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Analisando as sequências discursivas das entrevistas com os pesquisadores, fomos construindo, no decorrer desse trabalho, uma rede de sentidos, que nos levou a diferentes modos de como a presença da Análise de Discurso no Brasil é compreendida e historicizada. A partir de gestos de leitura sobre esses recortes, fomos compondo diferentes sentidos para os processos históricos de surgimento, desenvolvimento e estabelecimento de um lugar teórico-institucional para a Análise de Discurso no país.

A contradição do objetivo/subjetivo; interior/exterioridade; mesmo/diferente; produto/processo; tem constituído o processo discursivo do percurso da Análise de Discurso no Brasil, produzido na voz dos pesquisadores da área. Tal contradição não é tomada como algo externo ou que se acrescenta em determinados períodos de sua presença no Brasil. Pelo contrário, a contradição é constitutiva da Análise de Discurso, é sua marca de nascença, enquanto se insere no campo da Linguística, mas lhe lança diferentes questionamentos; ou demarca seus limites de atuação, mas na abertura a interfaces que possibilita com outras áreas; ou quando diz o que não é para dizer o que é; ou, ainda, quando, por relações de força e de sentido, sofre resistências e percorre um processo de institucionalização no qual chega a circular em espaços de produção de conhecimento, sem que seja designada como tal. “(...) eu direi simplesmente, no nível dos meus conhecimentos, o que parece se construir em contradição ou em rejeição à AD é tudo aquilo que é reivindicado como vindo da AD” (MAZIÈRE, 2011, p. 17).

Talvez houvesse como motivação inicial desta pesquisadora uma percepção quase que ingênua sobre a possibilidade de se encontrar uma configuração original da Análise de Discurso e a identificação precisa de seus desdobramentos. Ao final desse trabalho, compreende-se que a Análise de Discurso se configura por/em lugares teórico- metodológicos, que se fazem nas relações entre flutuações na teoria e suas bases fundadoras. Dito de outra forma, o sentido de não-lugar, que diversas vezes surgiu nos enunciados dos pesquisadores sobre a Análise de Discurso, é o seu lugar, de onde sua constituição plural se faz em um constante movimento de construção e reconstrução de seu território.

As análises empreendidas neste trabalho vão na direção de fazer ver que os contornos teórico-metodológicos da Análise de Discurso, em suas diferentes vertentes no Brasil, se estabelecem por um movimento que vai da fixidez à flutuação, além de marcas de tensões, vicissitudes e rupturas de uma produção científica cotidiana, muitas vezes, em alguns campos do conhecimento, silenciadas.

Essa percepção foi resultado da articulação entre História das Ideias Linguísticas e uma abordagem discursiva, que tornou possível, pelo questionamento dos efeitos de evidência, produzidos nas entrevistas, indicar marcas de uma historicidade produzida nos/pelos dizeres, ou seja, gestos de interpretação que historiciza(ra)m o percurso da Análise de Discurso no Brasil, os quais foram nos fornecendo efeitos de deslocamento, rupturas e permanência de sentidos para a teoria, em solo brasileiro, nos últimos 40 anos, e permitindo a constituição discursiva de um espaço teórico- institucional para a Análise de Discurso.

O trabalho analítico, nesta perspectiva, expôs o enunciado à opacidade de leituras lógicas de “regiões heterogêneas do real” (PÊCHEUX, 2008, p. 32), a qual

(...) imerge o enunciado em uma rede de relações associativas implícitas – paráfrases, implicações, comentários, alusões, etc – isto é, em uma série heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma estabilidade lógica variável (ibid., p. 23).

Ora, o trabalho do analista de discurso é criar um espaço de crítica e análise no interior mesmo de uma estrutura social, política, ideológica, já estabelecida, na qual ele também se encontra. “É uma estrutura que contesta o espaço onde se localiza” (PETRI, 2013, p 45). Pelos dizeres analisados, em uma perspectiva que leva em conta o “próprio da língua” (o deslize, o equívoco), pudemos mostrar não um saber fixado previamente sobre a Análise de Discurso, mas um saber que se atualiza e se transforma pelo trabalho de uma memória, que mobiliza sentidos, ora retomados, silenciados ou deslocados, “movimentando as práticas sociais já instituídas” (ibid., p. 46), no caso, as que se referiam ao campo teórico-científico e institucional da Análise de Discurso. “O analista

de discurso instala-se no interior mesmo do espaço discursivo para dali compreender a produção de sentidos” (ibid., p. 46). Desta forma, acontecimentos históricos vão sendo ‘lidos’ em vista das regularidades, na sua produção de sentidos, como fatos discursivos. Nessa postura teórico-metodológica há uma implicância ética, porque vai se desvelando, no caso particular dessa pesquisa, uma prática científica atravessada pela história, a língua e a ideologia, a qual não se deve silenciar.

Primeiramente, pudemos dar visibilidade a marcas que nos ajudaram a compreender um sentido de identificação pela negação: os pesquisadores percorrem um longo caminho dizendo o que a Análise de Discurso não é para tentar delineá-la. A identificação tem significado enquanto se afirma na contraposição do Outro; ou seja, a teoria é dita por aquilo que não é em relação ao que é o Outro. A indefinição, em muitos dizeres, abre espaço, então, para a interpretação, que se dá sobre pré-construídos acerca da própria Análise de Discurso e, algumas vezes, sobre simulacros de outras teorias linguísticas. Ela é compreendida por um efeito de mobilidade, produzido fortemente nas tentativas de demarcação que se fazem quase sempre pelo seu oposto, pelo que não é, pelo seu Outro. Ela vai se (re)definindo na contraposição com teorias linguísticas, sociais, significadas como áreas já estabelecidas no cenário científico. Depreende-se daí, também, o funcionamento do político e do científico, pois, quando se tenta demarcar o campo teórico da Análise de Discurso a partir de suas diferenças com outras áreas da Linguística, ficam postas essas mesmas áreas como ponto de referência para a demarcação daquela. O ponto de referência para a Análise de Discurso enquanto área do conhecimento linguístico se encontra, em alguns recortes analisados, fora dela, em áreas historicamente predominantes na Linguística. O movimento entre o que a Análise de Discurso não é e o que ela traz de novidade, os equívocos na formulação de tempos verbais, o uso de metáforas, o relato das idas e vindas nos percursos intelectuais e acadêmicos dos pesquisadores, foram marcas de uma materialidade histórica que sugere um campo do conhecimento, organizado teórica e institucionalmente em áreas, de certa forma, predominantes, no qual a Análise de Discurso foi provocando uma reconfiguração, a fim de criar espaços para estabelecer-se.

A regularidade da identificação pela negação foi permitindo compreender que o campo da Análise de Discurso se faz por fronteiras e limites delineados

constantemente. Como diz Ferreira (2007, p. 20), “são fronteiras rarefeitas que funcionam como limites e não como limitações”. Nessa perspectiva, a negação sugere uma impossibilidade e uma dificuldade de demarcação do campo pela asserção afirmativa.

Ainda nessa perspectiva, pode-se tentar compreender que o sentido de identificação pela negação, marca, nos dizeres analisados, o modo de enfrentamento, de maneira especial, no surgimento da Análise de Discurso no Brasil, de um embate em torno de uma questão diferencial com outras teorias linguísticas, a saber: a abordagem da língua. O entendimento sobre a língua que a Análise de Discurso introduzia pode ser tomado como um ponto central nas relações de força, de sentidos e de confronto com outras áreas da Linguística e das Ciências Sociais.

Nessa direção, há a construção de um espaço tensionado, no qual a Análise de Discurso é compreendida, ora como um campo aberto de conhecimento, ora um campo demarcado, com limites. Nota-se a seguinte tensão nos dizeres dos pesquisadores: a Análise de Discurso busca uma demarcação, mas se configura também nas interfaces que promove, o que leva a pensar que, institucionalmente, havia uma necessidade de estabelecimento de um espaço definido em meio a uma configuração institucional já existente e organizada (distribuída) entre as teorias da época. Porém, teoricamente, a Análise de Discurso se compreende como um campo aberto e de possibilidades várias. É esse movimento duplo de abertura e fechamento, de pluralidade e demarcação, que se percebe nas análises. Alguns dizeres, quando pretendem demarcações sobre a teoria, produzem equívocos em metáforas que constituem, justamente, um sentido de pluralidade e fluidez, e comparecem, também, em uma compreensão da teoria como um campo aberto, dizeres que remetem à cautela e a temores diante dos perigos da indefinição ou indistinção. Essas associações são produtivas a partir do ponto de vista de uma regularidade de contradição na compreensão da Análise de Discurso. Com isso, constitui-se também uma posição de contradição para o pesquisador.

Pudemos compreender que esse processo histórico é marcado como tendo se iniciado com a ruptura que a Análise de Discurso estabelecia com filiações linguísticas formalistas que carregavam sentidos de identificação com a área da Linguística, o que fez com que a Análise de Discurso fosse compreendida como estudos fora dos limites

desse campo do conhecimento. Esse processo histórico só pôde ser compreendido, na medida em que as análises ajudaram a perceber a produção de efeitos metafóricos, constituindo tais lugares de sentido para a teoria e de sujeito para os pesquisadores.

A relação discursiva ora construída entre Análise de Discurso e outras filiações linguísticas foi produzindo sentidos de confronto de ordem teórica, institucional e política. O surgimento da Análise de Discurso nas instituições, segundo alguns recortes, por meio da produção de artigos, livros, organização de eventos, fez remissão a controversas teóricas e institucionais que puderam nos dar a compreender, de uma forma mais clara, a relação entre produção de conhecimento e o político, ou seja, como a inscrição em determinadas filiações se faz nas relações políticas (de divisão social e simbólica), que vão se formando nas instituições. Os enunciados foram nos trazendo o real da história no ambiente científico, que acontece nos equívocos, nas ‘curvas’, nas falhas, pois pudemos ter a compreensão de que a produção científica não acontece desvinculada do cotidiano institucional, mas, pelo contrário, ela carrega as divisões territoriais do espaço científico. Como diz Lecourt (1980), a história do conhecimento científico não é linear, mas traz rupturas, reorganizações e contradições. É o modo de ser do conhecimento científico na “história real”, como também vai dizer Auroux (2008).

O presente trabalho possibilitou-nos compreender a presença da Análise de Discurso no Brasil como um percurso não linear, de tensões e contradições, cujo percurso não se faz dividido em períodos e tempos cronológicos, mas em diferentes temporalidades, sejam em torno das diferentes inscrições teóricas dos pesquisadores; sejam temporalidades nas quais a Análise de Discurso foi posta como um divisor de águas nos estudos linguísticos, uma ruptura, uma novidade em uma determinada ordem; ou ainda nas temporalidades em que os sujeitos-pesquisadores foram se constituindo em diferentes posições teóricas no interior dos desdobramentos da Análise de Discurso. Se, nesta pesquisa, não se trata de recorrer à memória de arquivo, mas ao interdiscurso, o trabalho lida com fragmentos, sentidos à deriva, que retornam ou avançam, conforme diferentes posições-sujeito assumidas nos dizeres dos entrevistados.

Com essa pesquisa, tem-se a percepção de um amplo horizonte de retrospecção, que vai possibilitando determinadas condições de produção de um espaço científico e

político no qual a Análise de Discurso estabelece seu lugar. Nesta historicidade, pudemos perceber que a Análise de Discurso sofreu resistências, entrou em atrito e foi se delineando, teórica e institucionalmente, como uma teoria brasileira. O espaço brasileiro, as demandas com as quais a teoria foi aqui se encontrando, de ordem prática, institucional, social, política e/ou epistemológica, as diferentes materialidades (registros discursivos ou objetos simbólicos), as novas linguagens (tecnologias), enfim, as fronteiras abertas e estimuladas à interface, tornaram a Análise de Discurso, em suas diferentes vertentes, uma teoria com efeitos de brasilidade.

Nestas considerações finais, diante do objetivo primeiro de se compreenderem os modos pelos quais a Análise de Discurso se significa em sua presença neste país, levando-se em consideração os limites dispersos dos dizeres dos entrevistados, as direções opostas de sentidos e o funcionamento da memória, conclui-se que definir contornos teóricos e metodológicos das diferentes vertentes da Análise de Discurso não é uma tarefa fácil. Ainda que se queira evitar diluições teóricas por um lado e ortodoxias por outro, o que se vê circulando no espaço científico, marcado neste trabalho, são movimentos constantes de deslocamentos de conceitos, interrogações, desconfortos e estabilidades provisórias. “Há continuidades na AD que nos são frequentemente escondidas pelo efeito das mudanças, e há mudanças que fazem a AD continuar, enquanto teoria emancipadora” (MAZIÈRE, 2011, p. 33). É o que afirma Auroux (2008), quando diz que, entre as teorias e os atos institucionais, há uma complexidade de causalidades, que se relacionam, se imbricam e se embatem o tempo todo em temporalidades ramificadas na constituição cotidiana do saber. Portanto, este trabalho traz marcas dessa complexidade que, por vezes, não se percebe, mas que constitui a condição material de produção do conhecimento científico. E é diante dessa complexidade que a presente escrita provocará gestos de leitura de reconhecimento, identificação e (re)memória para alguns de seus leitores mas também de recusa, oposição, não-reconhecimento e apagamento de sentidos para outros.

Enfim, remetendo-me à epígrafe deste trabalho, concluo-o sabendo que há muito ainda para ser dito e que “o melhor está nas entrelinhas”, aquilo que move as relações de força e de sentidos e que constitui registros vários da história da Análise de

Discurso no Brasil, os quais se efetivam tão-somente, na medida mesmo em que se escreve e, assim, se projetam para outros sentidos possíveis.

E a escrita é fundamental para nos dar a medida do que conseguimos e do que não conseguimos compreender/dizer na situação de análise. Apontando sempre, quando a suspendemos (nunca a terminamos), para o que fica ainda por compreender (ORLANDI, 2010, p. 20).

Nessa perspectiva de projeção de novos sentidos, compreendemos que um processo de significação se faz pelos/nos intervalos dos enunciados e que este intervalo não é ausência ou um vazio de sentidos, mas, pelo contrário, ele é preenchido pelo social. Por isso, acreditamos que há muito ainda a se dizer sobre/da Análise de Discurso que advenha desse social, entendido aqui como exterioridade, prática cotidiana de produção do conhecimento, cuja discursividade circula nos ambientes científicos brasileiros.

Considero este trabalho, de certa forma, como um acontecimento de linguagem, que diz de uma memória social que já vem sendo construída da Análise de Discurso, mas que também projeta tais sentidos incontornáveis, como bem afirma Guimarães (2005), “um acontecimento é sempre uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade de tempos, sem a qual não há sentido, não há acontecimentos de linguagem, não há enunciação” (p. 12). Portanto, a memória aqui retomada, nos recortes, traz, em seu interior, força de projeção para que novas compreensões sobre essa área de estudos do discurso possam ser produzidas e, na medida em que se efetivem, também lancem luz sobre o presente escrito.