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A Guerra — A Ética Internacional

No documento A Grande Síntese Pietro Ubaldi (páginas 129-132)

Entendemos a evolução do fenômeno guerra como momento da evolução da força para a justiça, por meio do direito, como fase de ascensão coletiva. Disse-vos mais atrás que, num mundo que se arma todo contra si mesmo, só existe uma defesa extrema: o abandono de todas as armas. Essa frase pode parecer um absurdo e é mister explicá-la. Expus, então, o grau mais

elevado, do qual o homem se aproxima por graduais passagens. Mas o esforço precisa ser total a fim de alcançá-lo, como nos caminhos da evolução individual, introduzindo na vida dos povos o máximo de disciplina suportável. Infelizmente, nas coletividades mais involuídas, o uso da força pode constituir uma necessidade, especialmente de defesa, a fim de impedir a explosão do mal. Nos primeiros níveis, as civilizações não podem erguer-se, senão cercadas por uma barreira de violência que as proteja da própria violência e uma defesa ampla e previdente pode implicar também em uma ofensiva. Hoje, porém, o mundo possui vários focos acesos de civilização e a zona de barbarismo influi sempre menos, e menos ainda se justifica um regime de violência. Assim como no progresso que vai da força à justiça, no direito interno, também as forças da vida trazem um progresso da guerra para a paz: disciplina de forças e coordenação de energias, atuantes no direito internacional. Assim a evolução produz, mesmo neste caso particular da força, um progressivo cerco contra a guerra, tendendo a eliminá-la. Os absolutismos pacifistas, idealizados e isolados, hoje são utopia como realização, embora já lhe brilhe o ideal das aspirações humanas; eles constituem objetivo e tendência, e tanto se luta para consegui-lo.

Hoje, os armamentos são uma dura necessidade, mas teste-munham, com demasiada evidência, o estado selvagem do homem atual. Tendo em vista a fase atual de inconsciência coletiva da humanidade, esse mal é necessário. As armas não podem ser depostas, porque constituem indispensável condição de vida, enquanto a arma do vizinho está erguida e pronta a golpear, guiada por uma psicologia de estreito egoísmo. É necessário aos povos se conhecerem para que — como acontece com os indivíduos na formação do direito privado — os círculos das liberdades individuais aprendam a tocar-se e respeitar-se, a fim de coexistirem e aderirem na unidade coletiva da humanidade; e aprendam a ceder aos direitos alheios, a fim de ser concedido lugar aos próprios, num estado de consciência coletiva superior. Um verdadeiro e próprio direito internacional não existe hoje e as relações entre nações ainda se encontram em estado caótico.

Também aqui o equilíbrio tende a estabelecer-se pela lei do menor esforço; não um pacifismo inerte e teórico, mas uma ordem internacional que representará tão grande vantagem social que, logo que a consciência coletiva conseguir compreendê-la, po-la-á em prática. Hoje, a humanidade vive numa fase de transição, em que se compreende a utilidade da paz, mas ainda não se sabe superar a necessidade da guerra. Entre essas duas leis oscila, e prevalece uma ou outra, de acordo com a maior ou menor força moral de que disponha. Entretanto, surgirão sólidos institutos jurídicos internacionais, hoje utópicos, que garantirão a vida e o trabalho dos indivíduos coletivos, os Estados, da mesma forma que as instituições privadas disciplinarão a garantia do ser individual. Em cada forma jurídica, a zona de justiça conquistada e da força que deve ser superada serão mais ou menos amplas, de conformidade com o grau de evolução atingido, e constantemente se deslocarão, exprimindo seu nível na própria forma. Todavia, a força dos armamentos, mesmo subsistindo como necessidade e preparação contra eventuais conflitos, tem de sofrer uma limitação contínua que lhe discipline o emprego. Só pode haver, no entanto, uma razão para existir: a de constituir defesa da justiça. O primeiro dique que se ergue é a grande responsabilidade moral de um estado que provoca uma guerra sem necessidade que a justifique. Dessa necessidade tem de prestar contas ao mundo que o observa. Eis um primeiro rudimento de autorização jurídica: o sentido da responsabilidade e o peso das consequências recaem sobre quem tem o poder de lançar a infernal máquina da guerra. Até há pouco tempo, os homens se matavam diariamente, como fato normal. Mas, como é mais difícil hoje movimentar a máquina dos exércitos, que se tornou complexa e gigantesca, em proporção às grandes unidades estatais! As armas permanecem, mas seu uso torna-se tão mais disciplinado e excepcional que, muitas vezes, sobrevivem somente como símbolo decorativo. A guerra requer cada vez menos ferocidade e mais inteligência, afastando-se do instinto sanguinário do selvagem. A disciplina é uma conquista biológica que eleva o homem, do estado original de anárquica rebelião contra tudo e contra todos, para um estado de coordenação de esforços e de organização de trabalho.

Assim se introduz o elemento justiça, que limita o elemento força, reduzindo esta cada vez mais a uma fase de transição, realizando a libertação gradual do mal, tornando-a meio de evolução e construção do bem. Cada vez mais se sente a necessidade de refrear a expressão da força por meio de um conceito mais elevado, com uma alma mais nobre que lhe proporcione uma justificação; vê-se sempre mais a necessidade moral e racional de tornar o uso da força aderente a um princípio de justiça, porque se percebe que é justamente nesse imponderável que reside seu poder maior, o equilíbrio mais íntimo e mais alto, que domina e governa os equilíbrios mais externos e mais baixos da força material. Por isso, esta procura, espontaneamente, sua única justificação, que só pode ser um fim pacífico.

Como a dor e o mal contêm em si os impulsos para uma auto-eliminação, assim a guerra existe para engolir a si mesma. O progressivo caráter mortífero dos meios bélicos, preparado pelo progresso científico, toná-los-á sempre mais desastrosos; seu maior poder destrutivo destruirá a guerra, porque a crescente sensibilidade humana e a consciência mais profunda sentirão cada vez mais horror e medo. Os organismos sociais obedecem sempre menos aos impulsos irrefletidos do momento e a ordem futura se prepara, com visão distante e a longo prazo. Também existe a Lei que intervém, impondo como reação a dor, para cada violação. Coage assim o homem inapelavelmente para a via da justiça: “Quem usar a espada morrerá pela espada”. Acima da força dos exércitos, transparece cada vez mais evidente a outra, mais sutil dessa Vontade suprema, que leva à ordem e, assim, esmaga o mais forte. Há uma força mais alta à qual a outra obedece. Quando os exércitos mais aguerridos se precipitam, aparece a mão de Deus e as forças da vida se insurgem para dominar o rebelde. A história também está regulada por esses equilíbrios mais profundos, que se erguem e se impõem, força mais forte que todas as forças humanas. De nada vale o poder material se estiver maculado na base por essa fraqueza substancial; o arbítrio humano do mal é cerceado pela Lei dentro dos limites inexoráveis do bem. Mesmo na fase atual, para obter seu rendimento, a força tem de harmonizar-se com esses impulsos maiores de justiça; sua justificação só pode dar resultados estáveis como reconstrução da ordem.

Como observais, não falo de formas nem de métodos, vou sempre à raiz dos fenômenos. Falo de maturação de forças biológicas. Não enfrento os homens, mas as leis que os movimentam, penetro nas causas, não nos efeitos. Concomitantemente, levo em conta a natureza humana como é atualmente e a lei que impera nesse nível. Se a guerra existe no mundo, ela corresponde ao instinto da maioria, porque esta é a forma atual da seleção biológica, porquanto corresponde a funções automáticas de equilíbrios demográficos. O homem normal é feito para a guerra (seleção); a mulher, para a maternidade (conservação). Enquanto vos moverdes neste ciclo e a guerra persistir na alma egoísta do mundo, as relações internacionais se basearão na força e será

necessário a quantidade como meio de vida e de grandeza. Mas lembrai-vos de que a quantidade jamais poderá criar a qualidade; o valor supremo do homem não consiste em abandonar-se irresponsavelmente à função animal de procriar, mas reside em enfrentar consciente e responsável a função moral de educar. Não sendo assim, a quantidade degrada a raça. Será possível sempre o mesmo círculo vicioso: aumentar o número para guerrear e depois destruir-se? Será possível que as duas grandes forças da virilidade e da maternidade fiquem sempre fechadas num ciclo de autodestruição?

Ao contrário, esse ciclo abre-se por ascensões progressivas, para sublimação desses instintos. Num nível mais alto, o homem é feito para o trabalho, para a criação material e espiritual, para o domínio sobre a natureza e sobre si mesmo; a mulher é feita para o sacrifício e a formação de almas, esta é a meta substancial.

Se em vosso nível humano a guerra é meio proporcional à vossa baixa forma de evolução e sua abolição é utópica, essa guerra, ainda que hoje um mal necessário, só pode ser aceita como mal transitório, meio que leva a um bem mais elevado, como holocausto do presente bárbaro que se enfraquece pelo atrito, apenas para a construção de um futuro mais radioso. Para mostrar um conteúdo de justiça à guerra não basta uma superprodução populacional concentrada em uma parte do globo terrestre. Isto é apenas choque de forças demográficas. É preciso dar à guerra um conteúdo ideal de civilização; tornar suportável esse mal, por sua transformação em instrumento de bem. Assim a guerra se nobilita com heroísmos, anima-se pela espiritualidade, idealiza-se pelos martírios. Elevada a guerra a esse nível, a ferocidade do sangue derramado transforma-se em apoteose de sacrifício. Porque então já não mais se luta pelo heroísmo ou pelo saque, mas por uma fé que paira no alto. A guerra então atinge sua mais alta meta de formação da alma coletiva: torna-se imolação de si mesma no altar da pátria e é denominada santa.

O homem pensa mandar e, no entanto, obedece sempre, constrangido pelo instinto, à vontade da Lei. Instituições, leis, todas as manifestações sociais não são substância, são forma, são a veste exterior de forças biológicas. Os verdadeiros responsáveis, mais ou menos iludidos ou guiados, são os povos, com justiça carregam o peso da própria involução. Os chefes apenas transmitem um comando que não seria compreendido nem obedecido, se não correspondesse a uma ordem mais profunda que domina a todos. Eles são escolhidos e elevados a seus postos só enquanto sentem os instintos da coletividade, exprimem-os e a eles obedecem. Os grandes caudilhos foram meramente expoentes que personificavam a verdade do momento e executavam essa função coletiva, porque a Lei não abandona jamais os destinos dos povos ao arbítrio de um homem. Não confundais a forma com a substância, habituai-vos a vê-la nos fenômenos históricos; em cada manifestação, pesquisai sempre a ação sutil e substancial dos impulsos biológicos, que fazem de povos e de chefes um organismo único, dirigido para metas idênticas.

Entretanto, à proporção que a evolução ergue o homem para cada vez mais longe de suas origens animais, também se eleva a forma da luta. Aos três tipos de homens que estudamos, correspondem os três métodos de combater, que lembram os três níveis da substância: γγ, , ββ, , αα. Assim temos: luta material, ou seja, supremacia brutal do mais forte, embora ilícita e injusta. Luta nervosa e volitiva, supremacia do poder da vontade, dos meios mecânicos, econômicos, mesmo que isto não constitua convicção nem vontade. Luta espiritual, em que o dinamismo físico-muscular, como o volitivo-nervoso, é superado por uma supremacia espiritual e conceptual, propriedade do super-homem. Sua luta é fundamentada na justiça e mobiliza o dinamismo das forças cósmicas. Neste sentido ele é o mais poderoso, embora humanamente inerme. Lembrai-vos, porém, que no alto o arbítrio se anula e a desordem é recalcada para baixo. Ah! Se soubésseis quanta harmonia reina nos planos mais elevados!

Sei muito bem que o homem de hoje só se eleva até o segundo tipo de luta, sendo arriscado pedir-lhe antecipações imaturas e precipitadas do futuro. Existe uma lei de estabilidade no desenvolvimento do que é novo, e é mister ajudá-la. Para abandonar o velho, precisa antes ter criado o novo. Depor os instintos de luta, mesmo na forma mais baixa, pode significar para os povos de hoje fraqueza e decadência. É necessário antes ensinar-lhes a superar a atual fase evolutiva e a conquistar instintos mais altos: como sempre, é preciso transformar o homem antes dos sistemas, a substância antes da forma, começando por alcançar a consciência da responsabilidade, que implica o uso da força. O progresso não reside na renúncia à força — que pode ser fraqueza de impotentes — mas no domínio da força, que constitui consciência dos poderosos.

Deduz-se de tudo isso o quanto é impraticável, apesar das afirmativas dos idealismos teóricos, um programa imediato de paz universal, se antes não se souber determinar as condições biológicas necessárias à sua manutenção. A paz universal será obtida, mas pensai de que edifício imenso ela representa a construção. Para atingir a conquista mais elevada, é indispensável amadurecer antes todas as que a condicionam. Só então essa paz não será utopia, porque o mundo e sua alma estarão transformados e maduros. Os atuais idealismos pacifistas, que exprimem a grande aspiração e indicam o caminho, são, biológicamente, conceitos recém-nascidos, menos solidificados nos instintos; os equilíbrios estão menos estabilizados e, portanto, prestes a cair ao primeiro choque. Todas as construções ideais, mesmo codificadas, estão expostas a esse perigo de degradação que, à primeira sacudidela, reconduz os novos equilíbrios, por demais delicados, a estabilidades mais baixas e mais simples, porém mais resistentes. Sempre pronto a ressurgir logo que desabe a superestrutura, está o substrato biológico das necessidades animais, para onde retrocede o equilíbrio muito arriscado, a fim de garantir a vida.

A escada da ascensão não se sobe senão degrau por degrau, solidificando antes as bases. Não são fáceis vôos pindáricos nem ressonâncias retóricas, para que a paz não seja utopia, mas um trabalho de aproximação, áspero, tenaz e prático. Têm que amadurecer antes as condições biológicas e psíquicas. Já é muito ter visto e compreendido pela primeira vez na história do mundo, o absurdo lógico, moral e utilitário da guerra. Esse absurdo torna-se cada vez mais evidente e repará-lo é mais urgente. Concomitantemente, a mortalidade progressiva pelos armamentos e crescente peso econômico despertarão o interesse coletivo, que se rebelará a tantos gastos. O mundo aterrorizado pela possibilidade de destruições incalculáveis, armar-se-á concordemente apenas contra quem queira perturbar a ordem, arriscando a destruição da civilização. Então a força sobreviverá somente como instrumento de justiça, não mais de desordem, mas de ordem.

Esse mesmo reconhecimento de direitos e deveres, a que se chegou nas relações entre cidadãos, terá de ser alcançado, também, nas relações entre povos. O direito internacional está em seus alicerces. Por que seriam lícitos o homicídio e o furto, na guerra, quando dentro do país é proibido pelas leis? Isto demonstra que as relações entre povos ainda esperam um direito que as discipline, pois ainda estão no estado caótico da violência, na fase sub-legal; a ética internacional apenas nasceu. Este “eu” maior coletivo, que é a consciência nacional, ainda se encontra na fase embrionária; tem de conquistar sua moral, que venha a exprimir a

lei das coordenações nacionais. Nascidos há pouco, os organismos estatais, apenas formados, ainda não sabem reordenar-se como células componentes do organismo mais amplo: a humanidade. Como o indivíduo no estado de bárbaro, as nações têm apenas a força, não a lei, para defender suas vidas. As nações são indivíduos isolados que, no máximo, buscam reagrupar-se em alianças, a fim de formar maiorias protetoras e equilíbrios de forças. Os povos vivem fora da lei e fora da ética; o trabalho de gerações futuras será de criá-las.

Com o progresso, as forças da ordem unir-se-ão contra as forças da desordem; os povos rebeldes serão cercados e isolados, tal como dentro do país se cerca e isola o delinquente, como perigo social. Nascerá nova ética internacional, mediante o choque de tantas guerras; a dor e o sangue, através de aperfeiçoamentos contínuos, ensinarão a gerá-la. Pois, esta é a finalidade da luta e seu único resultado duradouro: a evolução dos conceitos diretores e a conquista de uma consciência coletiva mundial. Se já custou tanto esforço e tanta dor a construção do instinto da convivência social entre indivíduos, quanto maior esforço e dor não custará a construção desse instinto muito mais complexo, de convivência internacional? Por isso, cada guerra não acontecerá em vão; os povos se chocam para conhecer-se e compreender-se; agridem-se, porque dos choques alternados entre vencedores e vencidos, aprenderão a reconhecer de toda parte o direito que tem qualquer povo à vida; viver e não sobreviver apenas, não dominar nem oprimir, mas coordenando-se na unidade maior para a qual sobem: a humanidade.

O instinto das massas transformar-se-á em dinamismos igualmente virís, porém mais elevados; em produtividades mais benéficas e morais. Outras batalhas incruentas aguardam o homem: coalizões pela defesa das conquistas do espírito, contra quaisquer atentados de degradação da estrutura social; outras lutas, não de armas nem de povos, serão as do amanhã: lutas de idéias, a guerra santa do trabalho, a virilidade do dever, o esforço da construção de consciências. O grande inimigo será o desconhecido: as forças da natureza, os baixos instintos que têm de ser superados; o grande trabalho será a direção das leis da vida e a ascensão humana. Somente então, emergindo do desembaraço da desordem, o homem conquistará nova potencialidade na ordem. Aí os mais fortes, os melhores, serão os mais justos. Da soma de tantos impulsos produtivos, emergirão povos supremamente fortes e vitoriosos.

No documento A Grande Síntese Pietro Ubaldi (páginas 129-132)