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CAPÍTULO 1 HISTÓRIA E MODERNIDADE

3. A história como ciência

“A história atribui a si mesma a função de julgar o passado e de instruir as narrativas em benefício das gerações futuras. A presente obra não se atreve a tomar liberdades; ela busca mostrar somente o que de fato ocorreu” (LEOPOLD VON RANKE).

Como uma abordagem histórica da realidade manobrada para compensar as fraquezas do mecanicismo racionalista, ou como celebração de um suposto curso unitário e progressista do acontecer mundial, o historicismo desenvolveu-se como doutrina filosófica e como cosmovisão antes de poder dar a luz a uma ciência da história. Tornou-se uma força influente no curso espiritual do mundo antes de chegar a ser um novo espírito científico e crítico ( CARVALHO, 2004 ). Em ruptura com esse quadro, contra o domínio da filosofia sobre a história, na Alemanha do início do século XIX foram dados os primeiros passos para que uma ciência da história pudesse ser criada, legitimada e difundida. A partir de uma junção do culto romântico das diferenças com o espírito científico moderno, eruditos alemães buscaram libertar a perspectiva histórica das especulações metafísicas sobre o sentido último ou plano geral do devir humano, para então convertê-la em uma ciência: uma abordagem metódica e empírica de fenômenos concretos e singulares. Para tanto, valeram-se do pensamento hermenêutico que vinha desenvolvendo-se no mundo de cultura e língua alemãs, assim como das técnicas de crítica textual que a muito vinham gradativamente se desenvolvendo a partir de pontos como a erudição do humanismo renascentista e do esforço de interpretação e autentificação de textos bíblicos ou ligados a história da Igreja e do cristianismo (Ibid).

Baseada na coleta de dados e dissecação criteriosa das fontes históricas, e pretendendo buscar para si o status de um saber empiricamente controlado, a história-ciência criada pelos alemães visou corrigir os excessos gerados pela especulação filosófica sobre a história, fazendo do estudo da mesma um empreendimento mais comedido em suas pretensões de encontrar grandes nexos processuais capazes de unificar eventos e fenômenos observados na realidade histórica. O objeto do conhecimento histórico deveria ser o localizado e o datado, o empiricamente verificável, e não o a priori metafísico (REIS,1999, p. 6). A realidade histórica, portanto, deveria ser estudada não a

partir de uma necessidade dada a priori, da qual seria apenas a suposta realização, mas sim a partir do que a documentação permite dizer e verificar.

Nesse contexto, pretendendo-se científica, a consciência histórica se reconhece finita, abdica do princípio absoluto, e passa a privilegiar as circunstâncias históricas relativas a um espaço-tempo específico, singular e irrepetível (REIS, 1999). Pós-revolucionária, tradicionalista e conservadora (Ibid), essa forma de historicismo não busca ser a consciência de um futuro de emancipação, justiça e liberdade a ser produzido pela ação política. Ao contrário disso, ela apresenta-se como uma consciência das diferenças humanas, das tendências próprias de cada cultura ou nação, as quais a política deve absorver e respeitar. Se o seu conhecimento busca uma totalidade, não é a da humanidade, mas sim aquela que se apresenta no espírito de cada povo. Se busca uma tendência, não é a do progresso da humanidade, mas sim a do desenvolvimento e disposição singular de cada sociedade. Diagnosticando e valorizando o que é visto como imanente a cada individualidade histórica, a história ciência alemã, que tomou como objeto de estudo sobretudo o Estado, seus grandes eventos e atores políticos, na visão de Michael Löwy, seria articuladora de uma grande legitimação “ das instituições econômicas, sociais e políticas” existentes no mundo germânico e na Prússia. Uma vez descritas e apresentadas como “produtos legítimos do processo histórico”, frutos de um “ processo orgânico de desenvolvimento”, tais instituições estariam então sendo protegidas pela historiografia alemã contra o que seria o caráter arbitrário, anti-histórico e artificial das iniciativas de superação da sociedade tradicional, provenientes tanto do espírito da Revolução francesa, como também das forças não menos revolucionárias do próprio capitalismo (LÖWY, 1985, p. 70). Concebido em oposição às filosofias da história oriundas do iluminismo e do idealismo alemão, pretendendo-se anti-hegeliano, o historicismo cientificista dos alemães, no entanto, não abandonou por completo a prática de articular e projetar um princípio metafísico na história . Dessa forma, se a humanidade não é pensada a partir de Hegel como um acontecer histórico unitário determinado por uma idéia de sentido universal, ela é, no entanto, fragmentada em diferentes histórias nacionais, cada uma delas sendo vista como possuindo e manifestando, em seus eventos e realizações, a sua própria idéia particular.

Essa escola histórica alemã, que teve em Wilhelm Von Humbolt e Leopold Von Ranke dois dos seus principais fundadores, deu importantes contribuições para o desenvolvimento do método histórico e do que hoje tomamos como sendo a sensibilidade e o olhar próprios do historiador. Contudo, apesar de suas contribuições serem grandiosas e duradouras, suas fraquezas não foram poucas. Como vimos, havia o fato do conservadorismo, do apoio político ao poder estabelecido. O

idealismo enrustido, também era um ponto de debilidade, assim como a ênfase excessiva na história política, no Estado e na sua documentação como sendo mesmo a essência do interesse legítimo do historiador cientista. Além desses problemas, uma outra grande debilidade acompanhava o pensamento historiográfico aqui tratado, contribuindo mesmo para ocultar muitos dos seus já citados pontos fracos. Esse outro ponto de debilidade da historiografia alemã, foi o seu enorme otimismo epistemológico: sua visão simplista do conhecimento e do papel do método histórico. Visão essa que, infelizmente, disseminou-se pelo mundo, atuando ainda hoje em muitos historiadores como uma espécie de mal atávico e insuperável.

Acreditando que a história poderia ser uma descrição de fatos, o historicismo cientificista dos alemães prescreveu para o historiador a necessidade de abster-se de qualquer ponto de vista subjetivo, de qualquer condicionamento político, cultural ou ideológico. O historiador não deveria julgar o passado nem engajar-se com as questões e necessidades práticas e políticas de seu tempo. Ao contrário, valendo-se de um comportamento metódico voltado para a análise criteriosa das fontes, ele deveria limpar o seu olhar e o seu espírito, assumir uma posição de imparcialidade para com isso deixar a verdade falar por si mesma. Por trás desse otimismo epistemológico que supunha poder ser o historiador transformado em uma instância meramente coletora e registradora de fatos objetivos, estava um empirismo ingênuo que fazia da documentação, e não do olhar do historiador — com seus interesses, suas questões e o seu recorte — a base do conhecimento. Professando uma fé exagerada no método, aliada a crença de que os fatos estão previamente dados na documentação, não sendo construídos pela leitura que sobre a mesma incide, mas sim simplesmente registrados por um olhar metodicamente purificado, tal historiscismo , como nos mostra Reis (REIS, 1999, p. 7), alimentou a idéia de que a história ciência poderia alcançar a mesma objetividade que, na época, era atribuída as ciências naturais. Desse modo, formular, tal como fariam as ciências naturais, enunciados válidos para todo tempo e lugar, seria então a ambição do historiador. Com isso, embora rejeitasse a universalidade ontológica de uma lei ou sentido geral do devir e desse ênfase , no que diz respeito a história objeto, ao singular — aquilo que é historicamente relativo a um dado contexto específico — , paradoxalmente, o historiador negava-se a situar historicamente o seu próprio olhar, mantendo assim o ideal de uma universalidade epistemológica ( Ibid)

Pretendendo ser uma ciência, a história, como mostra Koselleck, coloca-se entre duas exigências mutuamente excludentes: buscar a verdade e ao mesmo tempo admitir e considerar a relatividade de seus enunciados (KOSELLECK, 2006, p. 159). Ou seja, posicionando-se como um cientista, o historiador buscou produzir significados a respeito do passado a partir de critérios comprováveis e racionais. Critérios científicos de coleta de dados e produção de enunciados por meio dos quais uma

objetividade e validade universal para as narrativas históricas passou a ser reivindicada . Mas, por outro lado, como articulador de um olhar historicizante, o historiador encontrou-se confrontado a considerar o princípio de que, como parte da realidade histórica , não pode ele também deixar de articular um ponto de vista condicionado pelas circunstâncias nas quais está inserido; e que, portanto, não poderia escapar de ser relativo e parcial — quer dizer, de ser historicamente datado e historicamente superável. Como vimos, na escola histórica alemã do século XIX essa contradição de exigências foi resolvida por meio de uma concepção epistemológica ingênua, segundo a qual o método crítico operado pelo historiador poderia purificar o seu olhar dos condicionamentos advindos do fato de que o próprio hermeneuta do passado encontra-se inserido na história que busca então interpretar. Contudo, se durante um bom tempo as coisas andaram nessa direção, no final do século XIX e início do XX, a crença de que a história se deixa apropriar de maneira objetiva e verdadeira por aqueles que ao conhecê-la conduzem-se de forma metódica, sofreu um duro ataque por parte de uma nova vertente relativista do historicismo alemão.

Essa virada relativista, deu-se sobretudo, embora não exclusivemente, por meio de uma filosofia crítica da história que , diferentemente das filosofias teleológicas ou especulativas , não buscava profetizar o futuro nem encontrar a idéia ou lei geral que governa o mundo. Abandonando então a especulação metafísica, a filosofia da história transforma-se em epistemologia da história. Em procedimento crítico no sentido kantiano: crítica que busca fundamentar o objeto criticado, e não destruí-lo ou anulá-lo. Assim, um novo projeto historicista buscou promover uma crítica da razão histórica cujo sentido era o de apontar para o conhecimento histórico e social os seus limites cognitivos, para com isso libertá-lo dos parâmetros de cientificidade importados das ciências naturais, e a partir disso, fundamentar epistemologicamente as ciências humanas em bases próprias e autônomas. Esse projeto teve o mérito de atacar a ingenuidade epistemológica, aqui já apontada, através da qual a historiografia alemã buscou legitimar-se cientificamente. Contudo, teve o demérito de, ao questionar o ideal de objetividade e verdade do conhecimento histórico em um esforço de distinguir as ciências humanas das ciências naturais, preservar para as últimas uma aura de superioridade, rigor e verdade quase mítica. Dilthey, Simmel e Karl Mannheim, de acordo com Löwy, foram alguns dos autores que contribuíram para difundir uma visão do conhecimento histórico de caráter relativista ( LÖWY, 1985; REIS, 1999).

Mediante a crítica da razão histórica movida por um novo historicismo relativista, o conhecimento produzido por historiadores e pelas ciências humanas passou a ter a sua historicidade e relatividade reconhecidas. A partir daí, uma vez visto como parte da sociedade e da história que pretende estudar, o sujeito cognitivo das ciências histórico-sociais deixou de ser concebido como capaz de

separar-se de seu objeto, de posicionar-se perante ele de forma neutra e objetiva, de tal forma que a separação entre sujeito e objeto existente nas ciências naturais e até então almejada no campo da história e das ciências humanas, tornou-se simplesmente impraticável. Assim, por exemplo, se o historiador é parte da história, o seu conhecimento é sempre um conhecimento historicamente condicionado. Suas categorias de pensamento e análise e suas questões são historicamente condicionadas e relativas, devendo com isso sofrer alterações e mesmo cair em desuso com o fluir da própria história. Cada época, portanto, organiza o passado de acordo com a sua própria realidade e experiência presente, de tal forma que o sentido que damos a história não pode nunca ser absoluto, sendo, ao contrário, de caráter mutável, parcial, relativo e perspectivista.Se a história se movimenta, produzindo novos eventos, novas experiências, idéias e questões; muda a perspectiva a partir da qual o passado é recortado, lido e elaborado. Trazendo pouco a pouco essa nova visão, contra o passado factual dos primeiros historiadores alemães, no fim do século XIX e início do século XX, uma forma mais radical de historicismo trouxe então a cena a possibilidade de um passado múltiplo e inexaurível em sua significação.

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