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Considera¸ c˜ oes finais

No documento Leste para Ler (páginas 121-127)

A incurs˜ao pela escrita de Vera Broido coloca-nos algumas interroga- ¸c˜oes. Quando levantamos a ponta do v´eu, encontramos, aparentemente, uma mulher que vive em Inglaterra, casa e tem um filho. Quando a encon- tramos quase ficamos com a sensa¸c˜ao de quem existem duas mulheres, Vera Broido e Vera Broido Cohn – a esposa de um inglˆes que se fixou em Dublin e leva uma vida de historiadora, de par com a filha de uma ativista pol´ıtica russa, neta de uma Sara nascida na Lituˆania, que viveu exilada com a m˜ae na Sib´eria, que viveu exilada com a fam´ılia (as irm˜as do primeiro casamento da m˜ae) e os filhos do segundo casamento.

O que nos surge na escrita s˜ao mem´orias. Casada em 1941, ano em que vir´a d´ecadas mais tarde, a descobrir que a m˜ae foi condenada por um tribunal militar e foi executada, em 1967, Vera Broido edita a escrita da m˜ae – Memoirs of a Revolutionary.

Foram precisos mais dez anos para que Vera Broido volte a publicar, desta feita, as suas pr´oprias mem´orias. Recorda¸c˜oes que s˜ao o testemunho de uma crian¸ca que viveu tempos conturbados, assistiu ao ativismo pol´ıtico. Tal como muitas outras, ensinada a silenciar o que via e sabia, e tal como nos d´a testemunho, preferia estar na pris˜ao com a m˜ae do que entregue a outra pessoa, ainda que por vezes, essa outra pessoa tenha sido a av´o e tenha estado a viver em Vilnius.

A escrita de Vera Broido recorda-nos que as crian¸cas s˜ao agentes do ativismo pol´ıtico e foram, ontem como hoje, v´ıtimas e participantes das transforma¸c˜oes pol´ıticas, do terrorismo, da guerra, dos atentados, das persegui¸c˜oes pol´ıticas. Contudo, s˜ao sujeitos que n˜ao tiveram escolha e, para a hist´oria, ficaram muitas vezes, como vimos acima, sob o signo de filhos de uma maternidade supostamente ausente ou secund´aria, ou ainda interpretadas como raz˜ao para as suas m˜aes abandonarem a militˆancia tanto quanto como raz˜ao para as suas m˜aes se fixarem `a militˆancia. Nos estudos que encontr´amos, n˜ao raro, foram as crian¸cas e a maternidade apontadas nos dois sentidos: motivo de fortalecimento entre camaradas, motivo de abandono da luta pol´ıtica ativa.

Ontem, como hoje, encontraremos, certamente, Veras que s˜ao fruto de amores proibidos, encontraremos, talvez, mulheres que se radicalizam mais pelo afeto que as une a algum homem, como encontraremos mulheres que se pretendem afastar do radicalismo com vista a preservar a vida dos filhos. Ler Vera Broido, ler os textos produzidos por estudos focalizados nas mulheres militantes do per´ıodo revolucion´ario russo, transporta-nos para um universo que, quem poder´a assegurar, n˜ao ´e muito diverso do nosso, por mais que tenhamos abandonado a modernidade e as grandes narrativas e nos encontremos em tempos fragmentados da hipermodernidade.

Ao marcar encontro com Vera Broido e, atrav´es dela, com Eva Broido, vamos ao encontro de quest˜oes que parecem transversais `a hist´oria da humanidade: as mulheres reconduzidas `a esfera privada, `a domesticidade, afastadas dos estudos, do conhecimento; as mulheres ocupando-se do cuidar dos outros, do velar pela seguran¸ca dos outros ao mesmo tempo que o fazem a coberto do mesmo lugar comum: a mulher ´e inocente, ou como demos testemunho acima reportando a opini˜ao reconhecida como sendo de Lenin, inaptas para a clandestinidade por terem a tendˆencia a falar de mais.

Confessamos que, aqui chegados, e olhando para o caminho percorrido, encontramos a mesma mulher sempre. Como defendeu Virginia Woolf, encontramos ainda a mulher numa sociedade patriarcal, incapaz de dizer e escrever (dir´ıamos ser) no feminino da palavra. Por isso os seus textos s˜ao mem´orias. Escrever as suas mem´orias ´e tentar romper a ordem patriarcal que as reconhecia aptas a imprimir e transportar literatura ilegal, mas incapazes de a produzirem. Resta-lhes as mem´orias. Conforme se fez notar antes, as mem´orias, e isso se confirma nas mem´orias de Eva Broido, s˜ao despidas de aspetos familiares. Resta a pergunta para a qual n˜ao conseguimos resposta: fazem-no para se firmarem no espa¸co p´ublico, in- tencionalmente afastando-se da esfera privada? Fazem-no para preservar os filhos e fam´ılia? N˜ao estamos em crer que encontremos aqui as respos- tas. As mem´orias de Eva foram publicadas pela filha em 1967, ironia triste sem saber que a m˜ae j´a tinha sido fuzilada, as mem´orias ocultam a vida familiar, mas essa permaneceu viva na vida da filha – Vera Broido d´a disso mesmo testemunho em Daughter of the Revolution: A Russian Girlhood Remembered (1999).

Visitar Vera Broido ´e mais do que revisitar os tempos da revolu¸c˜ao russa, ´e confirmar que as mulheres continuam ainda a lutar pelo reconhe- cimento do seu pleno direito. Deixando a escrita de Vera Broido, quando

vamos ao seu encontro, tomamos conhecimento de uma esposa, m˜ae de filhos, conformada e confirmada na sua qualidade de mulher no espa¸co privado. A sua escrita quase parece, mais do que mem´orias, um sonho que n˜ao se queria ter sonhado, que independe de n´os e, contudo, ´e-nos, ontem como hoje: de leste a oeste, mulheres enquanto feminino do homem, seja a leste seja a oeste.

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No documento Leste para Ler (páginas 121-127)