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3 AMBIENTES LACUSTRES URBANOS: ESPAÇOS PÚBLICOS PATRIMONIAIS

3.4 A Geografia e a dimensão socioespacial do patrimônio

100 Nesta perspectiva, Monnet (1999a) coloca em destaque o papel do sujeito na geografia, denominando-o sujeito

geográfico. O autor fala de uma “geografia do sujeito” que daria conta de compreender como o sujeito individual ou coletivo, se comporta ao interpretar e ordenar o mundo.

101Kozel (2007) destaca a capacidade que os seres humanos têm para representar, atribuir significação e ordenar

o espaço. Para a autora, esta capacidade está ligada à função perceptiva segundo a qual os símbolos são construídos. Por isso, a apreensão do espaço se dá, segundo a autora, “a partir das diferentes perspectivas presentes na visão de mundo de cada sujeito, e a representação, por sua vez permite que os sujeitos se reencontrem com o mundo vivido a partir de sua própria história de vida.” (KOZEL, 2007, p. 120-121).Do mesmo modo, Tuan (1980), coloca que a percepção ocorrer por meio dos sentidos, mas a forma de perceber é fortemente influenciada pela cultura. A cultura se engaja na percepção construindo a visão de mundo e, consequentemente, implicando nas atitudes em relação ao ambiente.

Assim como o espaço público, o patrimônio só recentemente passou a integrar os estudos geográficos (VESCHAMBRE, 2007; NIGRO, 2010). Segundo Veschambre (2007), mesmo constituindo um importante objeto de análise geográfica, dentre todas as ciências sociais, a Geografia foi a que menos contribuiu para a produção do conhecimento patrimonial.

Na escola geográfica francesa (uma das mais fortes referências para a geografia mundial e fonte importante na realização desta pesquisa), a distância entre geografia e patrimônio começa a ser revertida, a partir da década de 1980, de acordo com Veschambre (2007).

Diferentemente do teor das abordagens realizadas pelas demais ciências sociais, (que o referido autor identifica como sendo, predominantemente, de caráter histórico, jurídico, gerencial e economicista), a geografia traz um novo olhar sobre o patrimônio ao se interessar pela sua dimensão socioespacial. Sob esta perspectiva inovadora, Veschambre (2007) pontua as principais linhas de pesquisa sobre os quais a geografia vai edificar seu aporte teórico patrimonial, a saber:

 planejamento territorial, sobretudo na escala urbana com foco no patrimônio material construído, sua reabilitação e seu direcionamento para o desenvolvimento local orientado prioritariamente para a atividade turística. O geógrafo Guy Di Meo (associa patrimônio e território, situando este último como expressão da memória e identidade102) é um dos principais expoentes, e pioneiro na abordagem geográfica do patrimônio103.

 o patrimônio como paisagem e representação do ambiente. Desenvolvidas no âmbito da geografia social e geografia urbana.

 o patrimônio como identidade, revelando a atuação dos atores sociais e os conflitos engendrados por eles em torno da questão patrimonial.

Apesar do destaque alcançado pelo patrimônio no campo geográfico, Veschambre (2007), alerta para o fato da ausência de obras da geografia que sejam tomadas como referências pelas outras ciências sociais e conclui dizendo que, neste caso, a geografia é dependente da produção científica de outras ciências. Isso, certamente não constitui um problema teórico- metodológico grave para a nossa ciência, uma vez que, como defendem Hissa e Gerardi (2001),

102Para melhor compreensão ver, DI MÉO, Guy. Les territoires du quotidien. Paris: L’Harmattan, 1996. 103 Associam-se a Di Méo, as geógrafas Françoise Perón e Maria Gravari-Barbas. Peron trabalha o patrimônio e o

território sob a perspectiva da disputa entre classes sociais colocando em evidência os processos de segregação e exploração na apropriação do patrimônio enquanto Gravari-Barbas se dedica a discutir o patrimônio e o território como ideologia política. Os três geógrafos reconhecem o patrimônio como elemento de coesão social, um “bem

a geografia é uma disciplina de natureza transdisciplinar. Também não se pode olvidar que a geografia participa, de maneira cada vez mais intensa, da produção do conhecimento patrimonial em todos os seus campos de interesse: material ou imaterial.

O próprio Veschambre (2007) tem se dedicado a compreender geograficamente o patrimônio como um constructo social e simbólico imerso em jogos de poder. Sua produção acadêmica (2002; 2005; 2007; 2008), se inscreve notadamente na análise sobre os conflitos nos quais se envolvem os diversos sujeitos sociais em suas disputas pelo acesso e uso do patrimônio. O autor se interessa em demonstrar como a patrimonialização institucional, transforma o contexto social dos lugares e do próprio patrimônio, pois os coloca a serviço da legitimação dos interesses (econômicos e de poder) de determinados grupos sociais economicamente privilegiados.

Isso ajuda a explicar a estratégia política que o patrimônio desempenha e, junto com o marketing urbano justifica o processo de gentrificação do espaço e do próprio patrimônio marcando uma apropriação seletiva da cidade (VESCHAMBRE, 2002), conforme já discutido no capítulo anterior.

O trabalho desenvolvido por Monnet também merece destaque. O autor ancora sua discussão sobre o patrimônio, no tema das crises urbanas em duas relevantes obras (1996 e 2000). Ele traça um panorama a respeito de como “as políticas de proteção do patrimônio assumiram uma importância crescente no aparato legal e social de ação sobre o espaço urbano” (MONNET, 1996, p. 220) e são incorporadas no discurso moderno de crise da cidade.

Da mesma forma que Veschambre, Monnet (1996), descortina as estratégias políticas institucionais destinadas à proteção e conservação do patrimônio histórico do centro da Cidade do México, ao revelar os conflitos gerados pela institucionalização patrimonial na cidade. Monnet reconhece que a patrimonialização é, na verdade, uma poderosa ferramenta de gestão urbana que serve para dar visibilidade a projetos políticos e legitimação de poder, ao que ele denomina “o álibi do patrimônio” (MONNET, 1996; 2000).

Neste contexto, Monnet esclarece que com o discurso da crise das cidades, emerge uma nova representação da cidade e da urbanidade que questiona os malefícios que a modernidade impôs à cidade e às tradições. Assim, o patrimônio passa a ser considerado um testemunho de um tempo em que a cidade estaria na escala humana, uma cidade feliz, onde se respeitava a natureza e as tradições e a vida social pulsava nos espaços públicos. Por essa razão, a proteção patrimonial no âmbito institucional assume um caráter sagrado e, portanto, consensual (MONNET, 1996).

é frequentemente o álibi de uma despolitização das políticas urbanas, de uma desresponsabilização dos responsáveis (eleitos, peritos, técnicos). A proteção do patrimônio é uma empresa de fabricação de um passado ideal, que imobiliza as populações diante das escolhas das autoridades, ou da ausência de decisões, para solucionar os problemas da vida urbana. [...] Na escala de uma sociedade, trata-se de

identificar as alianças de interesses que geram, nas palavras e nos atos, “o discurso dominante”, que serve de matriz para as representações sociais, para a cultura comum

e fornece as justificativas para a ação ou para a inatividade. (MONNET, 1996, p. 220 - 223. Grifos do autor)

Toma-se o exemplo destes dois autores para ilustrar como o foco do debate patrimonial no escopo da geografia tem sido mais direcionado ao processo de patrimonialização institucional e as consequências da apropriação social do patrimônio no campo das tensões sociais e na construção das relações de pertencimento. Por se tratar de uma abordagem que privilegia a espacialidade, o foco, conforme se percebe, tem se concentrado no patrimônio cultural edificado, sobretudo na escala do urbano. Esta parece ser mesmo uma tendência na geografia patrimonial.

Na geografia brasileira não é diferente. De acordo com Nigro (2010), a análise do patrimônio está concentrada no campo da geografia urbana e do turismo. A abordagem patrimonial, portanto, tem se debruçado sobre os conflitos de interesses que se estabelecem entre os diferentes agentes produtores do espaço nos projetos de requalificação e revitalização de áreas centrais urbanas.