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CAPÍTULO 2: AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO

2.5 Enciclopédia da Mulher

Até aqui, observamos através das revistas femininas, em especial O Cruzeiro e dos movimentos de cunho feminista, as tentativas de condicionar ou modificar os olhares sobre as mulheres – sobre suas histórias, identidades, atuações sociais e memórias. No entanto, ao tomarmos como fonte principal de pesquisa as versões da Enciclopédia da Mulher, partiremos no capítulo seguinte para uma análise mais completa e detalhada da obra, com intuito de identificar os meandros femininos e feministas nela codificados. Faremos uma compilação das temáticas que ganharam destaque e espaço nas edições da Enciclopédia, bem como as categorias adjacentes presentes no material impresso.

Este material foi produzido num período em que, como trouxemos, o feminismo se estabelecia com mais propriedade nos seus quesitos teóricos e práticos. E ao consideramos a França da segunda metade do século XX, ou seja, palco de fabricação da Encyclopedie de la Femme, mas também da prática reivindicatória sobre a igualdade entre os sexos, tínhamos um cenário onde a mulher reproduzia velhas maneiras, tabeladas num manual, ou constituía novas formas de atuação dentro da sociedade. No qual, buscar novas formas de atuação social fazia- se necessário, mas na qual a tentativa de manter um padrão feminino restrito ao lar por meio da imprensa também não ocorria involuntariamente.

Mesmo convivendo com os vários ocorrentes políticos e ideológicos que faziam dos anos 1960 diferentes em relação à década anterior, muitos dos veículos da mídia impressa dedicados a discutir a mulher, prosseguiam rumando os mesmos ideais em relação ao feminino dos anos 1950. No entanto, compreendemos que a assimilação de determinados acontecimentos na história demanda tempo para, de fato, obter seus processamentos. As novidades em ebulição, as bandeiras sociais levantadas nesse período, por questionarem ou buscarem a atualização de sistemas de pensamentos altamente impregnados culturalmente – como os traços patriarcais – detinham a carência e a maturação da apropriação274. Segundo o historiador Alberto Aggio, a própria noção de movimentos sociais foi criada nesse contexto – expressando a puberdade dos

96 eventos275. Em especial sobre o emblemático ano de 1968 e os movimentos estudantis, Aggio afirma que:

... eram absolutamente justas as reivindicações daqueles jovens em relação às questões de ordem existencial que atravessaram o movimento. A luta deles por uma liberdade mais alargada e mais profunda acabou por instaurar uma nova sensibilidade no mundo ocidental, exigindo que se repensasse as relações sociais de forma profunda. Há uma simultaneidade e, em certo sentido, uma causalidade entre os movimentos estudantis e a explosão do rock, o avanço das drogas, a liberação do corpo, a emancipação das mulheres, etc276.

A partir dessa visão sobre o relevante viés contestatório dos anos 1960 e a instauração dos preceitos neles colocados, Aggio também trabalha as fundamentações, sedimentações e rupturas da memória decorrentes do período, em especial na França, lugar onde o manual das mulheres fora produzido. Considera questões fundamentais sobre a formação de identidades, ou seja, aquilo que denomina “o autenticamente próprio”, assim como as noções de um patrimônio comum a todos. Infere, a partir disso, o exercício de construção da imagem sobre si, mas da elaboração desta perante o outro – reverberando nas percepções sobre cidadania277. Trata-se de um momento na história tomado por mudanças nos modos de ser, agir e se ver perante a si e a sociedade278.

Apesar de estarmos analisando as versões brasileiras da Enciclopédia da Mulher, a base material de sua produção veio da França – o locus circunstancial e crucial dos movimentos mais assíduos sobre a igualdade entre homens e mulheres. A ocorrência dessa aparente desarmonia do conteúdo da obra com os acontecimentos sociais pode ser explicada através da noção de Aggio de “memória em disputa”. Pois, apesar de estarmos lidando com o período vindouro dos movimentos sociais, estamos também no terreno árido da série de implantações de governos ditatoriais, principalmente na América Latina. Regimes que tiveram, inclusive, apoio teórico e moral essencial de dois dos principais palcos manifestantes do feminismo: Estados Unidos e França279.

275AGGIO, Alberto. Maio de 1968: repercussões no Brasil. Jornal da Unesp & Gramsci e o Brasil. Disponível

em: https://www.acessa.com/gramsci/?id=926&page=visualizar. Acesso em 06 ago. 2018.

276Ibidem.

277Ibidem, p. 22-49. 278Ibidem.

279Para Martins Filho, a doutrina conhecida como guerre révolutionnaire da França, na segunda metade dos anos

1950, foi adotada como doutrina oficial pelo Estado-Maior das Forças Armadas, e ajudou na campanha de ideias

que precederam o golpe de 1964 no Brasil. Segundo o autor, “ao contrário do que aparece na literatura sobre o

tema, autores franceses, e não norte-americanos, teriam sido a fonte principal do pensamento militar brasileiro nos anos de 1960”. Disponível em: FILHO, João Roberto Martins. A influência doutrinária francesa sobre os militares

97 Assimilamos, então, que as produções midiáticas, de acordo com as correntes políticas nelas circundantes, forneciam um determinado discurso. Discurso que poderia ter o intuito de manter certas regras de conduta – no caso em especial, a conservação de uma ordem por meio do comportamento feminino. Referimo-nos às inúmeras relações que a produção e veiculação de um material caro e de elaboração custosa como a Enciclopédia da Mulher pode ter tido. É nesse sentido que ponderamos o papel primordial dos meios de comunicação, em conjunto com os direcionamentos políticos, na universalização de pontos de referência. Seria a indústria cultural balizando a visão de mundo dos indivíduos, como vimos outrora em Certeau280. Ou ainda, nos termos de Renato Ortiz, seria fomentação da cultura internacional-popular281. São estratégias globalizantes de se propagar ou manter determinadas ideias em circulação, ideias referentes à disciplinarização do corpo e dos modos de ser feminino. Ao tomarmos as explanações de Michel Foucault sobre a disciplinaridade e o exercício do controle, vemos que:

A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”282.

O conjunto dessas “disciplinas”, para além do cuidado com o corpo, controla o comportamento e a linguagem do corpo. Controla de modo ininterrupto as operações do corpo – em sua relação dual: dócil-útil. Essa coerção constante, que demanda tempo, espaço e codificações acordantes de movimentos, encontramos na Enciclopédia da Mulher. Em sua forma educativa, explana imperativamente as coerções e correções a serem feitas no corpo físico e moral, no âmbito estético e comportamental. Ao dissipar em suas edições e reedições

brasileiros nos anos de 1960. Revista. Brasileira de Ciências Sociais, 2008, v. 23, n. 67, p.39-50. Disponível em: http://www.redalyc.org/html/107/10713674004/. Acesso em: 06 ago. 2018.

280CERTEAU, Op. Cit., 1994.

281ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

98 um arquétipo, uma codificação de feminino, exporta um código memorial que padroniza e racionaliza nas mulheres um ideal a ser atingido, um modo de vida a ser alcançado.

Visando a investigação desse caráter perdurado e disciplinado do ser mulher, que partimos agora para uma análise mais minuciosa do conteúdo das edições da Enciclopédia da Mulher. Realçaremos partes dos discursos presentes nas versões de 1958 e 1968 da obra. A partir daí, elucidaremos suas inferências nos processos circunscritos aos devires da memória, na laboração da identidade e na construção ou elongação da cidadania feminina. Buscaremos compreender as ações das representações coletivas (relacionadas à identidade, memória e tradição), enquanto sistemas socioculturais, que interferem nas práticas e nas apropriações da mulher283.

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