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HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS

1.1 A historicidade na ciência da linguagem

A ciência moderna se constituiu, histórica e predominantemente, por formações discursivas que a legitimaram como conhecimento objetivo, universal e intangível do mundo. Para sustentar esse discurso, houve um apagamento de suas condições de produção, que, nesta conjuntura, atravessariam o poder ora estabelecido por esse discurso dominante. Porém, segundo Auroux (2008), o conhecimento científico só pode se dar em um meio histórico, ou seja, seu acontecimento só se dá em e por determinadas condições materiais. Não há como se considerar a produção do conhecimento científico como uma prática abstrata, fora de seu contexto. Por isso, o autor vai explicar que a ação do tempo na ciência não é semelhante a que ocorre sobre os organismos vivos. Estes sofrem mudanças físicas, causadas por uma ação do tempo, ainda que não operem nenhuma (re)ação sobre isso. Com a ciência é diferente. Os conhecimentos humanos só podem ocorrer no tempo, mas não entendido aqui como cronologia, e sim, como determinações espaço-temporais específicas, ou seja, condições sociais e históricas, que favorecem ou não a produção de determinado conhecimento.

Se o conhecimento científico é assim produzido, a escrita de sua história exige que se empreenda, igualmente, a historicização de seu aparecimento, ou seja, pressuponha a existência de condições sociais, históricas e teóricas específicas, em sua formação e surgimento no tempo, “desautomatizando as narrativas cronológicas e os relatos tornados oficiais” (Guimarães, 2002, p. 23). O importante deverá ser a

compreensão das instâncias e circunstâncias, sejam elas sujeitos ou instituições, que determinam a constituição de uma área do saber.

Ao invés de dar como dada, portanto, uma (história da) ciência com seus conteúdos já pressupostos, somos críticos ao conteudismo, e preferimos pensar essa história discursivamente e, então, não é seu conteúdo, mas seu funcionamento que nos interessa. Assim, não pressupomos a sua existência já-lá, em um efeito de objetividade prévio, mas a consideramos em sua objetividade material contraditória, memória discursiva, em uma palavra, a observamos em sua interdiscursividade, em seus efeitos de arquivo. Podemos então apreciar o movimento da produção da ciência como algo nada linear, mas, ao contrário, cheio de efeitos de preconstruídos e de implicações e consequências muito dinâmicas e, não poucas vezes, controversas (ORLANDI, 2012, p. 20).

Diante disso, entendemos que uma história da ciência não se fará pela escrita de sua cronologia, estruturada em datas distribuídas em passado, presente e futuro. Acontecimentos históricos não são compreendidos, aqui, pela sua simples presença no tempo. Ao contrário, preferimos a noção de temporalidade como suporte para acontecimentos. Segundo Guimarães (2005), “algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria ordem” (ibid., p. 11) e o que caracteriza essa diferença é que “o acontecimento temporaliza” (ibid.). Dito de outra forma, o acontecimento em si, pela força de sua diferença em relação à ordem anterior, instala sua própria temporalidade, compreendida como um presente que se lança a uma futuridade, à latência de futuro (ou seja, à possibilidade de projeção) e um passado que sustenta a possibilidade de novas significações. O passado não é rememoração de acontecimentos, mas o funcionamento de uma memória que trabalha na produção de novas temporalizações. “É nesta medida que o acontecimento é diferença na sua própria ordem: o acontecimento é sempre uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade de tempos, sem a qual não há sentido [...]” (ibid., p. 12).

Compreende-se, a partir disso, que os fatos históricos (no caso, da ciência) são investidos de sentidos (historicidade), produzidos pelos sujeitos da ciência, nas

condições históricas e políticas gerais de um determinado espaço-tempo, o que leva, certamente, a transformações, retificações e articulações, em um campo do conhecimento. Nessa mesma direção, Auroux (2008) vai mostrar que a ciência é menos um sistema de verdades do que uma atividade social, que, por sua vez, funciona por meio de componentes que tentam dirimir ou minimizar as contradições internas que uma atividade desta natureza apresenta, a saber: um componente teórico, que são seus aportes teóricos; um componente prático, que consiste em valores científicos (o caráter desinteressado da ciência e o interesse pelo conhecimento) e normas; e um componente sociológico, ou seja, ela se faz por e para um grupo organizado de pessoas especializadas, em uma instituição própria. Em outras palavras, o modo acontecimental da ciência se dá por meio de uma instituição que organiza uma prática e esta vai se definindo na relação a uma teoria. Esses componentes teriam a função de dar sustentabilidade ao caráter de verdade da ciência. Porém, a sua natureza social apresenta ainda outras dificuldades e vicissitudes, por exemplo, comunidades científicas que sofrem com dissidências internas, apagamento de grupos por avaliações negativas, políticas públicas desiguais de apoio à pesquisa, desconfiança do público sobre seus membros e suas pretensões nas pesquisas, além do contexto democrático em que se vive, atualmente, a maior parte do planeta, que deixa, expostos e abertos a opiniões gerais e decisões da maioria, assuntos que seriam, eventualmente, tratados por especialistas acadêmicos.

Diante dessas relações de forças, muitas vezes, desiguais e contraditórias, Auroux (ibid.) vai afirmar, que, entre as teorias e os atos institucionais, há uma complexidade de causalidades que não se resumem no fato de a instituição ser considerada, muitas vezes, apenas como o lugar de divulgação daquilo que é produzido teoricamente. São essas relações de sentidos que trabalham na constituição, transmissão e circulação do conhecimento científico, que a historicidade quer compreender. O que invalida o pressuposto idealista de ciência é a história real da sua prática: “a edificação difícil, contrariada, retomada e retificada do saber” (LECOURT, 1980, p. 59). O desenvolvimento das ciências e das teorias implica a permissão de sentidos, o bloqueio de outros, facilitando a disseminação de uns e impedindo outros. O histórico determina os sentidos, que nunca são os mesmos, pois “a construção de um quadro teórico não

consiste em um já-lá estável. Um campo teórico é incompleto, porque consiste numa produção discursiva de sujeitos” (MUTTI, 2003).

Pela historicidade, há um enfraquecimento do discurso idealista da ciência em direção a uma posição materialista, que considera a existência dos fatos na medida em que os sentidos, que os constituem, se movem em determinadas direções. Não se está atrás da essência das coisas, nem do conhecimento de uma realidade escondida no interior dos fenômenos humanos e sociais, pois, na perspectiva materialista, a compreensão se debruça, não sobre as coisas em si, mas sobre os modos pelos quais (na articulação da língua com o histórico) essa realidade é percebida e configurada nos desdobramentos, revisões e reconfigurações constantes de uma área do saber. É a história desse movimento de sentidos que interessa à historicidade.

Porém, o discurso da ciência como modo seguro de explicar o mundo, feito por cientistas, apartados das condições materiais de sua existência, ainda significa fortemente, em uma conjuntura, cujo mito da cientificidade que tudo pode definir predomina. “Apagam-se as filiações teóricas e se usam os conceitos como se fossem palavras do senso comum, despidas de historicidade. Apaga-se a ideologia e a história. Silencia o político” (ORLANDI, 2012, p. 26). Nessa perspectiva não se leva em conta que o real dos fatos não é acessível diretamente, nem ao sujeito da ciência nem tampouco ao historiador da ciência, já que são constituídos ideologicamente e seu conhecimento é uma prática que sofre as determinações históricas da sua conjuntura social, assim como os efeitos do funcionamento de uma memória que gesta falhas e incompletudes; provoca deslocamentos, rupturas e esquecimentos. “Como afirma Orlandi (2006), ‘não há ciência que não se assente em pressupostos (teorias) políticos e cujos resultados, em sua prática, não tenham consequências sobre os sujeitos, a sociedade e a história’” (PFEIFFER, 2007, p.19), ou seja, não há conhecimento científico instantâneo, fora do tempo e da história, que não se produza a partir de uma dimensão retrospectiva e se projete para o futuro.

Todo conhecimento é uma realidade histórica, sendo que seu modo de existência real não é a atemporalidade ideal da ordem lógica do desfraldamento do verdadeiro, mas a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber. Porque é limitado,

o ato de saber possui, por definição, uma espessura temporal, um horizonte de retrospecção (Auroux, 1987b), assim como um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o fazem trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente com frequência; ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro sonhando-o enquanto o constrói. Sem memória e sem projeto, simplesmente não há saber (AUROUX, 2009, p. 12).

Na perspectiva da retrospecção e da projeção, pode-se compreender o modo como uma ciência se organizou para resolver uma questão e até mesmo como foi se dando o surgimento e a formulação de uma tal questão. Constroem-se relações, identificam-se filiações e percursos de sentidos, enfim, toma-se a história da ciência no funcionamento mesmo do processo de produção do conhecimento e não como algo já posto ou produto acabado. É fundamental que se compreenda “a história efetiva do conhecimento científico: suas rupturas, reorganizações, insucessos, contradições, riscos...” (LECOURT, 1980, p. 24). Segundo Auroux (2008), levar esses aspectos em conta é aceitar “as modalidades intrínsecas de afetação temporal dos objetos (a sua ‘historicização’, ou seja, o seu modo de ser na ‘história real’)” (p. 148). Desta forma, não se dá conta dos objetos das ciências (conceitos, formulações, inventos, descobertas, tecnologias) como ações isoladas de indivíduos particulares e atemporais, mas, pelo contrário, inserem-nos na complexidade das relações sociais e históricas materiais de sua produção. Portanto,

(...) a história da ciência não é indiferente às condições em que sua prática se constitui, não sendo homogênea e sendo sensível a processos científicos que derivam de histórias particulares, regionais, ou melhor, territorializadas. Além dos aspectos cognitivos, a ciência carrega também aspectos sócio-culturais e disciplinares (ORLANDI, 2009, p.122).