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2. AS CIDADES NA FRONTEIRA: Da delimitação a atualidade

2.2. A Guerra do Contestado – Paraná/Santa Catarina

As disputas que marcaram as trigêmeas, não se esgotam com a discussão anterior, pois além dos conflitos entre Brasil e Argentina, concomitantemente ainda se tem as divergências quanto aos limites territoriais internos, ou seja, brasileiros, que num primeiro momento se deu entre os estados de São Paulo e Santa Catarina, e a partir de 1853, entre o Paraná e Santa Catarina, e a soma desses diversos acontecimentos, culminaram numa violenta e sangrenta luta pela terra, a Guerra do Contestado (1912 a 1916).

A área contestada era definida pelos seguintes limites, conforme o Relatório dos Trabalhos Executados pela Commissão de Limites Paraná - Santa Catharina, de 1923, escrito pelo Marechal A. de Albuquerque Souza. “A zona contestada, numa extensão de 58.000 Kilometros quadrados approximadamente, era limitada ao Norte pelo rio Iguassú e seu afluente Negro; ao Sul pelos rios Uruguay e Maromba; a Leste por este ultimo rio e a Serra do Mar; a Oéste pela fronteira Brasil-Argentina” (Souza, 1923, p. 6)

A Guerra do Contestado é que efetivamente definiu os limites dos estados do Paraná e Santa Catarina, segundo Galeano (1986), uma das maiores guerras civis do continente americano, pois o genocídio de milhares de camponeses pobres foi sua principal marca.

Fraga (2005, p. 228) afirma que a Guerra do Contestado é um episódio complexo, pois é alimentado por vários fatores que se entrelaçam, sejam de ordem social, política, econômica, cultural ou religiosa.

As desavenças envolvendo os estados do Paraná e Santa Catarina, acerca do seu território, conforme descrito no capítulo anterior, tem início no tratado de Tordesilhas, permanecendo após o Tratado de Madrid (1750) e tendo fim somente em 1916.

Além de terras havia em jogo grandes florestas de madeiras nobres e imensos ervais nativos, que produziam erva-mate. Santa Catarina já havia ganhado três disputas judiciais no Supremo, sem nunca ver cumprida suas determinações.

Um dos fatores foi a construção de uma ferrovia na região, que cortava o interior catarinense e paranaense, pois havia a necessidade de preenchê-lo para garantir a integração entre o Brasil do Sul e o Brasil do Centro-Leste. Outro motivo era o de fixar imigrantes nas terras devolutas dos campos do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, e nos sertões do Paraná e de São Paulo. Outro objetivo era ligar econômica e geograficamente a região Sul do país (SACHET, 1997)

A construção da estrada de ferro teve início em 1887, quando João Teixeira Soares projetou a estrada com 1.403 quilômetros de extensão, entre Itararé (SP) a Santa Maria (RS), visando ligar as províncias de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul pelo interior, possibilitando a conexão da então Capital Federal (Rio de Janeiro) e regiões fronteiriças do Brasil com a Argentina e o Uruguai.

Após alguns anos o empreendedor norte-americano Percival Farquhar fundou a Brazil Railway, empresa que tomou posse do controle acionário da Companhia

Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, assumindo a concessão das obras do trecho em terras do meio-oeste catarinense, contratando aproximadamente 8.000 trabalhadores em todo o Brasil e no exterior também, que trabalharam em todo o traçado de 372 Km, margeando o Rio do Peixe. Farquhar conseguiu uma inédita forma de pagamento, recebia em dinheiro e 15 quilômetros de cada lado da ferrovia, e para garantir a posse, possuía uma força armada particular de 200 homens (FERNANDES, 2009, p. 123-124).

Com o objetivo de rapidamente colonizar as terras que havia obtido em pagamento pela construção dessa estrada de ferro, a Brazil Railway, em 1911, tratou de colocar para fora de seus domínios todas as pessoas que ocupavam as terras sem títulos de propriedade. Tal iniciativa, bem como a própria concessão feita à companhia, contrariava a chamada Lei de Terras de 1850. Mas o governo do Paraná reconheceu os direitos da empresa, o que não foi de estranhar, pois Affonso Camargo, vice-presidente do Estado, era advogado da Brazil Railway (THOMÉ, 2003).

Queiroz explica como foi o processo de construção da estrada de ferro:

A estrada obtivera do governo federal uma concessão de terras equivalentes a uma superfície de quinze quilômetros para cada lado do eixo, ou igual ao produto da extensão quilométrica da estrada multiplicada por 18. A área total assim obtida deveria ser escolhida e demarcada, sem levar em conta sesmarias nem posses, dentro de uma zona de trinta quilômetros, ou seja, quinze para cada lado. Não só por isto, mas também pela subversão quilométrica, o traçado se desdobrava em exagerada sinuosidade. Desse modo, a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande ziguezagueava para todos os pontos cardeais, a furtar-se de pequenas obras de arte. A princípio foram empregados quatro mil trabalhadores; porém, com a marcha dos trabalhos, o seu número atingiu cerca de oito mil. Eram contratados principalmente no Rio e em Pernambuco. (...) Esses antigos trabalhadores, misturando-se à população do Contestado, constituíram o fermento de graves acontecimentos posteriores (QUEIROZ, 1981)

O poderoso sindicato Farquhar já havia construido a ferrovia Madeira-Mamoré e operava serviços de infra-estrutura como portos, energia elétrica, transportes e comunicações de Porto Alegre a Belém do Pará. A estrada de Ferro foi solenemente inaugurada em 17 de dezembro de 1910. A grandiosa epopéia que contou com um número expressivo de trabalhadores, os quais, devido a inexistência de maquinaria na época, usaram as mãos, pés, picaretas, enxadas, dinamites e carrinhos-de-mão para erguer a sinuosa linha.

Logo em seguida, com o intuito de explorar as terras obtidas às margens da estrada de ferro, a Brazil Railway criou, em 1911, uma nova companhia a ela subordinada: a Southern Brazil Lumber and Colonization Company (ASSUMPÇÃO, 1917/1918, citado por FRAGA, 2005). A Brazil Railway construiu, também, a estrada de ferro entre União da Vitória (PR) e São Francisco do Sul (SC), para descer a Serra Dona Francisca e exportar a madeira beneficiada pela Lumber. Para atender às conveniências do Paraná, por caminho mais longo, as tábuas seguiam também pelo porto de Paranaguá.

A grande madeireira e colonizadora, em Três Barras/SC, foi inaugurada com um investimento inicial de 100 mil dólares, logo ampliado para 12 milhões de dólares, representando o maior empreendimento no Sul do Brasil. A cidade recebia pessoas do mundo inteiro. A Lumber, segunda maior madeireira da América promoveu uma devastação ecológica inédita na região que possuía uma reserva de 2 milhões de pinheiros (araucária angustifólia), sem contar imbúia, cedros e outras madeiras nobres.

A madeireira dispunha de mão de obra predominantemente estrangeira e serrava cerca de 300 metros cúbicos por dia através de sistemas totalmente automatizados. A Lumber conseguiu que o governo construísse um ramal gigante, ligando a madeireira ao litoral – a estrada de ferro Porto União – São Francisco – por onde exportava madeira e erva-mate, uma visão geral da madeireira pode ser vista na figura 5.

Figura 5 - Vista Geral da Madeireira.

Fontes: Claro Jasson, década de 1910 (FRAGA, 2005).

Poucos moradores e fazendeiros possuíam documentação das terras que moravam e exploravam, a situação começou a mudar com o início da República, quando “coronéis” legalizaram grandes extensões de terras em seus nomes, e com a chegada da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, que ganhou 15 quilômetros de cada lado da ferrovia para explorar madeira e erva-mate, muitos moradores foram terras recebidas dentro da faixa que acompanha a Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, e decidiu expulsar aqueles posseiros que, há dezenas de anos, viviam na terra que lhes servia de morada e sustento. Ao terminar a construção da estrada, Percival Farquhar teve pressa em encher os vagões de carga com a madeira serrada dos pinheirais, para levá-las ao porto de São Francisco.

Para expulsar e desalojar os posseiros e os pequenos proprietários, a Lumber organizou uma força paramilitar, mais ágil que a Justiça brasileira (AFONSO, 1994)

A Lumber operou por 40 anos até que fosse literalmente abandonada pelos norte-americanos e sua área incorporada ao Exército Brasileiro, não deixando um único exemplar das espécies nativas encontradas nas áreas onde atuou.

Os expulsos do Vale do Rio do Peixe pela Lumber, os sem trabalho da Estrada de Ferro, bem como os desagregados dos campos de Lages e de Curitibanos começaram a formar uma “perigosa trindade que vai ferver as águas do rio, consumir pinheirais e reduzir a pó fazendas e fazendeiros” (SACHET, 1997).

Esses fatores foram aliados ao misticismo dos caboclos, à estratificação social e sistemas de vida da época, ao messianismo e à índole guerreira dos sertanejos.

Com toda essa complexa junção de fatores, sentimentos e interesses, eclodiu coincidentemente em tempo e espaço, esse conflito alimentado por motivações sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais.

A região do Contestado foi largamente percorrida por dois monges de 1845 a 1908 e um terceiro na década de 1910. O primeiro se chamava João Maria D´Agostini e tinha origem italiana, curava e não fazia ajuntamento de pessoas, batizou milhares de moradores do Sul do Brasil, sumiu por volta de 1890.

Em seguida surge outro chamado João Maria de Jesus, nome adotado por Anastás Marcaf que era de origem turca, este também percorria o sertão benzendo, curando e batizando o povo e não juntava pessoas, mas atacava a república, desapareceu por volta de 1908.

Surge então o terceiro monge, o qual vai aglutinar o povo do sertão do Contestado, e por fim, levá-los a guerra, chamava-se José Maria, e seu verdadeiro nome era Miguel Lucena, e dizia ser irmão de João Maria. Benzia, curava, batizava e reunia gente ao seu redor, lendo regularmente o livro do Rei Carlos Magno e seus Doze Pares de França – com seus ensinamentos de guerra, atacava duramente as autoridades e a República (FERNANDES, 2009, p. 125).

Ameaçado pelos coronéis da região do Contestado, o Monge e um grupo de sertanejos, deslocaram-se para o Irani, em terras que o Paraná considerava suas, onde foi o palco do primeiro combate da guerra. Em 22 de outubro de 1912, tropas militares paranaenses, comandadas pelo capitão João Gualberto atacam o Monge José Maria e seu grupo, no combate morrem o capitão e o Monge.

Figura 6 - Monge João Maria, solitário.

Fonte: Acervo fotográfico de Fraga, N. C, 2009.

Foram várias as causas do conflito armado, pois na mesma época e no mesmo lugar, ocorreu um movimento messiânico de grandes proporções, uma disputa pela posse de terras, uma competição econômica pela exploração de riquezas naturais, e uma questão de limites interestaduais (FRAGA, 2005, p. 244).

Simultânea e coincidentemente, o Contestado reuniu, no mesmo tempo e no mesmo espaço geográfico, mais de 30 mil pessoas – habitantes da região na época –, desde fazendeiros, em defesa de suas propriedades, até posseiros tentando se manter em terras devolutas, “fanatizados” por promessas messiânicas, e oportunistas, que viam no movimento ocasião para exercerem pressões políticas acerca dos limites disputados entre Santa Catarina e o Paraná. Por isso, é dito que nem todos os sertanejos catarinenses eram rebeldes, nem todos os rebeldes eram fanáticos, e nem todos os fanáticos eram jagunços (THOMÉ, 1997).

Os camponeses de Santa Catarina e do Paraná formavam o bravo “Exército Encantado de São João Maria”, unindo sob a cruz verde da bandeira branca da libertação quase 10 mil pessoas armadas – homens, velhos, crianças e mulheres – no qual se divisavam criadores, peões e lavradores, apegados às terras em que viviam; centenas de ex-trabalhadores da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande do Sul, abandonados à própria sorte após a construção; comerciantes de vilas e de estradas; agregados e capatazes; pessoas carentes de alfabetização, assistência e promoção social; antigos combatentes farroupilhas e maragatos; ex-combatentes dos batalhões de Voluntários da Pátria e da Guarda Nacional; e ainda, criminosos, ex-presidiários e foragidos da justiça (THOMÉ, 1989). Todos juntos atacavam e se defendiam. Tiveram a ousadia respondida à bala. Lutaram pela sobrevivência até que, cercados, sucumbiram aos mais fortes – o genocídio (FRAGA, 2005, p. 245).

Com toda essa gama de fatores promovendo a revolta nos primeiros moradores, e que pulsava de maneira veemente nas veias dos caboclos, foi inevitável o combate entre estes e as forças do Estado e do Capital, culminando com diversas batalhas e mortes.

Como a situação ficou agravada pela Guerra do Contestado, o presidente da República, Wenceslau Braz, interveio na questão. Chamou os governadores em busca de uma solução e nomeou um comandante da Marinha para servir de emissário entre os dois governos. O presidente propôs a divisão do território contestado (FRAGA, 2005, p.230).

No dia 20 de outubro de 1916, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, em ato solene, foi assinado o “Acordo de Limites” pelos governadores de Santa Catarina (Felipe Schmidt) e do Paraná (Affonso Camargo), e pelo presidente da República Wenceslau Bráz; colocando, enfim, “ponto final” sobre os limites entre os estados litigantes (LUZ, 1952, citado por FRAGA, 2005), na Figura 7, se pode ver a foto dos três responsáveis pelo acordo, acima o Presidente Wenceslau Braz, a esquerda Felipe Schmidt e a direita Affonso Camargo.

Para materializar no terreno esse acordo, o Marechal Antonio de Albuquerque Souza, foi nomeado por decreto de 31 de outubro de 1917 para proceder a demarcação dos limites entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, consoante com o Convênio de 20 de outubro de 1916.

No dia 1º de junho de 1918, foi realizada a primeira reunião com os representantes do Paraná, os engenheiros civis, Candido Ferreira de Abreu, Francisco Gutierrez Beltrão e João Moreira Garcez, e os representantes de Santa Catarina, Major de engenharia Gustavo Lebon Regis e o engenheiro civil Telasco Vereza, com o objetivo de deliberarem sobre os trechos da linha a ser demarcada consoante à letra do acordo.

Figura 7 - O Presidente e os Governadores.

Fonte: Souza (1923)

Desde o início ficou acertado que os trabalhos de medição e demarcação da linha divisória seria realizado à exemplo do que se tem praticado em comissões congêneres internacionais, sendo que repousariam somente em operações topográficas apoiadas em posições geográficas determinadas, com o necessário rigor, pelos processos astronômicos. Foi acertado também nessa reunião a categoria, grandeza e formato dos marcos a se colocarem onde fossem necessários, no total foram construídos sete marcos de 1ª ordem, seis de 2ª ordem e cento e trinta e cinco de 3ª ordem (SOUZA, 1923, p. 13).

Na figura 8 podem ser observados os quatro tipos de marcos que foram construídos e fixados nos limites entre os dois Estados:

Figura 8 - Modelos dos Marcos.

Fonte: Souza (1923)

Foram separadas quatro turmas compostas na sua maioria por oficiais e praças do Exército (figura 9), responsáveis pela demarcação das áreas, a primeira turma se encarregou do Litoral, na divisa entre São Francisco e Guaratuba; a segunda turma se encarregou da cidade de Rio Negro, Mafra e Clevelândia; a terceira turma foi encarregada das cidades de Porto União e União da Vitória; a quarta turma, responsável pelo levantamento e nivelamento do rio Negro, de Bateias e a foz no rio Iguaçu, no decorrer das atividades foram criadas mais algumas turmas para melhor executar os trabalhos, além dos encargos inerentes a cada turma, havia

outros extensivos a todas, como fotografias documentais, dados estatísticos e descritivos, úteis para o Estado Maior do Exercito (SOUZA, 1923, p. 15 e 16).

As turmas enfrentariam inúmeras adversidades durante a execução dos trabalhos, como a temperatura que na época oscilava em torno de 6ºC, estação de chuvas, uma epidemia de gripe que atingiu os integrantes das turmas, o que atrapalhou os trabalhos, a falta de alimentação e as dificuldades que encontraram no terreno, como matas densas, morros e terrenos inóspitos que tiveram que enfrentar.

Figura 9 - Turma reunida após fixar o Marco.

Fonte: Souza (1923)

Em 28 de janeiro de 1921 o Marechal Antonio de Albuquerque Souza, que era o responsável pelos trabalhos, depois de 33 meses de serviços, tanto no terreno como nos escritórios, com a parte documental, envia um oficio informando o término dos serviços de campo concernentes à demarcação dos limites entre os Estados do Paraná e Santa Catarina, conforme o acordo de 1916 (SOUZA, 1923, p. 69).

Após o fim dessa trágica e violenta Guerra, porém, de suma importância para a história regional e, particularmente, pela delimitação territorial entre os estados envolvidos, dá-se início à colonização das terras outrora contestadas, do Oeste catarinense e Sudoeste do Paraná, como será discutido na seqüência.

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