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PARTE I: O CLASSICISMO, O SABER E O PODER

2.1 As Empiricidades Clássicas

2.1.2 A História Natural

No classicismo, o historiador assume um relevante papel no estudo da natureza. Ele passa de compilador de informações e literaturas para observador. Deste modo, Foucault (2002b, p. 142) afirma que:

[A História natural surge] [...] no espaço aberto na representação por uma análise que se antecipa à possibilidade de nomear; é a possibilidade de ver o que poderá dizer, mas que não se poderia dizer em seguida, nem ver a distância, se as coisas e as palavras, distintas umas das outras, não se comunicassem, desde o início, numa representação.

A história natural toma os herbários, jardins e coleções como arquivos. Ela aproxima os seres com características semelhantes em quadros intemporais conferindo-lhes uma análise prévia, dedicando-se, exclusivamente, a nomeação do visível. Seu modo de operar consiste, basicamente, na observação das características dos seres em relação a extensão14. Frente a isto Foucault (2002b, p. 146) declara:

A extensão [...] pode ser afetada por quatro variáveis: [...]: forma dos elementos, quantidade destes elementos, maneira como eles se distribuem no espaço uns em relação aos outros, grandeza relativa de cada um. [...] Essas quatro variáveis que se podem aplicar da

mesma forma às cinco partes da planta – raízes, caules, folhas,

flores, frutos – especificam a extensão que se ofereceu a

representação [...]

Essas quatro variáveis permitem caracterizar tanto as plantas quanto os animais e são denominadas pelos botânicos de estrutura. Os seres vivos devem ser descritos segundo a grandeza e o número, frente ao cálculo ou a medida. As formas devem ser identificadas de acordo com aquilo que seja mais facilmente reconhecível

14 Segundo Roberto Machado (1981, p. 126), a História natural obedece a preceitos semelhantes

aqueles utilizados pela fìsica: “A História natural é um tipo de olhar e deve discernir nos seres naturais o que é relevante para a descrição que pretende realizar: deve dar conta de suas propriedades essenciais. Assim, acreditamos ser possível encontrar com relação a História natural a mesma restrição feita, na época clássica por Galileu e Descartes por exemplo, com respeito à natureza do objeto estudado pela física: a distinção entre qualidades primárias e secundárias dos corpos. É qualidade primária toda aquela sem a qual não se pode pensar o corpo, enquanto que as qualidades secundárias dependem fundamentalmente da interação dos órgãos dos sentidos com o objeto fìsico.”

(como por exemplo, figuras geométricas). É deste modo que “[...] o livro torna-se o herbário das estruturas [...]” (FOUCAULT, 2007a, p. 186). A estrutura possibilita que a representação seja destituída de sua simultaneidade e transformada em uma linguagem sucessiva e linear.

Outra relevante modificação disponibilizada pela História natural é o advento do caráter, o qual consiste na utilização da descrição de alguma estrutura como nome comum que designará a planta. Assim, o nome poderá reter em si elementos que pertençam ao quadro das identidades e diferenças, propiciando a análise e a denominação da planta em sua singularidade.

O caráter é atribuído através de dois procedimentos: o sistema e o método. O primeiro consiste na escolha de um conjunto limitado de traços dos indivíduos, onde se verificará a constância e a variação destes. O segundo pauta-se em comparações totais no interior de um determinado grupo onde o elevado número de semelhanças permite observar as diferenças possibilitando a observação das identidades e das distinções. O sistema limita-se ao estudo de uma estrutura privilegiada tomada arbitrariamente, na qual se estudará o conjunto das identidades e das diferenças. Assim, “A estrutura escolhida para ser o lugar das identidades e das diferenças pertinentes é o que se denomina caráter.” (FOUCAULT, 2007a, p. 192-193). No método é feita uma descrição minuciosa sobre uma determinada espécie aleatoriamente escolhida, em seguida outra espécie é tomada como objeto de análise, contudo diferentemente do primeiro caso somente as diferenças são descritas. O caráter é dado, assim, de acordo com os parentescos percebidos.

A regra classificatória, no século XVIII, estendia-se para além da História natural fazendo-se presente também na medicina. Os quadros nosográficos encarregados de distribuir as patologias sobre o espaço das diferenças e das similaridades foram largamente difundidos no classicismo. A clínica pauta-se fundamentalmente no olhar, segundo Foucault (2000, p. 88):

A clínica pede ao olhar tanto quanto a história natural. Tanto e até certo ponto a mesma coisa: ver, isolar traços, reconhecer os que são idênticos e os que são diferentes, reagrupa-los, classifica-los por espécies ou famílias. O modelo naturalista, a que a medicina em partes se submetera no século XVIII, continua ativo. O velho sonho

de Bossier de Sauveges – ser o Lineu das doenças – não foi ainda

inteiramente esquecido no século XIX: os médicos continuarão a herborizar por um longo tempo o campo patológico.

A doença deve ser completamente descrita, todos os seus sintomas devem ser minunciosamente detalhados a fim de que a patologia possa ser satisfatoriamente analisada. A doença faz-se presente nos sintomas promovendo uma transparência entre “[...] o ser patológico e a sintaxe de uma linguagem descritiva [...]” (p.103-104). O ser é apreendido através do ato descritivo e somente aí é desvelado. Segundo Foucault (2000, p. 95):

[...] Na medicina das espécies, a natureza da doença e sua descrição não podiam corresponder sem um momento intermediário que era, com suas duas dimensões, o quadro: na clínica, ser visto e ser falado se comunicam de imediato na verdade manifesta da doença, de que é precisamente todo o ser. Só existe doença no elemento visível e, por consequência, enunciável.

A descrição do clínico implica a relação entre uma operação de consciência e um signo. Nesta operação emerge a sucessão e a ordenação dos elementos. É a linguagem que manifesta a verdade através de um ordenamento temporal.

Entretanto, cabe salientar que o médico não é exclusivamente um observador ou mesmo tão somente um classificador do âmbito patológico, sua atuação estende-se para além da taxinomia. Seu olhar é institucionalmente justificado tendo poder de decisão e intervenção. Além das tentativas nosográficas, o olhar médico deve aprender as anomalias, as cores, as variações. O olhar médico deve, por fim, perceber as possibilidades e os riscos, isto é, deve calcular. No final do século XVIII novos objetos tornaram-se passíveis do saber médico e houve, inclusive, uma modificação do sujeito cognoscente. O que marca, indelevelmente a clínica, é, sem dúvida a transformação que se estabeleceu entre a relação da doença e do olhar que a observa.

A medicina das espécies apropriando-se dos procedimentos desenvolvidos na História natural opera tanto através da localização da estrutura (através de sintomas frequentes, tomados previamente, que atingem partes específicas do corpo em indivíduos diferentes) quanto da localização do caráter (considerando sintomas específicos que são observados em diversos pacientes e que então são isolados caracterizando as patologias; e, através da comparação do conjunto de sintomas em patologias diferenciadas analisando as similaridades). Segundo Foucault (2000, pp. 2-3):

A doença recebe uma organização hierarquizada em famílias,

gêneros e espécies. Aparentemente trata-se apenas de um „quadro‟

que permite tornar sensível, para a aprendizagem e a memória, o domínio abundante das doenças [...] o quadro nosológico implica uma figura das doenças diferente do encadeamento dos efeitos e das causas, da série cronológica dos acontecimentos e de seu trajeto visível no corpo humano.

A configuração da doença obedece a alguns princípios. Primeiramente a doença se estabelece em uma experiência histórica em detrimento ao saber filosófico. Considera-se histórica a experiência que se reduz apenas a observação. O saber filosófico seria aquele responsável por determinar a origem, a causa e os efeitos. Entretanto, a observação histórica não implica uma noção temporal, ou seja, os fenômenos são observados em um horizonte de sobreposição e simultaneidade e não de sucessão. Segundo Foucault, “A estrutura principal que a medicina classificatória se atribui é o espaço plano do perpétuo simultâneo.” (FOUCAULT, 2006, p. 5).

Outra característica da configuração clássica das doenças refere-se ao espaço ocupado pelas analogias. As analogias definem as essências das doenças promovendo aproximações que acabam reduzindo-as, em determinados casos, a mesma identidade (como no caso das paralisias que podem ser consideradas como completas, parciais ou apenas como eventuais). No quadro formado pelas doenças a distância restringe-se ao grau de semelhança e não, propriamente, a um afastamento lógico-temporal definido por uma genealogia. Semelhante procedimento pode ser também vislumbrado na História natural, fundamentalmente, através da utilização do sistema para identificar o caráter.

O terceiro princípio que determina a configuração das doenças relaciona-se ainda com o âmbito da analogia. A ordem racional da doença é descoberta mediante a forma da analogia. A medida que as doenças são aproximadas o seu desenvolvimento pode ser observado e, assim, pode-se estabelecer uma lógica que determine o desenvolvimento delas. As analogias desenvolvidas nestes procedimentos são similares àquelas realizadas no método da História natural. As patologias são comparadas em sua totalidade a fim de observar o conjunto que as identifica, diferencia e individualiza.

Por fim, o último princípio que norteia a nosografia clássica remete-se ao fato da doença ser constituída tanto por espécies naturais, quanto por espécies

ideais. Aquilo que é determinado de natural é o espaço de manifestação da doença, onde ela se desenvolve. O núcleo ideal da doença é caracterizado pela pura manifestação da doença sem a interferência do paciente é a doença abstraída dos eventuais acidentes acrescentados a manifestação dos sintomas disponibilizados pelo paciente. Segundo Foucault:

[...] Para conhecer a verdade do fato patológico, o médico deve abstrair o doente : „É preciso que quem descreve uma doença tenha o cuidado de distribuir os sintomas que a acompanham necessariamente, e que lhe são próprios, dos que são apenas acidentais e fortuitos, como os que dependem do temperamento e da idade do doente‟ (Sydenham apud Sauvages, loc. Cit., T. I. p. 124 – 125. Apud FOUCAULT, 2000, p. 6).

Quando Foucault menciona a análise das estruturas na História natural ele nos diz que esta é obtida mediante a forma, a quantidade, a distribuição e a grandeza. Tratam-se, evidentemente, de categorias exteriores introduzidas na constituição de um saber, ou ainda, de formas ideais que referem-se ao mundo natural. Da mesma maneira a doença é pensada em sua idealidade. Subtrai-se o indivíduo a fim de se perceber a idealidade da doença.

A utilização dos quadros nosográficos e a percepção da doença, principalmente através dos princípios da medicina das espécies, faz-se presente, também, na caracterização da loucura. A loucura ao longo da História foi submetida a duas distintas formas de apreensão: “[...] uma moral, sobre um fundo do razoável; outra, objetiva e médica, sobre um fundo de racionalidade.” (FOUCAULT, 2005, p. 184). A primeira implica necessariamente uma concepção filosófica que liga a loucura a falta de razão que pode ser combatida através da persuasão da alma e da educação. A segunda é, sobretudo, oriunda dos movimentos involuntários da bílis e liga-se, portanto, a causas que seriam orgânicas. Entretanto, a partir do século XVIII essas duas formas encontram-se emaranhadas organizando a unidade de uma única e mesma loucura.

O louco não é objeto de análise, para a compreensão da loucura durante o classicismo, sua verdade é incessantemente calada. Há a pretensão de questionar a loucura nela mesma. Alguns procedimentos são redefinidos neste período como o caso da classificação das doenças pela falta ou pela supressão como, por exemplo, as falhas no parto, o suor excessivo etc. A doença passa a ser caracterizada

positivamente através da presença de sintomas constatáveis. É assim que Foucault nos diz: “[...] o conhecimento da doença deve fazer, antes de mais nada, o inventário de tudo o que existe de mais manifesto na percepção, de mais evidente na verdade. Assim se define, como procedimento primeiro da medicina, o método sintomático.” (FOUCAULT, 2005, p. 189).

O caminho filosófico que pretende conhecer a doença deve inquiri-la a partir de uma perspectiva histórica. Este caminho não pretende, entretanto, estabelecer a cronologia e as causas da doença ao longo do tempo, mas sim, ver a doença de perto reconstruindo- a em seus mínimos detalhes.

A grande preocupação dos classificadores no século XVIII é animada por uma constante metáfora que tem a amplitude e a obstinação de um mito: a transferência das desordens da doença para a ordem da vegetação. [...] [ recomendava-se que] se pusesse o imenso número das doenças humanas, a exemplo do que fazem os escritores da história natural, numa ordem sistemática... apresentando as classes, gêneros e espécies, cada um com suas características particulares, constantes e distintas. (GAUBIUS, Institutiones pathologiae medicinales, citado por Sauvages Apud: FOUCAULT, 2007b, p. 245).

Sauvages e Boissier propõem uma organização do mundo patológico baseada na organização botânica onde as doenças são distribuídas de acordo com uma ordem e um espaço da própria razão. Constitui-se assim um jardim das espécies patológicas e botânicas que nada mais é do que a manifestação da sabedoria da previdência divina.

Antes as doenças eram consideradas como punições enviadas por Deus e eram tomadas como signos das desordens quando observadas por uma perspectiva humana. Agora, quando consideradas ao lado de sua verdade, ou seja, ao lado de Deus, elas são analisadas através de uma perspectiva racional. O pensamento deve, portanto, esquivar-se da patética análise que reduz a doença a punição para compreender suas categorias fundamentais onde reside a verdade eterna das doenças.

A doença obedece aos designíos da sabedoria divina sendo constituída segundo leis precisas, neste sentido a doença, assim como a natureza em seu conjunto, é a manifestação da razão divina. Cabe, todavia, a racionalidade humana compreende-la. Deste modo, Foucault (2007b, p. 248) afirma:

[...] Para que uma classificação seja válida é preciso, inicialmente, que a forma de cada doença seja determinada pela totalidade da forma das outras; a seguir, é preciso que a própria doença se determine a si mesma em suas diversas figuras, e não através de determinações externas; enfim, é preciso que a doença possa ser conhecida, senão exaustivamente, pelo menos de modo certo a partir de suas próprias manifestações.

Os procedimentos supracitados caracterizam-se através do modo de classificação adotado pela história natural. Como na determinação do caráter, através do método, busca-se a comparação total entre as patologias a fim de se determinar as especificidades.

Várias nosografias são realizadas durante o classicismo obedecendo a estes princìpios, dentre as quais podemos citar: “Praxeos Tractatus” (1609) de Platero; “Idée Universelle de la Médicine” (1644) de Jonston; “Nosologie Méthodique” (1763) de Boissier de Sauvages; “Genera Morborum” (1763) de Linné; e, “Der Philosophische Arzt” (1790) de Weickhard. (Cf. FOUCAULT, 2005, pp. 193-195). Todo este esforço classificatório, entretanto, mostrou-se inócuo. As classificações foram constantemente refeitas e reorganizadas, sendo que, praticamente, nada delas restou na contemporaneidade.

A atividade classificatória deparou-se com uma série de obstáculos que sugerem que a loucura em si mesma não pode evidenciar nada de essencial e verdadeiro quando analisada em seus limites restritos. A classificação a partir do visível é, constantemente, invadida por uma série de denúncias morais e por todo um sistema de causalidades que são estranhos a análise taxonômica.

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