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2.3 C ONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

3.2.3 A GOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negação do dualismo em Agostinho consiste na afirmação de que sua doutrina preza pela supremacia da psique. Para exemplificar melhor tal proposta, vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho:

O homem, diz ele, pelo menos tal como se apresenta a si mesmo, é ―uma alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal‖, ou, como o mesmo Agostinho escreve em outro passo, é ―uma alma racional que tem um corpo‖. No entanto, vê-se bem que o filósofo cristão sente que dificuldade se esconde sob essas fórmulas, porque acrescenta logo em seguida que a alma racional e o corpo que ela tem não fazem duas pessoas distintas, mas um só homem. Sua intenção de salvaguardar a unidade do homem não é duvidosa, portanto, mas pode ele fazê-lo com seus princípios? Vê-se bem que não pode, pelo fato de que a definição agostiniana da alma é idêntica à definição agostiniana do homem. Santo Agostinho nos diz que o homem não é nem uma alma à parte, nem um corpo à parte, mas uma alma que se serve de um corpo. Quando, por outro lado, lhe pedimos para definir a alma em si mesma, ele responde que ela é uma ―substância racional apta a governar o corpo‖. O homem, portanto, nada mais é finalmente, que sua alma ou, se preferirem, a alma mesma é que é o homem.169

168 Cf. trin. X x 16 em qv. p. 58 e p 59.

169 GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. por Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto, Gilson aponta para a fragilidade de uma possível leitura dualista no pensamento de Agostinho. Ademais, através de seu comentário, podemos entrever que, se, por um lado o pensamento Agostinho é distante do dualismo, por outro é bastante próximo de uma doutrina monista e, em específico, de um monismo idealista. De um modo sintético, uma teoria monista sustenta que existe apenas uma categoria de princípios responsável por causar algum determinado efeito. Neste caso, um monismo idealista é aquele que pressupõe que o ser humano, em última instância, é a sua psique. A hipótese de uma leitura monista de Agostinho retira sua força do fato de que, em Agostinho, a psique é responsável por toda e qualquer atividade que venha a ser desempenhada pelo ser humano.

A primeira e quiçá a mais evidente atividade desempenhada pela psique é a de vivificar o corpo ao qual ela está ligada, conforme Agostinho:

É certo que, no livro citado sobre os deuses deletos, o próprio Varrão declara haver três graus de alma em toda a natureza e na natureza universal. O primeiro, que circula por todas as partes do corpo que vive e não tem sentido, mas apenas força para viver [...]170

A segunda atividade da psique está em perceber o mundo sensível através dos sentidos do corpo. Esta operação, apesar de não tão evidente, é executada somente pela psique, de modo que o corpo por si só não é capaz de compreender aquilo que sofre:

Se o corpo sofre mudança, ninguém ignora que é um fato corporal. Entretanto não o sentimos diretamente a cada instante, nem a alma o ignora. Nós o sabemos. O corpo se modifica e a alma sabe disso.171

A terceira atividade, em conexão com a segunda, é a da compreensão intelectual e racional do mundo. É a psique que nos permite compreender o mundo, criar juízos, desenvolver raciocínios e oferecer a possibilidade de aplicá-los, criando, assim, um conhecimento perene, ao qual Agostinho não hesita chamar de ciência:

170 ciu. VII xxiii 1. Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura: unum, quod omnes partes corporis, quae uiuunt, transit et non habet sensum. Trad. por Oscar Paes Leme.

171 an. quant. XIV 46. Quod si mutatio ista, passio corporis est, quod nemo negat, nec nunc sentitur a nobis, nec

Admito a existência dessa faculdade, seja ela qual for, e sem hesitação denomino-a sentido interior. Pois, a não ser ultrapassando esse mesmo sentido interior, o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderá chegar a ser objeto de ciência. Porque tudo o que nós sabemos, só entendemos pela razão.172

A última atividade desempenhada pela psique é teleológica, consistindo no conhecimento de Deus, o bem último ao qual o homem deve aspirar. Conforme afirma Agostinho no De Trinitate:

Essa trindade da alma não é a imagem de Deus simplesmente pelo fato de: lembra-se de si, entender-se e amar-se a si mesma, mas sim porque pode também recordar entender e amar a seu Criador. Quando assim age, torna-se sábia. E se assim não age, ainda mesmo que se recorde, se conheça e se ame, é uma ignorante. Portanto, que ela se lembre de seu Deus, à cuja imagem foi criada, compreenda-o e ame-o.173

Com efeito, (i) a vivificação do corpo, (ii) a percepção sensível do mundo através dos sentidos do corpo, (iii) a compreensão intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe nele, e, por fim, (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indícios que nos permitem pensar na hipótese de uma leitura monista de Agostinho. Ora, se a psique é responsável por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser humano, por que não considerar que o homem possa ser resumido somente à sua psique na concepção agostiniana? Para nós, uma resposta positiva para tal pergunta é deveras problemática e, a seguir, diremos a razão.