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O conceito de identidade é dinâmico, portanto esta não deve ser vista como uma entidade imaginária ou construída a partir de eventos isolados e independentes, mas sim como uma construção conjunta, elaborada nos constantes contatos entre sujeitos em contextos diversos.

Partindo do pressuposto de que a identidade é impossível sem a memória, adotamos em nossa pesquisa o conceito apresentado por Rosa (2000): identidade é um construto e se refere tanto à sensação de um “eu” permanente que perdura através do tempo apesar das mudanças (supostamente) acidentais. Para o autor, “eu sou o mesmo na foto da primeira comunhão, na

do serviço militar, ou em outra que apareço de cabelo branco” (p. 42). Porém Rosa adverte que o fato da identidade ser um construto, essa não se converte imediatamente em uma entidade, exatamente por que traz consigo um caráter relacional, no qual se desenrolam as ações dos sujeitos conscientes de suas posições. Nessas ações estão incluídas as representações e as lembranças de si mesmo.

Como vimos na sessão anterior, é por meio da memória que recuperamos os eventos de nossas vidas e as expressamos nas narrativas de nossas histórias de vida. Vimos também que nesse processo o sujeito toma consciência do que é ou de que representa, recorrendo às suas lembranças, interpretando seu passado por meio do jogo entre lembranças e esquecimentos, tendo a perspectiva do presente.

As lembranças, assim como os esquecimentos confrontados com suas experiências passadas e atuais, bem como as experiências individuais e coletivas, constituem os atos de identificação. Nesse processo destacamos o papel importante da linguagem para expressão das representações dos sujeitos nos diversos contextos e nos espaços simbólicos, de onde emergem os significados culturalmente partillhados.

Segundo Halbwachs (1990), toda memória tem uma natureza social, o que nos leva a refletir a partir dessa afirmação, tal como Rosa et al. (2000), que as memórias autobiográficas, por exemplo, não são somente memórias de experiências próprias, mas memórias que contêm informações relativas ao eu e às relações estabelecidas com os outros. Para esse autor:

As memórias autobiográficas dão um sentido de coerência, confortam intelectual e emocionalmente, além de compartilhar-se com familiares, amigos e conhecidos ligando nossa vida pessoal com a dos outros. (p. 46)

Nesta pesquisa observamos como que a partir dos relatos e enunciações, os sujeitos comunicam não somente suas experiências próprias, como também elaboram e ressignificam os acontecimentos de suas vidas em contato consigo mesmos e com os outros, em um dado momento. Esse processo que envolve as ações de recordar tem, segundo Rosa et al. (2000):

Um propósito moral com a função de mover-se para a ação em uma direção particular utilizando procedimentos de recordação particulares, chegando a converter-se em símbolos, alcançando uma significação e um valor emocional particular. (p. 47)

Partindo do pressuposto que os significados emergem de trocas dialógicas estabelecidas e negociadas no espaço cultural, nas quais os sujeitos representam socialmente suas ações, por meio de narrativas (Rosa et al., 2000; Salgado & Hermans, 2005), entendemos que o contexto cultural onde estão inseridos funciona como esteio e base para a construção da identidade, por meio de um processo de auto-interpretação, mediado por estruturas sistêmicas e narrativas. A identidade resulta dos discursos elaborados pelas pessoas e, uma vez expressos, lhes permitem compartilhar sentimentos, valores, motivações e diversos sistemas de categorização (Ricoeur, 1991; Rosa et tal, 2000).

Por esses motivos, mais do que identidade, falamos em atos de significação, que implica em processos identitários, produzidos em contextos concretos direcionados a interlocutores dialogicamente constituídos, dos quais participam várias vozes (Bakthin) e ressaltam diversas posições (I-positions), conforme Hermans (1996).

Segundo Josephs et Al. (1999), o processo de construção e reconstrução dos significados está no centro de qualquer análise do self e seu desenvolvimento. O self é uma estrutura semiótica criada por meio da ação na esfera dos significados, o que implica numa relação dialógica entre os interlocutores.

O significado do self aparece com a idéia do outro. Para Rosa (1995), a consciência do self emerge apenas quando o indivíduo é capaz de usar as vozes dos outros para se referir a si mesmo, por isso ele explica:

O self é formado pelo eu e pelo mim. O eu é o sujeito da experiência imediata e não pode aparecer na consciência, algo muito próximo ao eu transcendental. O Mim é a experiência das ações do eu; é a autoconsciência que emerge em toda a ação social capaz de mudar o eu: quando o eu fala, o mim ouve. O self é apenas possível quando as pessoas se tornam os destinatários de suas próprias ações verbais (p. 03).

Partindo dessas considerações que apontam na mesma direção dos estudos de Bruner (1986), Hermans (1996), Valsiner (2002), Brockmeier e Harré (2003), podemos dizer que o self é construído a partir do embate de várias vozes que surgem das narrativas, onde o Eu que fala é o autor e o Mim que escuta é o protagonista das histórias (Hermans, 1996). O Eu assume

várias posições no espaço semiótico (Valsiner, 2002; Brockmeier e Harré, 2003), ou seja, o self se apresenta como dialógico e é constituído com base nas relações sociais. Segundo Valsiner (2002, p. 02):

Dialogicidade é a propriedade geral dos sistemas de requerer relações entre suas partes como definitivas para o sistema. Essa propriedade é disponibilizada à pessoa por meio de seu papel como agente ativo de sua vida – na construção de seu fluxo de experimentação. Qualquer significado pode funcionar em situações dialógicas com outros apenas por meio do papel ativo do indivíduo que constrói as suas próprias relações com outros e o significado com seus diferentes contextos.

Ao narrar suas histórias de vida os sujeitos assumem diferentes posições e essas auxiliam na construção de significados resultantes das diferentes visões, sentimentos, emoções e lembranças (Bruner, 1986; Bakhtin, 1992, Hermans, 1996; Brockmeier e Harré, 2003). Sucintamente, o self dialógico pode ser descrito em termos de uma multiplicidade dinâmica de posições relativamente autônomas do Eu. Nessa concepção, o Eu tem a habilidade de se mover espacialmente de uma posição a outra de acordo com mudanças na situação e tempo (Hermans, 1999), resultando nos processos de significação e ressignificação, concebido como fluxo dinâmico e constituindo-se mediante a comunicaçao humana (Branco, 2006). Segundo a autora:

São os processos de significação que estão na ontogênese, de forma construtiva entre a “cultura” e o “sujeito”, da própria constituição do self, por nós compreendido como self dialógico. (p. 144)

A perspectiva do self dialógico implica na consideração de que as múltiplas e diferentes vozes são personagens que interagem em uma história, onde estão previstos tanto os pontos concordantes quanto as contradições que surgem desse embate. Podemos concluir que, como vozes diferentes, esses personagens trocam informações sobre seus respectivos “Mins”, resultando num self complexo e narrativamente estruturado e situado num tempo e espaço (Hermans, 1999).

Na abordagem de Hermans (1999), o self - o sentido de si - vai sendo construído pelo diálogo entre as diferentes posições do Eu (I-positions) que emergem ao longo do tempo. De certo modo, a partir da teoria proposta por este autor, o Self seria tudo isso, ou seja, as posições que o Eu assume, nas relações estabelecidas, num tempo e num espaço semióticos.

É por esse motivo que Hermans prefere a expressão 'I-positions', ao contrário de outros autores que falam na multiplicidade de selves. O que também é adequado, porém essa outra expressão estaria mais relacionada às diferentes 'formatações' sociais e contextuais que produzem diferentes identificações.

A abordagem dialógica parte dos princípios de que, primeiro, o self constitui-se a partir de relações dialógicas, com outros e consigo mesmo; e segundo, nessas relações produz-se significado. Assim o processo de construção da identidade acontece num ambiente repleto de significados e sentidos presentes nas narrativas. A identidade deve ser entendida como um processo em formação no tempo e no espaço, que necessita de uma estrutura capaz de integrar eventos temporais em uma unidade. É precisamente a qualidade única da pessoa (ego) que cria a diferença entre as múltiplas posições do EU e estabelece o espaço ou palco para a realização dos diálogos (Rosa, 1995; Valsiner, 2000).

Estudos atuais (Rosa et al., 1995; Almeida, 1999; Hall, 1999; Woodward, 2000) têm se referido a identidades construídas em contextos ampliados, permitindo a elaboração de hipóteses sobre identificações múltiplas e não mais sobre a idéia de identidade única e imutável. Assim, temos o contraste entre as concepções dos estudos clássicos e tradicionais (Geertz, 1978) que apresentam a idéia de um sujeito enquadrado num esquema rígido enquanto as perspectivas dos pós-modernistas (Hall, 1999; Woodward, 2000) apontam na direção da pluralidade da vida. Para esses autores, o sujeito pós-moderno é visto como multiplicidade de identidades, uma vez que tal conceito nao é estático.

Segundo Almeida (1999), nas ciências sociais e humanas o termo identidade era praticamente desconhecido até os anos 1950 e Rosa (1995) destaca que, de certa forma, o assunto ainda se encontra envolto em dificuldades de compreensão face à complexidade que o cerca. Somente depois desse período surge, nas diversas áreas de conhecimento, o interesse sobre a questão da identidade com outros enfoques, principalmente sobre a relação entre os aspectos pessoais e sociais. A primeira autora aponta que, na Psicologia, as noções clássicas como autoconceito, auto-imagem e auto-estima, que foram

relacionadas à identidade social, tornaram-se insuficientes na abordagem sobre a identidade porque foram trabalhadas independentemente de seus referentes sociais e pessoais.

Ao considerarmos o self dialógico, entendemos que as identidades são construídas na relação do EU com o TU, onde, ao narrarem suas histórias, os sujeitos integram tanto os aspectos pessoais quanto os sociais. Isso implica dizer que existe uma articulação entre os conceitos de identidade pessoal (unicidade e semelhanças) e identidade social (variedade e diferenças).

Ao se identificar consigo mesma e com o outro, a pessoa realiza um jogo dinâmico de manutenção de alguns elementos de sua vida e de transformação de outros sobre os sentidos de sua existência no mundo. É por meio das narrativas de suas histórias de vida que esse processo de construção conjunta se concretiza ao longo do tempo, pois, conforme pontuam Goolishian e Anderson (1996, p.193):

[...] os seres humanos sempre contaram coisas entre si e escutaram o que os demais lhes contavam; e sempre compreendemos o que somos e quem somos a partir das narrações que nos relatamos mutuamente. Na melhor das hipóteses, não somos mais que co- autores de uma narração em permanente mudança que se transforma em nosso si-mesmo. E como co-autores dessas narrações de identidade estivemos imersos desde sempre na história de nosso passado narrado e nos múltiplos contextos de nossas construções narrativas.

As narrativas se apresentam como uma maneira particular de compreendermos como as pessoas constroem os significados de suas histórias de vida. Neste estudo pensamos que os jovens com paralisia cerebral constroem suas identificações em relação com os aspectos constitutivos de suas histórias e a deficiência. O fato de eles terem nascido ou vivido desde a tenra idade com a paralisia cerebral faz com que eles aprendam a enfrentar o mundo e as limitações impostas pela deficiência. Sua inserção no contexto histórico-cultural contribui para que eles assumam características peculiares em sua vida. Porém, como eles dialogam com outras vozes, eles incorporam traços dessas mesmas vozes ao confrontarem-se com outras pessoas, com ou sem paralisia cerebral: eles assumem significados que perpassam essas vozes.

Nesse sentido observamos tanto o caráter individual de suas identificações, seus sentimentos e emoções, quanto o caráter coletivo ou social, uma vez que as relações estabelecidas com os outros acontecem por meio das interações. Assim, é provável que a construção de suas identificações aconteça pela interpretação dos significados que a paralisia cerebral tenha em suas vidas, sendo enunciadas em suas narrativas por meio de suas lembranças e memórias de suas histórias.

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