- se um pouco do preparo para o policiamento urbano.

Ainda sobre este momento, importantes são as palavras de Raphael (2015, p. 48 - 49) que assim discorre:

Apesar de ser atribuído o caráter preventivo às forças policiais ostensivas, certo é que o sistema repressivo acabou ganhando mais notoriedade do que o sistema preventivo. Os objetivos das tropas federais moldados no combate ao inimigo externo ou à agressão estrangeira foram ressignificados, de modo a passar às policias estaduais militares a perspectiva repressiva, em vez da perspectiva preventiva. Isso não significa que elas não terão subsídios repressivos para o controle à criminalidade, mas urge um sistema policial que combata às verdadeiras causas dos fenômenos criminais, e não apenas seus reflexos.

Confirmando o que acaba de ser exposto, merece atenção a redação do art. 42, da Constituição de 1988 (BRASIL. 1988) que diz:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 5° - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6° - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as policias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Nota-se, ante o exposto, que o texto da Carta Constitucional de 1988 não inovou, mantendo o vínculo da segurança urbana essencialmente com as forças armadas. Apesar de tal característica, nota-se que as evoluções decorrentes do mundo globalizado acabam por promover e possibilitar a remodelação das instituições militares estaduais. Esta remodelação faz-se frente às atuais noções de cidadania, de direitos humanos e das próprias técnicas da atividade policial, adequando estas ao novo momento histórico vivido, objetivando desenvolver o caráter preventivo destas instituições.

Em que pese se reconheça esta necessidade de remodelação, tendo esta relevante influência dos princípios norteadores da esfera civil, nota-se que este processo de readequação das instituições choca-se com o teor do texto constitucional vigente. O resultado deste conflito é a criação de um ambiente de incerteza sobre a linha a ser seguida pelas instituições atualmente, permanecendo estas sem uma posição de conduta predefinida, alternando entre a ideologia repressiva e preventiva, de modo a buscar a adequação das instituições a nova realidade social, preventiva, sem fugir da perspectiva expressa na Constituição de 1988, de caráter repressivo.

Seguindo a lógica de Raphael (2015), embora haja esta mescla entre a noção repressiva e preventiva no que tange à atuação das instituições, faz-se necessária a ressalva de que uma vez estando o sistema de segurança disposto no texto constitucional, prepondera o respeito às disposições contidas na Constituição, sobrepondo-se o caráter repressivo. Além disto, em se tratando de matéria disposta constitucionalmente, qualquer tipo de alteração se torna mais difícil, visto que o rito necessário para qualquer modificação no texto desta é muito mais rígido.

Nesse contexto, segundo Raphael (2015), resta evidente que o texto constitucional deve ser considerado de modo coerente com sua relevância ante o restante do ordenamento jurídico vigente, fazendo prevalecer seu teor, obedecendo a hierarquia existente. Apesar disto, refletindo-se criticamente acerca do tema acima tratado, resta visível a necessidade de readequação de alguns preceitos para que melhor atendam às necessidades atuais da sociedade. Nesta linha, uma nova estruturação do sistema via Emenda Constitucional poderia ser proposta como meio de promover alguma atualização da sistemática vigente.

Nesta linha, ordem pública pode ser entendida como a expressão destinada a classificar genericamente a manutenção do estado de organização e de tranqüilidade da sociedade, no sentido de preservação ordeira fática e subjetiva das condições tidas como adequadas do meio social. Assim, a concepção de ordem pública se atrela a noção de valores significante à sociedade, seja na esfera material, legal, ou no âmbito subjetivo, relacionado ao que se considera moralmente adequado pelos indivíduos de determinada estrutura social.

Para fins processuais penais, para compreender a extensão da expressão ordem publica neste contexto adequadas as considerações tecidas por Gomes Filho (1991, p. 67-68) que diz:

À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente

ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de

defesa social; fala-se, então, em "exemplaridade", no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado.

Além do que fora acima citado, importante referir que a perspectiva de ordem pública sempre esteve ligada à questão da segurança pública, carregando consigo a perspectiva de vinculação dos órgãos estatais responsáveis por administrar esta questão. Assim, restou vinculada a esfera da ordem publica a participação ativa do Estado por meio do exército e da polícia, demonstrando um caráter opressivo e repressivo do mesmo, fazendo-se valer por meio da força para manter o estado de ordem social, legitimado por este argumento genérico que, embora previsto em lei, não afeiçoa-se aos ideais do Estado Democrático de Direito vigente, o qual não tolera ações autoritárias e opressivas.

Isto posto, exposta a temática acerca da principiologia das medidas cautelares no sistema processual penal pátrio bem como a questão histórica e evolutiva do termo ordem social em nosso país, cabe, por fim, correlacionar os dois temas de modo a refletir sobre a repercussão dos mesmos no meio social quando aplicados ao processo penal. Vê-se que a aplicação das medidas cautelares encontra substrato nos princípios para sua aplicação, sendo estes balizadores entre a situação fática e a medida mais adequada e cabível ao caso concreto. Por outro lado, atentando-se à questão da ordem pública, nota-se que a mesma, durante todo seu processo evolutivo sempre teve ligação com a ideologia militar, qual seja de ordem, disciplina e controle.

Assim, objetivamente quanto à decretação da prisão preventiva sob o fundamento da manutenção da ordem pública, observa-se que se trata de uma medida cautelar aplicada em meio a duas grandes ideologias, qual seja a das garantias inerentes aos princípios e, em contra partida, a resposta social imediata ante a prática de uma conduta ilícita sob o fundamento da ordem social, carregada de toda sua história ligada aos fundamentos militares.

Isto posto, se tendo uma visão geral acerca da temática da ordem pública e, obviamente, relacionando esta com a perspectiva de sanção ao indivíduo, ao passo que se trata

de uma das hipóteses de fundamentação para decretação da prisão preventiva no sistema penal pátrio enquanto medida cautelar, passa-se, no item a seguir, a correlacionar a realidade de tal modalidade de prisão preventiva no contexto da legislação brasileira. Primeiramente, ao adentrar tal tema, oportuno observar que a aplicação da prisão preventiva deve estar relacionada com a existência do periculum libertatis, tendo na legislação pátria como uma das situações tuteláveis por este a ordem pública.

2.4 A prisão preventiva sob o fundamento da ordem pública a partir da perspectiva da