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2.3 C ONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

3.2.4 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM A GOSTINHO

O problema da aceitação de uma doutrina monista no pensamento de Agostinho apresentou-se ao próprio Gilson que, ao interpretar a filosofia de Agostinho, pressupôs a negativa do filósofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a perspectiva de uma supremacia da psique:

172 lib. arb. II iii IX. Agnosco istuc quidquid est, et eum interiorem sensum appellare non dubito. Sed nisi et

istum transeat, quod ad nos refertur a sensibus corporis, peruenire ad scientiam non potest. Quidquid enim scimus, id ratione comprehensum tenemus. Trad. por Nair Assis de Oliveira.

173 trin. XIV xii 15. Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago, quia sui meminit mens, et intellegit

ac diligit se: sed quia potest etiam meminisse, et intellegere, et amare a quo facta est. Quod cum facit, sapiens ipsa fit. Si autem non facit, etiam cum sui meminit, seque intellegit ac diligit, stulta est. Meminerit itaque Dei sui, ad cuius imaginem facta est, eumque intellegat atque diligat. Trad. por Agustinho Belmonte.

Sem dúvida, santo Agostinho não estaria inteiramente desarmado contra esse reparo. Ele responderia talvez que uma alma só é alma se tem um corpo que possa usar, e que um corpo só é corpo se está a serviço de uma alma, caso em que, de fato, a definição da alma sozinha é equivalente a do homem por inteiro.174

Ainda que o comentário de Gilson procure reforçar ainda mais a perspectiva monista, o comentador aventa uma possível resposta de Agostinho, e deixa em evidencia o grande entrave para uma interpretação monista de seu pensamento, a saber, a existência do corpo. Ao imaginar a resposta agostiniana, Gilson coloca em evicência o corpo, de modo que uma psique só é uma psique, a partir do momento em que ela está ligada ao corpo.

Ora, com efeito, é impossível negar a presença do corpo na filosofia de Agostinho, visto que ele é parte constituinte de nosso ser. Deste modo, aquele que nega ou até mesmo ignora o papel do corpo na relação ―psique-corpo‖ comete o grande equívoco de interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente. O homem não deve, portanto, ser resumido somente à sua psique ou vida mental.

Poder-se-ia até tentar objetar contra o fato de que o homem não se restringe a sua psique, e, para justificar o argumento, poder-se-ia citar os quatro pontos outrora destacados, a saber: (i) a vivificação do corpo, (ii) a percepção sensível do mundo através dos sentidos do corpo, (iii) a compreensão intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe nele e o (iv) o conhecimento de Deus. Todos estes quatro pontos são entendidos como atividades ou operações capitais, as quais somente a psique pode realizar. Sem dúvida, a premissa de que somente a psique pode realizar tais operações é correta. No entanto, o argumento torna-se frágil quando se compreende que a psique só pode desempenhar tais funções quando ligada ao corpo. Ou seja, sem o corpo, ela estaria inapta a desempenhar qualquer uma das quatro atividades supracitadas.

A fim de justificar nosso argumento, dizemos que: (i) a anima, para Agostinho, é uma substância com uma potência vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce seu poder, a saber, o corpo. Com efeito, a psique é uma substância que vivifica o corpo, de modo que, sem um corpo para dar vida, esta operação não poderia existir; (ii), não se pode ignorar o fato de que é o corpo quem sofre as mudanças, e de que ele é o responsável por transmitir toda e qualquer informação sensível à anima. Assim, o corpo e, consequentemente, seus sentidos, executam a função de intermediários no processo de apreensão e assimilação de uma informação sensorial. A atividade (iii) apresenta uma relação intrínseca com a atividade

174 GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. por Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

(ii), de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento, visto que a produção de conhecimento/ciência é um efeito da atividade de colher, organizar e dar sentido aos dados sensíveis, de modo que a ausência do corpo e, consequentemente, dos sentidos, inviabilizaria a aquisição de dados para a criação de conhecimento. A atividade de número (iv) é deveras peculiar, já que é bem verdade que o corpo e os seus sentidos não exercem influência direta no conhecimento de Deus, pois não é possível conhecer Deus por intermédio de qualquer sensação. Porém, este aspecto sui generis, permite-nos inferir que Deus não é corpo, e, por não ser corpo, em nada se assemelha a ele. Com efeito, o conhecimento de nossa dimensão corporal é fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal característica. No que diz respeito ao assunto, Agostinho afirma:

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tínheis uma figura de carne humana e que éreis contornado pelos traços corporais de nossos membros. Porém, o principal e quase único motivo do meu erro inevitável era, quando desejava pensar no meu Deus, não poder formar uma ideia dele, se não lhe atribuísse um corpo, visto parecer-me impossível que houvesse alguma coisa que não fosse material.175

Feitas estas considerações, podemos considerar bastante temerária a ideia de atribuir a Agostinho um monismo idealista. De forma similar, consideramos também temerária a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista – em especial – de substâncias. Ao negarmos o dualismo e, em seguida, o monismo, pudemos notar que existe apenas uma constante nas duas argumentações: a interação entre o corpo e a psique. A possibilidade do dualismo inexiste, pois corpo e psique são compreendidos de modo análogo e unívoco; ao mesmo tempo, a possibilidade do monismo idealista também inexiste, pois o corpo e a psique são compreendidos de modo sinérgico. Portanto, não devemos compreender as relações entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho, mas sim de modo coeso. De posse deste conhecimento, iniciaremos o subcapítulo final desta dissertação.

175 conf. V x XIX. multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari. Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem, cogitare nisi moles corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam, quod tale non esset) ea maxima et prope sola causa erat ineuitabilis erroris mei. Trad. por J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.