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1.5 Revelação de Deus

1.5.1 A história e a consciência mística como caminhos da revelação

A história mostra-se como um dos principais caminhos da revelação, dado que o ser humano é histórico e só há sentido se a revelação estiver direcionada para os seres humanos. Deus não poderia, então, revelar-se por caminhos que não estivessem ao alcance do ser humano, isso é, não poderia revelar-se com critérios diferentes dos da história, pois sua revelação tornar-se-ia incompreensível. Libânio afirma que

“um Deus que se revela na história não pode prescindir das estruturas e inteligibilidade histórica. Uma compreensão da Revelação que fosse incompatível com a historicidade não pode ser verdadeira. Não é revelação de Deus na história. Pode ser criação dogmática de homens de consciência a-histórica.”194

Faz-se necessário, sempre mais, ver a história como construção da liberdade humana, portanto, sempre nova. Queiruga dirá que “a revelação sempre em ato por parte de Deus realiza-se no novum ontológico da liberdade histórica do homem”195. Na natureza, as experiências se repetem. Na história, as experiências são progressivas e acumulativas. Na natureza, o cosmos é importante. Na história, a aliança, feita, desfeita e refeita, é importante; e é na história que se deve buscar o mistério de Deus e sua revelação. Para Carlo Molari, “a história é o lugar da oferta contínua, da qual o homem necessita para ser ele mesmo, o espaço de uma perene encarnação”196. Deus assume o rosto da história, fica condicionado a ela, pois, somente assim, pode dar-se a conhecer.197 Para o ser humano, pois, Deus está sempre se revelando, não está ‘pronto’. Isso não desacredita a Palavra de Deus ou a marginaliza. A Palavra de Deus, que é histórica, interpretará a história no sentido salvífico, discernirá em meio a tantos 1 *6H3*7 . 6 ! 0 U: * :2 - " L "' ! + " " "' ! & ,"! ! ) " !"! 0 " ! *6H3*7 . 6 ! ( 5,7 * ) ' & ' + ! ! L ) 3-73 ) ! ( ) U: * :2 - + : . 5 9 ! ; )" " , " > ? ! "

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acontecimentos o que mais vai de acordo com a salvação, apontará no tempo os momentos particulares, ela será sempre “o Kairós que qualifica o Chronós”198. Percebe- se que, na Palavra de Deus, o gênero da narrativa é o mais utilizado, isso porque a narrativa rompe com a verdade a-histórica (um Deus que está nos céus) e abstrata (um Deus função da natureza), mas se torna evento histórico, isto é, encarnação de Deus na história do ser humano199. O perigo da manipulação aparece quando a narrativa é desistoricizada e transformada em mito, em pura simbologia. Ou ontologicamente objetivada de tal forma que um acontecimento fecha a história, gerando até o provérbio contra fatos não há argumentos.

A história ganha tanta importância em nossos dias que ela chegou a alterar, inclusive, o mundo. O mundo deixa de ser cosmos, que está distante do ser humano e se apresenta como realidade a ser adorada e venerada, e se transforma em processo, em matéria em construção. Isso faz com que não exista mais quase nada de firme e válido (acabado). “Esta história, que ele mesmo (o ser humano) encena, ameaça sepultá-lo entre suas vagas”. E W. Kasper conclui assim seu pensamento: “a história é hoje o maior problema”200. E podemos chegar a outra conclusão: é nela que devemos buscar a revelação de Deus.

Mas não há história sem ser humano. Logo, a revelação de Deus é para o ser humano. Cantone, com base em Bozzo, dirá que o caminho de Deus é o ser humano. Qualquer outro caminho de salvação só tem autoridade e verdade se passar pelo ser humano. Assim, aquilo que é suficiente e decisivo é o caminho do ser humano; tenha-se consciência disso ou não, esse é na realidade o caminho de Deus. Logo, Deus é encontrado não in forma Dei, no absoluto e na transcendência formal do mysterium

tremendum e fascinans da experiência religiosa, mas in forma hominis, ou seja, na

imanência e fragilidade da sua identificação com a face do ser humano, antes de tudo com a face desfigurada e desfeita (cf. Is 52,2) do mesmo, numa experiência propriamente secular, não religiosa.201 Arturo Paoli dirá:

“Um Deus(...) que não se encontra erguendo os olhos para o alto dos céus, mas que os abaixa, procurando tocá-lo na carne do pobre feita sacramento da sua presença.”202

A história e o ser humano são caminhos fundamentais para Deus se revelar. Não são os únicos, mas são como que o carro-chefe. A própria religião pode tornar-se caminho. Ela precisa, porém, manter a abertura necessária para a contínua novidade da revelação de Deus a fim de perceber que a revelação de Deus não é um fruto da religião, ela não é a mãe da revelação. No início de nosso trabalho dizíamos que a religião é um caminho necessário para chegar a Deus, mas nela não se chega a Deus; é preciso superá-la, ir além. Isso ficou mais evidente no decorrer do trabalho quando se percebeu que a religião, ao buscar e ao ver-se como absoluta, acaba mais por encobrir, manipular, que por revelar. Toda religião se entende como revelação de Deus e a revelação pertence à auto-compreensão de toda religião, que sempre se considera a si mesma como divina e não como humana. A crença da revelação, diz Feuerbach, é a certeza imediata do ânimo religioso de que o que ele crê, o que ele deseja, o que ele representa, existe.203 Os riscos desta absolutização já vimos anteriormente.

É preciso encarar as religiões dando prioridade à história e ao ser humano, é 0 *6H3*7 . 6 ! 67//7 6 ) 3-73 ) ! (( C c d ! ! -& % !" " ! & " ! *6H3*7 . 6 ! 05 ) ) 3-73 ) ! 5( ' ; " % &" # " ! . $ " ** " 'E' '" ! 8 ! ' " " # '" & !" *% K" < & 7 * ) 3-73 ) ! ( (4 : 6 )8 !

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preciso ter como verdade que “Deus se revela somente na carne”204. As religiões são a multiplicidade dos testemunhos históricos, mas não são exclusivas e são convidadas a partilhar seus dons. Pois as religiões têm afinidades entre si, não no secundário, mas em seu centro. Elas buscam o bem-estar, a salvação e a felicidade dos homens. E nelas, em teoria, a relação do ser humano com Deus é uma relação de salvação. Neste sentido, Cantone afirma que não podemos falar em fé e religião absoluta excluindo as outras formas de fé e religiões, pois elas também se propõem a realizar o absoluto da fé e da religião: a salvação e libertação do ser humano.205 E não podemos pensar que a revelação de Deus seja exclusiva da tradição judaico-cristã. Stanley diz que não há helicóptero teológico que nos permita erguer-nos acima de todas as religiões e observá- las objetivamente do alto. Sempre as olhamos a partir de nós e de nossa religião. O nosso ponto de vista é cristão e nossos vizinhos estão livres para assumir outros pontos de vista.206 Por isso, as religiões devem ter uma flexibilidade humana e cultural. E aqui está o grande problema: será que, sem absolutizar-se, será que no respeito às outras religiões, será que na flexibilidade a religião consegue sobreviver? Mas isso é necessário para que a religião não se torne pedra de tropeço na revelação de Deus e mais esconda e manipule do que revele.

Cantone nos aponta outro caminho para a revelação de Deus, caminho este decorrente da religião, mas que a supera. Ele chama este caminho de consciência mística. Na consciência mística, abandona-se a linguagem da natureza e a linguagem humana, que são dominadas por relações de força, mesmo quando buscam a justiça e acabam por falar apenas de um Deus poder. A consciência mística assume a linguagem divina, que é a linguagem da caridade, da paz e da vida. Esta linguagem não pode estar submissa a uma linguagem institucional, e nem pode ser mediada e transmitida por uma instituição eclesial, pelo risco de esconder e obscurecer a dimensão mística. Esta linguagem deve seguir a relação direta do ser humano com Deus por meio de Jesus, homem-Deus. Ele chama esta relação de “imediatez mediada”207. A consciência mística só é possível com o fim da cristandade, que identificou sagrado com místico e gerou a maior confusão. Somente a secularidade pode desidentificar sagrado e místico e colocar cada um no seu devido lugar. Bozzo afirma:

“A secularidade, que consome o sagrado, abre uma condição mística para a história ocidental, na qual a criatividade e a aspiração revestem-se de forma não desconhecidas, mas agora certamente imprevisíveis. A transição em que vivemos nos permite ver a terra que abandonamos, mas ainda não nos permite reencontrar os traços daquela em que estamos entrando.”208

Feuerbach vê no amor a superação da religião e, ao nosso ver, outro caminho da revelação de Deus. Diz ele:

“O cristianismo não deu livre curso ao amor, não se elevou à altura de captar o amor de maneira absoluta. E não teve esta liberdade, nem poderia ter tido, porque é religião, e por isso subordinou o amor ao domínio da fé.”209

Nosso próximo passo é ver, a partir destes caminhos, que Deus realmente se 1,7 * ) ) 3-73 ) ! 0 ) 3-73 ) ! 5 , -8 " I . ) 3-73 ) ! ) ) 3-73 ) ! ( 067//7 6 ) 3-73 ) ! ;( 4 : 6 )8 ! (

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revela. Será um Deus igual ao revelado pelo sagrado e pelo religioso ou será um Deus diferente?