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A Granja na Ordem Cisterciense e a Exploração Hidráulica

3.1 A Arquitetura Cisterciense

3.1.1 Princípios Gerais na Arquitetura Cisterciense

3.1.1.3 A Granja na Ordem Cisterciense e a Exploração Hidráulica

Como se referiu anteriormente, a Ordem Cisterciense criava de certo modo uma cidade idealizada através não só dos seus hábitos de meditação, como também dos espaços que desenvolviam arquitetonicamente.

Esta noção afeta também o plano da paisagística, uma vez que, das paisagem bravias e selvagens advinha sempre uma domesticação que resultava da exploração agrícola das terras envolventes ao mosteiro. Constituía-se assim aquilo que os monges cistercienses chamavam de “granja da casa”66.

66

Cfr. Kinder, Terryl Nancy; Cistercian Europe: Architecture of Contemplation; Eerdmans Pub. Co.; 129 England 2002.

Esta será analisada sinteticamente neste tópico, com vista a entender-lhe melhor a organização, o impacto sobre a paisagem e sobre a arquitetura, uma vez que implicava-se sempre a construção de novos espaços e a transformação radical da terra, baseados na premissa do ora et labora.

A “granja da casa” é um elemento que em si advém de grandes mudanças no território, facto que se alia ao forte controlo da hídrica para dar lugar a uma paisagem tipicamente cisterciense (figura 15, 16 e 17):

“Due to their Geographical extent and length of production processes involved forest are important objects of study in historical geography (…) landscape development occurring in areas determined by forest production.”67

Assim no auge do domínio da Ordem, a exploração de quintas levaria à construção nas proximidades do mosteiro de toda uma rede de infraestruturas que permitiriam a exploração e fabrico de recursos, o que implicava estruturas como Celeiros, Forjas, Padarias, cervejarias, hortas, pomares e jardins medicinais; e mais tarde com a introdução de uma dieta menos vegetariana, de estábulos e pastagens para animais, criando uma série de edificações relacionadas de modo intimo e orgânico, seguindo premissas essencialmente de funcionalidade.

Além de toda esta infraestrutura agrícola acrescente-se ainda a Hospedaria e a Portaria, ambas equipadas adequadamente, incluindo muitas vezes as latrinas.

67

In Stiles, Richard; Herlin, Ingrid; Bell Simon; Exploring the Boundaries of Landscape Architecture; Routledge Pubishing; England, 2012; p.158.

Assim no auge do domínio da Ordem, a exploração de quintas levaria à construção nas proximidades do mosteiro de toda uma rede de infraestruturas que permitiriam a exploração e fabrico de recursos, o que implicava estruturas como Celeiros, Forjas, Padarias, cervejarias, hortas, pomares e jardins medicinais; e mais tarde com a introdução de uma dieta menos vegetariana, de estábulos e pastagens para animais. Além de toda esta infraestrutura agrícola acrescente-se ainda a Hospedaria e a Portaria, ambas equipadas adequadamente, incluindo muitas vezes as latrinas. A introdução de animais e sua exploração na pastorícia e como recurso para uso de força mecânica no campo da agricultura advém também de uma característica de cultivo própria cisterciense: dado muitos dos seus domínios serem solo difíceis, introduziram maior número de adubo animal, na tentativa de otimizar a produção, que se veio a verificar ser uma medida adequada e que permitiria diversificar a produção, além de pomares e cereais introduziram o cultivo de vinhas:

“Whatever increase in cereal production on Cister granges, resulted from the improvements on technique, it is clear that the introduction of larger number of animals per cultivated acre increased soil fertility.”68

Com tal eficácia e tão abrangente área de cultivo e duro trabalho, pode-se logo visualizar que a paisagem bravia iria dar lugar a uma outra: a paisagem agrícola, pelo que o mosteiro

68

In Berman, Constance Hoffman; Medieval Agriculture, the Southern French Countryside and the

Earlier Cistercians; American Philosofical Society; USA, 1986; vol. 76, parte 5, p.91. Figura 16- Comporta de Alimentação para

moinho de Água em Abadía Cisterciense de Fontenay.

Figura 15- Decima para baixo: Pastorícia em Sylvanès e Cultivo em Valmagne, exemplos da transformação paisagística dada pela “Granja Mãe” à Paisagem.

cisterciense assume-se como um elemento transformador da paisagem, dedicado a explorar as vastas terras que lhe pertenciam (o mosteiro assume a determinado ponto uma estrutura feudal) e com uma presença cada vez maior de pequenos quartos de habitação, ocupados por elementos fora da comunidade monástica, fora da cerca monástica, seguindo o critério do acaso, sem métrica ou rigor arquitetónico e dos quais pouco resta, e das que ficaram muito poucas permaneceram inalteradas. Esta seria uma das razões pelo que mais tarde se acentuaria ainda mais a proximidade da população ao mosteiro: a tendência seria ocorrer uma gradual instalação de pessoas próximas da fonte de maior número de infraestruturas, bem como do senhor das terras que exploravam. Este exemplo verifica-se também no contexto português, como se pode confirmar pela própria população do Mosteiro de Alcobaça, mas também em Valado dos Frades, um antigo couto do mesmo mosteiro.69 Note-se ainda que em alguns casos, os coutos monásticos viriam inclusive a definir concelhos.70 Por outro lado, a referida vocação agrícola somada a um vasto domínio facilitado pelo feudalismo e favor real e da Igreja viriam a marcar também um outro aspeto de alteração da paisagem, nomeadamente o agrupamento de grandes lotes de terreno, vocacionados para determinada exploração de cultivo ou pastorícia, que rentabilizava a exploração destes recursos face a pequena exploração agrícola de alguns lotes de menor dimensão próximos aos domínios monásticos. Além do tamanho e da qualidade de exploração, viria a surgir uma hierarquia de ordem, uma linha de comando que possibilitava maior detalhe a cada couto monástico: o mosteiro ocupar- se-ia das terras que lhe pertencessem e que não ficassem a mais de um dia de caminho, as quais eram trabalhadas por monges, e finalmente, já num período de auge da Ordem outras propriedades, mais distantes, eram trabalhadas pelos conversos.

Estas propriedades, que inicialmente destinavam-se apenas ao cultivo, tinham poucos equipamentos dignos de nota, em regra celeiros destinados a armazenagem, eventualmente algum outro edifício, de moagem ou associado ao cultivo, e um pequeno oratório, podendo ser exceção se a mesma crescesse rapidamente em dimensões (sobretudo no século XIII com a aceitação de rendas e doações) aparecendo então igrejas mais complexas ermidas e pequenas réplicas do mosteiro-mãe, com dormitório, refeitório e inclusive hospedagem, incentivando, à semelhança do mosteiro, ao florescimento de povoações.71

Paralelamente, e não menos importante, no âmbito de transformar a terra, mas também de desenvolver o mosteiro e seu quotidiano com salubridade, os cistercienses foram também responsáveis pelo desenvolvimento de uma técnica de exploração hidráulica notável. A mesma será de seguida estudada, embora sinteticamente.

69

Cfr. Martins, Ana Maria Tavares; As Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade das suas

reabilitações e a inserção no território; Departamento de Historia, Teoría y composición arquitectónicas

de la universidad de Sevilha, Espanha; Vol. 1, p. 228.

70 Cfr. Marques, Maria Alegria Fernandes; Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal; Edições Colibri;

Coimbra, 1998

71 Cfr. Martins, Ana Maria Tavares; As Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade das suas reabilitações e a inserção no território; Departamento de Historia, Teoría y composición arquitectónicas

Note-se que a água de acordo com os preceitos da Ordem não seria apenas um recurso, era simultaneamente um elemento litúrgico, doméstico e industrial. Doméstico na medida em que facultava usos para elementos de saneamento e higiene pessoal (latrinas e lavabos por exemplo) bem como de uso quotidiano; industrial pois é também certo que parte da intervenção na paisagem que foi referida anteriormente passa pelo desvio de cursos de água ou encanamento destes no âmbito da exploração agrícola, para irrigações, drenagens ou na produção de energia mecânica para fins de labuta, consoante testemunha os vestígios dos muitos moinhos construídos nas propriedades monásticas; e litúrgico na medida em que era uma fonte de auxílio à meditação e a contemplação, possuindo noções de profundidade únicas, motivo que talvez explique o seu uso em cerimónias religiosas, como a lavagem dos pés, o mandatum semanal ou abluções. Este carácter por sinal viria a ser notado e estipulado na regra de São Bento, onde se referenciava que todas as necessidades associadas a este recurso se encontrassem saciadas pelo menos dentro da cerca.

“A presença da água nos mosteiros da Ordem de Cister era obrigatória, primeiro que tudo, pelo seu simbolismo batismal e purificador, mas a sua função prática também nunca foi posta de parte, pois a água era um elemento indispensável à vida monástica. De tal modo, que os monges desenvolveram em grande medida os conhecimentos de hidráulica, tornando-se mestres (também) nesta arte.”72

Assim, dentro da temática arquitetónica, a água revelar-se-ia fundamental, motivo que levou à exploração desta de modo até então inédito, desenvolvendo para o efeito dois modos de exploração, podendo referenciar-se estes sobre as categorias de “sistema externo” e “sistema interno”. Em qualquer caso, a hidráulica do mosteiro implicava sempre o recurso a duas fases, o abastecimento e o escoamento de águas residuais, motivo pelo qual se crê que o mesmo seria efetuado primeiramente pelo abastecimento de zonas essenciais, como cozinha e Fontes, para depois dar lugar ao abastecimento das latrinas, abaixo dos dormitórios, e escoando posteriormente para fora do mosteiro. A sua circulação, essencialmente ocorria com o auxílio da gravidade, mantendo uma simplicidade e eficiências dignas de um sistema na altura inovador73. Esta inovação, muitas vezes de conhecimento público na Idade Média, levaria inclusive ao auxílio do estabelecimento de instalações hidráulicas, pela Ordem de Cister, a casas monásticas de outras Ordens.74

72

In Cunha, João Alves; A multidisciplinaridade da arquitectura cisterciense: pistas para o estudo e

salvaguarda da sua autenticidade; Universidade Católica Portuguesa ISBN 0076-1508; Lisboa, 2005; p.451

73 Cfr. Martins, Ana Maria Tavares; As Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade das suas reabilitações e a inserção no território;; Departamento de Historia, Teoría y composición

arquitectónicas de la universidad de Sevilha, Espanha; Vol. 1, p. 228.

74

Cf. Kerr, Julie; Burton, Janet; Cistercians in Middle Ages; The Boydell Press; Inglaterra, 2011; pp. 69- 70.

Primordialmente o sistema externo, ou seja, o desvio de cursos de agua para canais abertos construídos para o efeito, abasteceria de água todo o mosteiro. Contudo, com o desenvolver dos conhecimentos da ordem sobre a hidráulica, viria a ser utilizado este, especialmente para a exploração agrícola: para pôr a trabalhar moinhos de água e irrigar campos por exemplo, mas também no âmbito de transmitir paz aos monges.

“Quando acaba o pomar começa o jardim, dividido em muitos canteiros cortados por pequenos canais, onde a água parece parada, mas flui lentamente. A água preenche duas funções: alimentação de peixes e irrigação da horta (…) a água em canais é um conforto para os irmãos”75

O sistema interno passa pelo encanamento da água através de túneis subterrâneos, que abasteciam o mosteiro nas suas necessidades de uso quotidiano e litúrgico. O mesmo seria na altura bastante sofisticado, baseando-se no uso da pressão de água como elemento auxiliar ao emergir desta, encanada a partir de uma fonte elevada; possibilitando a implantação de abadias em locais anteriormente considerados inaptos para tal acontecimento: locais com fontes de pequena dimensão, com mais facilidade de exploração hídrica através do acumular da chuva ou inclusive em terrenos pantanosos.

Podemos neste âmbito dar alguns exemplos, seja a nível Europeu, seja a nível nacional: em Yorkshire, Inglaterra a Abadia de Fountains desviou, aquando a sua construção, o leito do rio Skell cerca de 2,40 m, de modo a alimentar o sistema hidráulico das latrinas; no Mosteiro de São Bento de Cástris, em Évora, foi encanada água de uma fonte próxima com o mesmo intuito, criando um canal derivado que abastecia o mosteiro regularmente. Estes canais poderiam inclusivé ser alvo de nivelamentos através de sistemas mecânicos, de que se pode exemplificar a Abadia de Pelplin, na Polónia ou mesmo em solo nacional o caso da Abadia de Santa Maria de Alcobaça.

Outro facto digno de ser referido é que em casos extremos, a Ordem de Cister desenvolveu a purificação de água, em sistemas similares inclusivamente ao que se verifica nos tempos contemporâneos: em Braunschweig a construção da Abadia de Walkenried implicou a construção complementar de tanques de pedra onde a água era filtrada com areia e gravilha.76

Muitas destas estruturas infelizmente perderam-se com o passar dos séculos, fruto do desprezo atribuído a estes complexos sistemas hidráulicos, motivo pelo qual pouco resta efetivamente dos mesmos. Um exemplo destes incidentes negativos ocorre precisamente em

75

In Cunha, João Alves; A multidisciplinaridade da arquitectura cisterciense: pistas para o estudo e

salvaguarda da sua autenticidade; Universidade Católica Portuguesa ISBN 0076-1508; Lisboa, 2005; p.

453 76

Cfr. Kinder, Terryl Nancy; Cistercian Europe: Architecture of Contemplation; Eerdmans Pub. Co.; 129 England 2002

Alcobaça, onde a construção da Estrada Nacional 329 levaria à destruição de parte do sistema hidráulico do mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Autores como João Cunha, cientes da orgânica que estas estruturas possuem com o mosteiro, que não se limita apenas ao edificado principal, deviam urgentemente ser alvo de estudo, levantamento arqueológico e recuperação.