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CAPÍTULO 1: GÊNERO E MEMÓRIA

1.3 A identidade feminina e a cidadania

A partir das formulações e reformulações da categoria gênero e as compilações da memória, chegamos à discussão que abrange a construção de uma “identidade feminina”. Tratando-se de uma época na qual as práticas identitárias, ligadas à compreensão das relações de organização familiar, diferenças sexuais, participação social, política, trabalhista e movimentos sociais pelas mulheres passam a problematizar as “feminilidades” e as “masculinidades”, os anos 1960 e 1970, em seus cursos contestatórios, fundiram grande relevância. Trazendo para a discussão Stuart Hall, vemos que:

Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constituiu o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento132.

131HEYMANN, Luciana Quillet. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória, história,

legislação e direitos. In.: Direitos e Cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 31.

132HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guaciara Lopes

42 A identidade múltipla sustentada em cada movimento, muitas vezes, não correspondia com os lados sólidos e bem configurados que a imprensa atribuía à mulher brasileira do período. Notando “versões” bem divergentes de mulheres, a partir de produções da mídia impressa, a jornalista Ethel Leon escreveu em 1976 o artigo Duas visões das mulheres no Brasil133. Na ocasião, analisou os escritos da Enciclopédia da Mulher134 da Editora Abril em comparação aos Cadernos de Debate – Mulher135 da Editora Brasiliense. Notou que havia dois níveis de preocupação com a condição das mulheres brasileiras naquela época. Prova disso, seria o total antagonismo entre as duas revistas. Disparidade que ia da abordagem sobre o papel da mulher na sociedade até a qualidade do papel de cada publicação (“diagramação do Caderno de Debate e o luxo da publicação da Abril”). A jornalista pontuava que:

Uma olhada na apresentação de cada revista já é o suficiente para que se perceba claramente as duas perspectivas, diametralmente opostas. “A coleção propõe-se oferecer às leitoras tudo o que elas precisam conhecer sobre o seu papel na sociedade e o seu pequeno-grande mundo – o lar”. De acordo com a enciclopédia, elaborada pela equipe da revista Cláudia, são 19 (não serão 18 ou 20) os assuntos de interesse da mulher “de hoje”: beleza, saúde, educação sexual, cozinha, trabalhos manuais, decoração, direito, casa, psicologia, escola, moda, dieta, ginástica, etiqueta, animais domésticos, jardinagem, lazer, gravidez e economia doméstica. Enquanto a Enciclopédia da Mulher pretende “ajudar a mulher brasileira a viver melhor”, Debate-Mulher já é bem mais modesto em seus objetivos, limitados e precisos, atêm-se fornecer dados para reflexão sobre uma parcela da enorme gama de problemas das mulheres trabalhadoras brasileiras. Deseja-se “dar voz ativa àquelas que, tradicionalmente, são personagens anônimas e silenciosas”, “auxiliar na compreensão de que, se a discriminação social da mulher está ligada a todos os outros problemas que persistem na sociedade brasileira, essa discriminação se constitui num problema específico e que deve ser tratado já”. E o terceiro objetivo “é mostrar que, apesar de o atual sistema de produção se basear na alienação da força de trabalho, trabalhar fora de casa é algo que facilita para a mulher a compreensão de seus próprios problemas”136.

Leon considerava que enquanto a Enciclopédia da Mulher era fruto de uma imprensa feminina, Debate Mulher pendia para uma imprensa feminista ou pró-feminista. Pois, Debate Mulher, segundo ela, trazia depoimentos de diversas trabalhadoras (secretária, enfermeira, professora, empregada doméstica, do ramo da indústria farmacêutica, da indústria automobilística, varredora de rua, boia-fria e apanhadora de café) e conduzia-se sob a divisão da sociedade em classes sociais: “tem consciência de que a libertação da mulher só será possível

133LEON, Ethel. Duas visões da mulher no Brasil. Jornal Opinião, RJ, Ed. 210 (1), 12 nov. 1976. 134Enciclopédia da Mulher. Fascículos elaborados pela revista Cláudia. Editora Abril. 20 p. Cr$ 9,00. 135Cadernos de Debate 2. Mulher: depoimentos sobre um trabalho ignorado. Editora Brasiliense. 48 p. 136LEON, Op. Cit., 1976, primeira coluna.

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junto com a libertação da sociedade como um todo”. Já a Enciclopédia da Mulher, dirigia-se “a donas de casa e fala de uma mulher eterna, abstrata”, “uma mulher que não existe” e que tinha no trabalho caseiro “fonte das maiores satisfações e alegrias para ela mesma, mas sobretudo para os outros” (em especial, marido e filhos). Ethel Leon inferia ainda sobre a leitora da Enciclopédia:

A leitora da Enciclopédia deve ser um agente de reprodução do papel tido como feminino em nossa sociedade. Esse papel não é apenas uma ou um conjunto de idéias, mas práticas e instituições, por trás das quais existe uma indústria da mulher ociosa (ou não). Cosméticos, roupas, objetos de decoração, sofisticações no equipamento doméstico etc. Nessa indústria se situa a indústria particular da imprensa feminina, que se configuraria na área de “lazer” das atividades da dona de casa. Portanto a Enciclopédia da Mulher (a imprensa feminina em geral) promove sua própria continuidade137. A autora lançava, portanto, pontos fundamentais presentes em nosso estudo: as continuidades próprias que a imprensa feminina, em geral, promove. Mesmo quando tenta “atualizar” a mulher, através de temáticas como a “educação sexual” ou a “psicologia”, o material da Editora Abril, dizia Leon, “apreende novas práticas sociais em seus detalhes mais supérfluos”, conduzindo-as à falta de conteúdo crítico e à banalidade. Um exemplo dado pela colunista diz respeito a “vida hippie” trazida na Enciclopédia como moda e não “no sentido de um código determinado, expressão de certas posições frente à sociedade”. Seu objetivo único seria comprar os produtos desinentes dessa voga.

A “indústria da mulher” que Leon evidenciava corresponde aos enlaces da “indústria cultural” que outrora nos chamou atenção Certeau138. Faz parte da premissa de que os contextos midiáticos que rondaram décadas imersas em movimentos contestatórios, como de 1950 a 1970, discorrem concepções de identidade feminina em suas estruturas. Mas, até onde as definições da mídia, as limitações físicas e comportamentais lançados sobre o “ser feminina”, o “ser mulher” podem interferir na consciência política entre os gêneros e, por conseguinte, na aptidão para exercerem sua cidadania? Para respondermos a esta questão precisamos dissolver discussões que rondam os diálogos estabelecidos entre memória, identidade e cidadania.

Além da esfera memorial que abarca o desejo de continuidade expressa nos materiais produzidos pela mídia dita feminina, é necessário entender na balança social os meandros representativos da memória, ou seja, as maneiras afirmativas de se projetarem as identidades

137Ibidem, quarta coluna. 138CERTEAU, Op. Cit., 1994.

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de grupos até então marginalizados numa história que abarcava os “grandes feitos políticos”, os “heróis”, a elite139. Através dos dizeres de Angela de Castro Gomes vemos que memória e identidade possuem uma relação específica:

A relação entre memória e identidade é um tema clássico nas ciências sociais, já que os grupos se constituem, também, em função de uma memória comum. Um aspecto importante nesse contexto diz respeito ao aparecimento de novas memórias no espaço público: ao emergirem na cena social, afirmando sua identidade, os grupos trazem à luz uma memória para a qual buscarão reconhecimento. Mais do que isso, entre as lutas por direitos, ganha lugar a luta por manter viva essa memória, por conquistar espaço nos discursos históricos a partir de uma revisão das interpretações do passado, por figurar nos livros e manuais escolares, por ver-se incluído no calendário oficial de comemorações, reivindicações que visam reparar o silêncio e a invisibilidade que frequentemente marcaram a vida dessas coletividades e a promover a sua integração à história da nação a partir de uma perspectiva140.

Um diálogo que se comporta como revisão identitária também da produção dos discursos, dos sujeitos e agentes que o conduzem e da maneira com a qual fazem isso. No caso das mulheres, através da reivindicação reparadora do silêncio e da invisibilidade de suas histórias e dos fazeres dessas histórias141. Ao proporcionarem uma nova perspectiva em relação às noções do ser mulher – em seu sentido plural: mulheres –, certos materiais que personificavam uma visão única, passavam a não mais fazer sentido, pelo menos não para grupos de mulheres que não se encaixavam nos perfis apregoados nas páginas desses manuais. Detalhando mais sobre os aspectos identitários, primordiais para o abarque da noção e do exercício da cidadania no Brasil, Angela de Castro Gomes vê na investigação do processo histórico dessa construção a:

[...] chave do acesso a direitos (civis, políticos, sociais, culturais, de gênero etc) e da efetivação de controles democráticos capazes de garantir a expansão desses direitos. O tema da construção da cidadania [...] foi compreendido como um longo e permanente processo de interação político-cultural que envolve tanto as instituições formais do Estado quanto entidades da sociedade civil e inclui uma grande diversidade de atores sociais, mesmo não organizados142.

139BURKE, Peter. A nova história, seu passado e seu futuro. In.: BURKE, Peter. A escrita da história: novas

perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

140GOMES, Angela de Castro. Direitos e Cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2007, p. 8.

141Em especial pelas mãos das estudiosas feministas emergentes pós-movimentos contestatórios dos anos 1960.

Judith Buther e Joan Scott, por exemplo, como mencionamos.

45 Ainda sobre a temática da construção da cidadania no Brasil, a autora e a gama de pesquisadores que fazem parte da compilação Direitos e Cidadania, organizada por Gomes, entendem que:

O tema da construção da cidadania, portanto, foi compreendido como um longo caminho e permanente processo de interação político-cultural que envolve tanto as instituições formais do Estado quanto entidades da sociedade civil e inclui uma grande diversidade de autores sociais, mesmo não organizados143.

Esse “longo caminho” rumo à construção da cidadania fervilhava na segunda metade do século XX. E é sobre este contexto no qual práticas e representações sociais passam a ser contestadas, postas a prova, como a condição das mulheres na sociedade brasileira, que lidaremos a seguir. Explorando as características históricas do cenário brasileiro das décadas de 1950 a 1970, buscaremos melhor compreender as atuações discursivas da mídia impressa por meio de suas produções destinadas ao público feminino. Em especial, dedicar-nos-emos ao conteúdo e à possível mensagem que a Enciclopédia da Mulher da Editora Globo buscava transmitir sobre as representações do feminino. Em determinados momentos veremos que a lida memorial e identitária, nesse manual, perpassará passado e futuro, através do apelo para a “tradição”.

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