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PARTE II: A MODERNIDADE, O SABER E O PODER

1.2 A Vida

tocam, onde a passividade e a atividade de ambos se encontram. Enfim, ela é simultaneamente o limite e o lugar de comunicação entre um e outro.

Dentre as causas atribuídas a loucura, durante o período clássico, o “meio” foi uma das mais expressivas. São os elementos que constituem o ambiente onde o indivíduo vive que fornecem as condições necessárias ao aparecimento das mais diversas perturbações. Este “meio” (vocábulo impróprio e até anacrônico para o classicismo) foi designado por Buffon como forças penetrantes, as quais “[...] não apenas permitem a formação do indivíduo como também o aparecimento das variedades da espécie humana: influência do clima, diferença da alimentação e da maneira de viver [...]”. (FOUCAULT, 2005a, p. 362). A influência do meio se dá através da liberdade, da religião, da civilização e da sensibilidade. Estes seriam os elementos causais determinantes para o desencadeamento da loucura.21

Deste modo, a liberdade de pensamento oferece uma diversidade de opiniões sobre a religião, o comércio e a cultura que estimulariam o aparecimento de comportamentos inadequados. A religião por sua vez, ao estabelecer códigos comportamentais impraticáveis promove, também, o desenvolvimento da loucura. Além disso, a civilização, sobretudo, através dos estudos excessivos, desencadearia um estado de esgotamento mental responsável pelo seu desenvolvimento. Outro fator decisivo é a presença daquilo que Foucault denominou de “sensibilidade”. Antes submetido a um meio estritamente natural, o homem, não sofria a influência das paixões exercidas pelas artes, que conduziriam ao desregramento de seus costumes (como o teatro e a literatura).

O meio, as forças penetrantes, a paixão e os desvios da sensibilidade e a escolha ética, ou seja, todas as peças deste curioso mosaico de causalidades da loucura repousam, invariavelmente, em um único sustentáculo: a falta moral. Seja ela religiosamente conferida, através de uma pastoral coercitiva ou do direito canônico, ou ainda, socialmente concedida, mediante as regras do bem viver, a moral infringida é o fundo sobre o qual aflora a loucura. Mesmo ao excetuar a escolha ética pessoal do indivíduo do horizonte das imposições morais, Foucault permite-nos afirmar que esta escolha é divergente em relação a uma moral

21As questões referentes ao “meio” e as forças penetrantes serão novamente abordadas no capìtulo

previamente instituída. Pois, o indivíduo pode decidir agir em conformidade com os códigos estabelecidos.

Sendo assim, a eventual cura que o classicismo poderia direcionar aos desatinados consiste, basicamente, em um resgate moral. Reestabelecer a razão perdida, mediante uma conversão moral, impõe-se como imperativo no interior da estrutura do internamento. Portanto, a moral é uma das formas que o saber assume nesta inextrincável relação com o poder no que se refere a loucura.

É a moralidade que figura no cerne da regularidade dos costumes, do direito canônico e da pastoral cristã. Códigos que são simultaneamente utilizados como diretrizes no combate ao sexo desviante e na supressão do desatino. A lei civil, embora seja a expressão social dos costumes de uma localidade e, portanto, paute- se também em preceitos morais, traça os limites do aceitável dentro das conveniências da manutenção dos bens e da harmonia pública. A lei civil também é um saber presente em ambos os âmbitos. É essa mesma lei civil que mediante o obscurantismo processual suplicia os “hediondos” no perìodo barroco.

Este poder que se manifesta através de uma relação negativa, da instância da regra, de um ciclo de interdição, que possui uma lógica da censura e atua em um dispositivo unitário, vincula-se a uma forma de saber jurídico-discursiva-moral. É este saber que estabelecerá os regimes para o exercício do poder. Aqui deparamo- nos com as curvas de enunciação, a segunda dimensão do dispositivo.

As curvas de enunciação distribuem variáveis que se caracterizam como instâncias através das quais o poder pode manifestar-se. É no interior de regimes de enunciados que podemos observar a atuação do poder. É na condenação pública da sexualidade desviante e do desatino escandaloso, na afronta a família (frente a dissipação dos bens e diante da infração as regras do sexo conjugal), ou ainda, perante o desacato a legislação (que condena a “bestialidade”, a pederastia e os crimes que ferem o contrato social, sobretudo diante de uma forma violenta) que o poder atua de modo jurídico-discursivo. São estes enunciados que podemos observar ao longo das obras em questão, que constituem a dimensão do enunciável. Situados no interior dos três grandes códigos (o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil, além das regularidades dos costumes e da opinião pública), eles tornam possível o visível e também o enunciável.

Resta reiterar que o saber somente possibilita a manifestação do poder por ser investido por ele. Isto é, se a moralidade pública, a religião e a lei civil dizem não,

apenas o fazem por ampararem-se no poder. Esta conjuntura suscita visibilidades até então inexistentes, constatáveis na loucura, na sexualidade e na punição. É assim que diante do internamento Foucault (2007b, p. 112) nos afirma:

[...] o internamento não isolava estranhos desconhecidos, durante muito tempo evitados por hábito; criava-os, alternado rostos familiares na paisagem social a fim de fazer deles figuras bizarras que ninguém reconhecia mais. Suscitava o estrangeiro ali mesmo onde ninguém o pressentia. Rompia a trama, desfazia familiaridades; através dele algo no homem foi posto fora do horizonte de seu alcance, e definitivamente recuado em nosso horizonte. Resumindo pode ser que este gesto foi criador de alienação.

Estes estranhos22, outrora tolerados pela sociedade, agora despontam como

inconvenientes por não adequarem-se satisfatoriamente aos preceitos da sociedade

22

A loucura é definida e identificada por Foucault diante de três âmbitos distintos: em relação a uma consciência, em relação a razão e em relação a sua forma de apreensão. A consciência da loucura, durante o classicismo, não foi um fenômeno homogêneo. Dentre as formas que ela assume podemos citar: uma consciência crítica, uma consciência prática, uma consciência enunciativa e uma

consciência analítica. A consciência crítica denuncia a loucura imediatamente pela razão sem ter

seus conceitos devidamente estabelecidos. A razão está intrinsecamente relacionada com a loucura e sem ponto fixo. Ela e a loucura podem eventualmente se confundirem possibilitando, assim, que haja uma sabedoria oculta na manifestação da loucura. Esta consciência delimita uma região da linguagem onde uma série de dicotomias se apresenta: verdade e erro, sabedoria e embriaguez, sentido e não sentido, etc. A consciência prática da loucura fundamenta-se em uma dupla escolha. Considera a loucura como uma opção voluntária do indivíduo, quando de fato, é a sociedade que seleciona, verdadeiramente, quem está louco. A sua percepção reside no julgamento do outro e de sua eventual escolha, entretanto é o grupo que determina a alienação. A consciência enunciativa identifica de imediato o louco, sem necessitar de diagnóstico ou de algum outro tipo de análise mais profunda. A consciência enunciativa é da ordem do reconhecimento, pretende evidenciar o estranho. Entretanto ao determinar aquilo que é estranho ela acaba por revelar sua familiaridade a dor. A

consciência analítica pretende compreender a loucura como um objeto, senão inteiramente definível,

pelo menos, pretensamente controlável. Nesta forma de consciência os fantasmas assumem definitivamente seus papéis e a contra-natureza acaba tornando-se uma natureza a ser desvelada. Estas formas de consciência embora possam ser tomadas isoladamente relacionam-se intimamente e fazem-se presentes ainda hoje na forma como a loucura é compreendida. No período clássico a experiência da loucura repousa em um equilíbrio formado por dois domínios autônomos: por um lado a consciência crítica e prática, por outro, as formas do conhecimento e do reconhecimento (Cf. FOUCAULT, 2005a, p. 172). O internamento visa, sobretudo, salvaguardar os domínios da razão protegendo-a. Contudo, este gesto, em determinada medida suscita, também, a manifestação da loucura em toda a sua expressão. É esse movimento de reclusão e manifestação que caracteriza a dialética da loucura no classicismo. O louco é definido através das comparações objetivas realizadas pelo sujeito razoável. O louco não é definido em si, isto é, em sua loucura, ou mesmo a partir dela, mas sim em relação ao olhar dos outros. Foucault afirma-nos que a loucura existe em relação à razão, para a razão e diante da razão. Em relação a razão ela está, sobretudo, em relação aos outros, ou seja, ela é representada e caracterizada pelos outros. Quando a loucura apresenta-se para a razão ela é observada por uma consciência ideal que a percebe como diferença. Quando a loucura está diante da razão ela está simultaneamente do outro lado e sob o seu olhar. A loucura como não- ser, negatividade pura e diferença é o outro lado. Todavia, quando analisada em cada um de seus gestos, em suas manifestações precisas (distinguindo-se cada uma daquilo que pode ser denominado de não louco), ela está sob o olhar da razão, sendo considerada a partir das estruturas do racional. (Cf. FOUCAULT, 2005a, p. 184). A loucura ao longo da História foi submetida a duas

burguesa. A moral protestante (pautada fundamentalmente em uma ética do trabalho), a crescente demanda por mão-de-obra nos novos modos de produção, além dos novos imperativos comportamentais (calcados, sobretudo, na família monogâmica burguesa), iluminam uma região que, no mínimo, fora indiferente a sociedade até então. O internamento pode ser assim considerado como um fenômeno de superfície que responde diretamente a estas profundas modificações ocorridas no classicismo. A sexualidade por seu turno, também produzirá visibilidades. No primeiro capìtulo de “A Vontade de Saber” (“Nós Vitorianos”) Foucault (1977, p. 09) nos afirma:

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticências excessivas e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incomodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos „pavoneavam‟.

O século XVII teria condenado ao exilio aquilo que poderia haver de espontâneo na sexualidade. A interdição dos comportamentos, os novos códigos de decência, as restrições na fala, teriam sido ávidas e perversas implantações impostas pela “monótona” sociedade vitoriana. Todavia, se por um lado há uma dinâmica da censura impingida por um poder jurídico-discursivo, por outro, há uma incitação discursiva. O sexo foi calado, para ser apropriado discursivamente segundo demandas específicas. Curioso paradoxo constituído por uma incitação discursiva em meio a restrições coercitivas da fala. A igreja, no início do século XVII,

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distintas formas de apreensão: “[...] uma moral, sobre um fundo do razoável; outra, objetiva e médica, sobre um fundo de racionalidade.” (FOUCAULT, 2005a, p. 184). A primeira implica necessariamente uma concepção filosófica que liga a loucura a falta de razão que pode ser combatida através da persuasão da alma e da educação. A segunda é oriunda dos movimentos involuntários da bílis e liga- se, portanto, a causas que seriam orgânicas. Entretanto, a partir do século XVIII essas duas formas encontram-se emaranhadas organizando a unidade de uma única e mesma loucura. O louco não é objeto de análise, para a compreensão da loucura durante o classicismo, sua verdade é incessantemente calada há a pretensão de questionar a loucura nela mesma.

evidencia-se como expoente máximo desta incitação, sobretudo, após a contra- reforma e o concílio de Trento. Segundo Foucault (1977, p. 30):

A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra. A interdição de certas palavras. A decência das expressões, todas as censuras do vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de torná-lo moralmente aceitável e tecnicamente útil.

Seja para calá-la, ou para incitá-la de modo institucionalmente adequado, o fato é que a sexualidade torna-se um objeto de interesse no início do classicismo. A sexualidade na segunda metade do século XVIII pode ser circunscrita no âmbito da utilidade pública, tendo em vista, principalmente, o controle demográfico das populações e da utilização das riquezas. Este fenômeno próprio do período que coincide com o iluminismo não pode, entretanto, ser tomado como fator predominante. A apreensão técnica, econômica e política dos efeitos da sexualidade, embora estabeleça raízes profundas, não foi um fenômeno hegemônico nestes dois séculos em questão. Foucault (1977, p. 51) vai além, inclusive, ao nos afirmar que:

Toda esta atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da sexualidade, há dois ou três séculos, não estaria ordenada em função de uma preocupação elementar: assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora? [...] Não sabemos ainda se é esse, afinal de contas, o objetivo.

Não estamos assim autorizados a interpretar este interesse pela sexualidade como uma tentativa de controle estritamente político e econômico. Ainda mais, tendo em vista que, estas apropriações políticas e econômicas somente despontam de modo expressivo na segunda metade do século XVIII. O que podemos afirmar, entretanto, de modo concreto é que a sexualidade foi submetida aos rigores do dispositivo de aliança e que se ela foi obrigada a se confessar o fez em virtude de uma coação e de uma adequação moral imposta pela igreja. De acordo com o pensador francês:

[...] a pastoral cristã procurava produzir efeitos específicos sobre o desejo, pelo simples fato de coloca-lo integral e aplicadamente em discurso: efeitos de domínio e de desinteresse, sem dúvida, mas também efeito de reconversão espiritual, de retorno a Deus, efeito físico de dores bem-aventuradas por sentir no seu corpo as ferroadas da tentação e o amor que lhe resiste. (FOUCAULT, 1977, pp. 32-33).

Foucault possibilita-nos, deste modo, interpretar a incidência do poder sobre a sexualidade como uma tentativa de adequação a moralidade burguesa ascendente. As novas normas de decência, a restrição dos discursos e toda a economia direcionada a prática sexual foi imposta por um esforço de contenção e de controle imposto pela igreja. Além disso, a sexualidade submetera-se as prerrogativas da manutenção de classe e da homeostase social. A confissão, entretanto, não era prerrogativa dos procedimentos eclesiásticos, ela estava ainda mais profundamente arraigada no classicismo. É o que podemos constatar na estrutura do suplício.

Durante o classicismo os processos criminais eram conduzidos em sigilo, sem a presença do acusado. As acusações, provas, depoimentos e imputações não eram conhecidas pelo réu (que nem mesmo poderia dispor da assistência de um advogado durante o processo). O magistrado recebia denúncias e poderia, inclusive, interrogar capciosamente o indivíduo implicado em um processo criminal. O acusado somente era formalmente ouvido uma única vez antes que a sentença fosse proferida. O segredo e o silencio atestam o direito absoluto da produção da verdade e do poder de julgar da justiça e do soberano.

Todo um complexo regime de provas e evidências persistiu durante o período clássico formando uma incompreensível aritmética casuística. As provas dividiam-se de acordo com um sistema hierárquico de relevância que consistia desde o levantamento de indícios (que poderiam ser eventualmente desmentidos pelo acusado) como até por testemunhos sustentados na relevância social do depoente. Além disso, as provas poderiam ser consideradas isoladamente (como por exemplo, a constatação pública de um assassinato) como também em combinações de indícios. Uma série de gradações foi constituída (provas plenas, semiplenas, indícios imperfeitos etc.). Esta composição baseada em gradações hierárquicas de relevância e em combinações de evidências com provas menos

expressivas foi dividida em um inextrincável sistema de classificação que se propunha, acima de tudo, a induzir o acusado a confissão do delito.23

A confissão é a prova decisiva e determinante. Dispensa, inclusive, a presença de outras provas. É a vitória que a justiça obtém diante do sigiloso processo sabiamente construído pela sua autoridade unívoca. O criminoso passa a ser a verdade viva e a peça complementar de um processo secretamente escrito. A confissão atua como autenticação do processo pelo acusado. Sobre as demais provas de um inquérito, a confissão...

[...] Até certo ponto [...] as transcende; elemento no cálculo da verdade, ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bem fundamentada; transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária. Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal. (FOUCAULT, 2007c, pp. 48-49)

Contudo, permanecem ainda algumas ambiguidades diante da utilização da confissão. Por um lado é considerada uma prova forte e apesar disso, deve, necessariamente, entrar no cálculo das demais provas (pois, alguns acusados confessavam crimes não cometidos). Por outro, por ser a mais relevante de todas as provas, pode ser obtida pelos mais distintos meios coercitivos. É assim que usualmente ela foi obtida através do juramento (com as mais diversas ameaças diante da possibilidade de perjúrio), prestado pelo acusado antes do interrogatório, ou pela tortura. A tortura é um suplício a parte da pena. Estritamente regulamentada, com instrumentos meticulosos e precisos, ela produz um duelo entre o acusado e o acusador a fim de que a verdade seja produzida. Caso o “paciente” resista, as provas colocadas em questão são desconsideradas e o acusado pode até mesmo

23 Segundo Foucault (2004, p. 33):

“[...] Ainda no século XVIII encontravam-se regularmente distinções como as seguintes: as provas verdadeiras, diretas ou legítimas (os testemunhos, por exemplo) e as provas indiretas, conjeturais, artificiais (por argumento); ou ainda as provas manifestas, as provas consideráveis, as provas imperfeitas ou ligeiras; ou ainda: as provas „urgentes e necessárias‟ que não permitem duvidar da verdade do fato (são provas „plenas‟: assim duas testemunhas irrepreensíveis que afirmassem ter visto o acusado com uma espada nua e ensanguentada na mão, a sair do lugar onde, algum tempo depois, foi encontrado o corpo do morto marcado por golpe de espada); os indícios próximos ou provas semiplenas, que se podem considerar verdadeiras enquanto o acusado não as destruir com uma prova contrária (prova „semiplena‟, como uma só testemunha ocular, ou ameaças de morte que precedem um assassinato); enfim os indícios longìnquos ou „adminìculos‟ que consistem apenas no parecer dos homens (opinião pública, fuga do suspeito, sua perturbação ao ser interrogado, etc.).”

ser absolvido. Todavia, a incitação à confissão não se limita ao processo judicial, ela se apresenta de inúmeras maneiras no decorrer do suplício.

A exibição pública do condenado possuí algumas características específicas. Primeiramente ele é considerado o emissário de sua própria condenação. Seja através de cartazes, proclamações, leituras de documentos ou mesmo da confissão pública ele deve dizer o que fez. Em segundo lugar prosseguir ainda mais na confissão. Isto é, durante o suplício a que é submetido o condenado deve dizer a verdade sobre a realização dos seus atos, ainda mais uma luz deve pairar sobre ele afim de que toda a verdade seja elucidada. Em terceiro lugar, relacionar o suplício com o crime. Execução do supliciado no local que cometeu o delito, amputação da mão assassina, perfuração da língua blasfemadora, etc. Por fim, o suplicio deve desenvolver-se como ritual judiciário que reconstitui a verdade do crime através do sofrimento imposto. A lentidão, a intensidade e a localização dos ferimentos relatam o delito cometido em sua totalidade.

O poder jurídico-discursivo é a notória imposição do lícito e do ilícito. Ele se apresenta desvelado como limite impositivo e facilmente observável. É o signo de interdição fixado no seio da sociedade. Sua forma de manifestação é a evidência coercitiva que se manifesta desde as formas da reclusão até o suplício. Toda a economia interna do suplício exalta-o. Este poder tem por finalidade criar visibilidades específicas. O acusado torna-se inicialmente visível apenas para o âmbito jurídico através da imposição do sigilo e dos mecanismos de extorsão que o incitam a confessar. Mesmo o juramento, que é obtido sem a utilização da tortura, refere-se a penas que pairariam sobre um eventual perjúrio (imputações penais, castigos post mortem, etc.), a tortura, propriamente dita, visa evidenciar a verdade sobre o corpo ferido tornando visível o discurso do acusado. O suplício em suas engrenagens afirma constantemente, o delito, a pena, e o criminoso. Enfim, o suplício é, em suma, o mecanismo de visibilidade por excelência. Sua intenção não

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