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A gera¸ c˜ ao de Sessenta

No documento Leste para Ler (páginas 51-56)

A d´ecada de 1960 foi – e continua, naturalmente, a ser – muito perpe- tuada e discutida pelas transforma¸c˜oes radicais que, em tantos sectores, operou nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, tal como nas antigas col´onias europeias de ´Africa e da ´Asia: da Arg´elia ao Vietname, passando, ´

e claro, por Portugal e pela Guerra Colonial (1961-1974). Contudo, ´e bom lembrar como esta ´epoca constituiu, ainda, um per´ıodo agitado nos espectros pol´ıtico, social e cultural nos pa´ıses do chamado «Pacto de Vars´ovia» – a Primavera de Praga de 1968, na ent˜ao Checoslov´aquia, e o seu fim tr´agico, s˜ao disso o s´ımbolo mais evidente. E `a URSS e, em concreto, `a Ucrˆania, poder-se-ia aplicar a bela frase do escritor portuguˆes Aquilino Ribeiro: «Debaixo da superf´ıcie lisa corriam ´aguas vivas.»9. E em terras ucranianas tamb´em encontramos a «gera¸c˜ao dos anos Sessenta», designada, em ucraniano, como «Shistdesyatnyky», da qual Horska vem a tornar-se um dos elementos predominantes. Este movimento representou uma gera¸c˜ao cujos membros, apesar de virem dos meios rurais – Horska, filha da «nomenklatura» ´e uma grande excep¸c˜ao –, possuem um gosto mais refinado, s˜ao mais livres, mais cultos e cosmopolitas que os seus antecessores. E ´e, sobretudo, uma gera¸c˜ao inconformada com os cˆanones estreitos que lhes continuam a ser impostos, j´a no p´os-Guerra.

https://day.kyiv.ua, 10 de Setembro de 2014.

8Ibidem.

9 Entrevista do escritor ao Di´ario de Lisboa, 2/6/1958; Cit. In David L. Raby, «O

movimento popular», Iva DELGADO, Telmo FARIA, Carlos PACHECO (coord.), Humberto Delgado/ as elei¸c˜oes de 58, Lisboa, Vega, 1998, p. 123.

Um momento seminal: a funda¸c˜ao, em 1962, do clube de cria¸c˜ao juvenil, de cuja organiza¸c˜ao Horska fez parte, juntamente com intelectuais ucra- nianos como o encenador e cineasta Les Taniuk, o pintor Veniamin Kushnir, o cr´ıtico liter´ario e fil´ologo Ivan Dziuba, juntamente com outros intelectuais dessa «gera¸c˜ao de Sessenta» – e que em 1964 o KGB viria a encerrar10. De resto, os confrontos com as autoridades revelam-se cedo. Proibi¸c˜oes de representa¸c˜oes teatrais, censura, vigilˆancia de membros pelo KGB. Seguir-se-iam as deten¸c˜oes e as limita¸c˜oes `a actividade de intelectuais de diferentes ´areas. Ela n˜ao desistiu. Nem Horska nem os restantes membros desta «intelligentsia» ucraniana. As iniciativas art´ısticas liter´arias atr´as definidas s˜ao, tamb´em, um exemplo de militˆancia contra a repress˜ao por detr´as do anunciado «degelo» de Khruchtchev; Alla Horska fez retratos de intelectuais e artistas cuja liga¸c˜ao `a Ucrˆania era o seu denomina- dor comum: desde logo Taras Shevchenko (do qual se falar´a adiante), outros antigos e recentes dissidentes do regime sovi´etico – o escritor B. Antonenko-Davydovych, ou o fil´osofo, e tamb´em escritor Yevhen Sverstiuk. Alguns dos retratados faziam parte dos «Shistdesyatnyky»: o poeta Vasyl Symonenko, Ivan Svitlychny, poeta e cr´ıtico liter´ario, o poeta e argumentista Ivan Drach e o pr´oprio Les Taniuk.

A impar´avel Alla Horska promoveu, ainda, sess˜oes de poesia, desenhou figurinos ou cen´arios para representa¸c˜oes teatrais, em cidades como Lviv ou Odessa, de autores «indesej´aveis» como Mykola Kulish, escritor e dramaturgo (ucraniano, claro) morto em 1937, durante as «purgas» estali- nistas dos anos Trinta. A pr´opria artista empenhou-se em angariar fundos para artistas com maiores necessidades financeiras. Interessava-se pelos muralistas mexicanos (Siqueiros, Orozco, Rivera). Estudou a cultura popu- lar ucraniana. E nessas ra´ızes ter´a encontrado um novo sentido para a vida.

10 Aqui surgem algumas discrepˆancias acerca do nome do grupo: assim, Myroslava

BARCHUK designa-o como «Kloob Tvorchoyi Molodi (KTM)», recuando, at´e, a sua funda¸c˜ao para 1960. V. artigo «The Rebellious Generation of the Shistdesyatnyky», in Welcome to Ukraine: http://www.htd.kiev.ua. Yaroslav KRAVCHENKO mant´em as datas de funda¸c˜ao e extin¸c˜ao do grupo entre 1962 e 1964. V. Alla HORSKA, «May your soul stay forever young. . . »,https://day.kyiv.ua, 10 de Setembro de 2014. Contudo, j´a Dmytrov Yatsyuk chama ao grupo «Shuchasnyk», palavra que traduz por «Contemporˆaneo». V.http s://ucrania-mozambique.blogspot.com/2006/11/alla-gorska-foi-assassinada-h-36-anos.ht ml. O termo «Shuchasnyk», usado para designar o grupo surge, ainda, no artigo de Natalia SHRAMENKO, «A Guelder Rose for Alla Horska» (https://day.kyiv.ua/en/article/culture/g uelder-rose-alla-horska). Tamb´em na p´agina da Galeria Cu3Designhttp://cu3design.com/r bio.php?aid=26pode-se encontrar referˆencia idˆentica.

Ainda muito jovem, numa carta ao pai, a artista sublinha o seu interesse pela l´ıngua e pela literatura ucranianas11. A sua produ¸c˜ao criativa ´e, ela, pr´opria, um reflexo de todo este percurso. Enquanto estudante, pinta obras de ´ındole mais figurativa (qui¸c´a, mais consentˆaneas com o chamado «Realismo Socialista»), apresentando, no princ´ıpio dos anos Cinquenta, cenas campestres.

Fig. 1: A Colheita, 1950. Fonte:wikiart.org

A partir de 1960 o seu trabalho sofre uma total metamorfose: linhas duras, cores muito fortes e contrastantes, pinceladas grossas, grandes superf´ıcies onde predominam tons crus de vermelho, amarelo ou verde, e, com frequˆencia, animais e flores reivindicando a matriz da sua Ucrˆania natal. Desse per´ıodo um estudo para um mosaico, onde aves voam numa orgia solar de p´etalas primaveris, reflecte todo um programa de renasci- mento e de reivindica¸c˜ao do imagin´ario popular.

Em 1964 comemoravam-se os 150 anos do nascimento do pintor, poeta, escritor e humanista Taras Shevchenko – ele pr´oprio fora um dissidente da R´ussia imperial, perseguido pelo czar Nicolau I e ´e, ainda hoje, considera- do o fundador da moderna literatura da Ucrˆania. Alla Horska, em conjunto com Opanas Zalivakha, Lyudmila Semykina, Halina Zubchenko e outros autores, criou um vitral para a universidade de Kiev, intitulado «Shev- chenko. M˜ae». O vitral apresentava a figura imponente do homenageado

11 AVERYANOVA, N., «Artistic Elite of Ukraine: Alla Gorska in the Cohort of the

1960es», in Bulletin, Ukranian Studies, 17/2014, Taras Shevchenko National University of Kyiv (http://ukrbulletin.univ.kiev.ua/Visnyk-17-en/Averyanova.pdf).

Fig. 2: Desenho para mosaico, 1960. Fonte:wikiart.org

como um homem irado, que abra¸cava uma mulher – a pr´opria Ucrˆania – enquanto a sua outra m˜ao erguia um livro. No vitral podia ler-se: Возвел- ичу малих отих рабiв нiмих, а на сторожi коло їх поставлю слово» ou, em alfabeto latino, «Vozvelychu malych otych rabiv nimych, a na storogi kolo yich postavlyu slovo» [Engrandecerei os pequeninos, aqueles servos mudos, e na vigia junto deles eu colocarei uma palavra (tradu¸c˜ao de Dmytrov Yatsyuk e Pavlo Sadokha)]. Considerado impr´oprio do ponto de vista ideol´ogico, o vitral foi destru´ıdo pela pr´opria administra¸c˜ao da univer- sidade e Alla Horska e Lyudmila Semykina seriam expulsas da Uni˜ao de Pintores da Ucrˆania. O que, na pr´atica, significava n˜ao poder exercer o seu of´ıcio na capital desta rep´ublica12.

Foi ent˜ao que Horska come¸cou a trabalhar em murais monumentais, em conjunto com outros artistas, incluindo o marido, Viktor Zaretsky. Para esse tipo de trabalho ela encontrou inspira¸c˜ao quer na heran¸ca cultural que foi beber `a Kiev da vanguarda dos anos Vinte, quer nos muralistas mexicanos. Exemplos desse per´ıodo s˜ao o mural «Prometeus», para a Escola no 5, em Donetsk, da autoria conjunta de Alla Horska, Victor

Zaretsky, Galina Zubchenko, Hennadii Marchenko e Hryorii Synytsia (1965). Ou, ainda, o mural «Flor de Carv˜ao», assinado por Horska e Zaretsky, Borys Plaksii e pelo arquitecto A. Smirnov. Com data de 1968, a obra foi destinada ao complexo fabril de Krasnodonvuhillia, em Krasnodon. Vale a pena referir, ainda, o desenho para um mosaico, com o nome «A Bandeira da Vit´oria». Datado de 1968 ´e um trabalho conjunto de Alla Horska, o seu marido Zaretsky (de novo) e Victor Smirnov. Este, felizmente,

12 Yevhen SVERSTYUK, «Alla Horska a once and future artist», Welcome to Ukraine,

Fig. 3: Desenho para vitral Shevchenko. M˜ae, 1964. Fonte:wikiart.org

est´a a salvo: fez parte de uma exposi¸c˜ao, aberta ao p´ublico no Museu Nacional da Ucrˆania, em Kiev, entre 2015 e 2016, dedicada, precisamente, `

a gera¸c˜ao de Sessenta.

Fig. 4: Desenho para o mural Bandeira da Vit´oria. Alla Horska, Victor Zaretsy e Victor Smirnov. Fonte:wikiart.org

Contraditoriamente, no per´ıodo p´os-sovi´etico esta obra da artista corre perigo, pois, em 2015, o governo da Ucrˆania aprovou a controversa lei de

«des-comuniza¸c˜ao», a qual, como todas as leis deste tipo, levanta quest˜oes pol´emicas entre a mem´oria hist´orica, o patrim´onio e o passado pol´ıtico de um pa´ıs. Segundo um levantamento realizado pelo fot´ografo Yevgen Nikiforov, v´arios murais j´a n˜ao se encontram «in situ»13. Ironia cruel: durante a existˆencia da URSS muito do trabalho de Horska e dos restantes «Shistdesyatnyky» foi censurado, banido, destru´ıdo pelas for¸cas pol´ıticas que temeram a dissidˆencia. Contudo, no pouco espa¸co de liberdade que tiveram para trabalhar, artistas como Horska ter˜ao sido associados, apres- sadamente, ao regime que os ocultou.

No documento Leste para Ler (páginas 51-56)