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1.2 Concebendo a deficiência

1.2.1 Deficiência: a história para além dos termos

O estudo da deficiência exige que busquemos, no processo histórico, elementos que nos permitam entender tanto sua origem como a forma que ela foi sendo construída ao longo do tempo, com um olhar que extrapole os limites encontrados apontando para novos caminhos direcionados ao aprofundamento desse fenômeno complexo. É necessário analisar como a sociedade tem visto as pessoas com deficiência, considerando, também, como os próprios deficientes se percebem e dialogam com os outros sobre a condição em que vivem, uma vez que, ao falarem sobre a realidade dos fatos, se presentifica o processo de interpretação de suas realidades (Portelli, 1996; Bruner, 1997; Brockmeier e Harré, 2003).

A questão, no entanto, transcende o uso das expressões e a utilização inadequada de termos, mesmo sabendo que tais condutas reforçam os equívocos em relação ao atendimento e também ao tratamento dispensado à pessoa com deficiência que, em muitos casos,

pode gerar e sustentar o preconceito e a discriminação. Vale ressaltar, ainda, a importância de sabermos como as diferentes correntes de senso comum e científica vêm tratando a deficiência ao longo da história. Para isto, faz-se necessário rever como os termos vêm sendo utilizados a fim de refletirmos sobre o desenvolvimento de abordagens cada vez mais fundamentadas em referenciais científicos de como os termos vêm sendo definidos, usados e atualizados.

Novos termos produzem novos significados e colaboram para a construção dos vários discursos, por isso a importância de retomarmos esse tema, a fim de ampliarmos a compreensão, focalizando não apenas a unificação dos mesmos. Segundo Wright (1983, p. 10), baseado no documento elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1980, os termos disability (incapacidade) e handicap (desvantagem) têm sido diversamente definidos e termos adicionais foram introduzidos, tais como impairment (prejuízo) e limitation (limitação) numa tentativa de se chegar a uma terminologia comum para a pesquisa na área de saúde (Haber, 1973; World Health Organization, 1980). A OMS (1980) distingue os termos prejuízo (impairment), incapacidade (disability) e desvantagem (handicap). O prejuízo representa uma perda ou uma anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica e caracteriza-se como um desvio de alguma norma no status biomédico do indivíduo. O termo incapacidade refere- se à limitação da função que resulta, diretamente, de um prejuízo de um órgão específico ou sistema do corpo. E o termo desvantagem refere-se aos obstáculos atuais que a pessoa encontra nas atividades de vida prática.

Nesta mesma linha de pensamento, Barbot (1985, p. 22) apresenta a abordagem proposta por Bury encontrada no livro L´enfant handicapé et l´école, na qual distingue três aspectos sobre as limitações das pessoas: deficiência (la deficience), situação intrínseca definida em termos anatômicos (aspecto médico); incapacidade (l’incapacité) objetivada por uma limitação de atividades (aspecto funcional); desvantagem (le handicap), que é uma conseqüência dos dois fatores anteriores, ou às vezes apenas por um deles em termos de desvantagem, gênero e dificuldade na vida cotidiana, estando relacionada aos aspectos sócio-culturais.

Com a atualização do documento proposto pela OMS, em 2001, foi realizada uma revisão do documento anterior, havendo um esforço em transformar o catálogo elaborado para servir como uma forma de classificação sobre os aspectos do processo de saúde, ao invés de uma classificação das conseqüências da doença (Diniz, 2003). Assim, deixou-se de considerar apenas os termos deficiência, incapacidade e desvantagem como norteadores de rotulação de pessoas como era sugerido anteriormente, sendo incorporados os princípios de funcionamento e capacidades, com base na relação pessoa e contexto social (OMS, 2001). Talvez possamos encontrar uma maneira de construir um modelo de saúde onde sejam previstos e incorporados os aspectos culturais, aproximando as práticas em saúde a uma visão ampliada para que a deficiência seja abordada também como uma construção social.

A despeito das definições dos termos podemos, ainda, considerar os seus impactos na vida das pessoas. A idéia não é apenas manter ou repetir os termos considerados politicamente mais corretos que têm suas bases em fundamentos norte-americanos (Eco, 1998; Freitag, 1999), e, sim, oferecer uma possibilidade de ampliação da concepção de deficiência sem reduzir o assunto apenas a questões semânticas. Nossa atenção está focalizada no argumento de que o estudo ora apresentado aborda os significados e os sentidos construídos nas relações interacionais, onde consideramos tanto os aspectos discursivos (enunciações e gêneros) quanto os conteúdos no contexto social (Bakhtin, 1982; Benjamin, 1983; Pollak, 1989; Anderson e Goolishian, 1998; Brockmeier, 1999). Ou seja, os significados de origem eminentemente coletiva, diferente do sentido que é individual, são construidos conjuntamente, na interface entre sujeito e cultura, constituindo o self, compreendido como self dialógico (Brockmeier e Harré, 2003).

Associado ao termo deficiência são utilizadas as expressões deficientes ou pessoas portadoras de deficiência, que têm sido escolhidas tanto pelo discurso institucional como pelas entidades de classe ou organizações não governamentais. São também esses os termos com os quais as pessoas preferem se identificar (Fontes, 1999). Por esses motivos, nesse estudo,

consideraremos o termo deficiência, por ser o mais utilizado e por expressar as idéias gerais sobre o assunto em questão, além de manter a coerência com os nossos objetivos no que tange à construção de significados, ficando entendido que:

Uma pessoa cria significado por meio de um sinal no aqui e agora do contexto futuro. O signo construído aqui e agora tem duas funções. A primeira de representar algo no contexto atual, essa função é bem conhecida na análise dos signos em semiótica. E a segunda função que juntamente com a primeira orienta o usuário no sentido de seguir em direção a um futuro imediato potencial. O signo prepara a pessoa para novos encontros com o mundo que podem acontecer, mas não com total certeza (Josephs, Valsiner e Surgan, 1999, p. 258).

É preciso buscar outros caminhos para romper com o preconceito e a discriminação que dificultam a aceitação das diferenças existentes entre as pessoas. Apesar das tentativas em se mudar a situação em que vivem os deficientes, ainda falta muito para promovermos um processo de inclusão social, não apenas dos deficientes, mas de todas as pessoas que constituem o universo das chamadas “minorias” que, até mesmo por serem consideradas dessa forma, convivem com a realidade cruel marcada pela exclusão social. A desqualificação que sofrem socialmente tem exigido dessas pessoas posicionamentos políticos claros e fortes de enfrentamento, porém nem sempre têm sido interpretados adequadamente. Em sua tese de doutorado, Fontes (2003) aborda também essa questão localizando o tema deficiência e mídia no contexto de exclusão, destacando que:

Se tomarmos como exemplos o caso dos negros, das mulheres e dos homossexuais, veremos que a visibilidade social e midiática destas categorias foi (e continua sendo) conquistada à custa de luta, militância e posicionamentos políticos assumidos perante o preconceito e a intolerância dos quais foram e são vítimas. (...) Com as pessoas deficientes físicas, entretanto, em termos de representação midiática, o panorama é marcado, principalmente no

Brasil, por um silêncio quase absoluto, quebrado apenas por

representações grotescas, exibidas e exploradas em programas populares que transformam deficientes em atrações espetaculares, geralmente caricaturados de dois modos distintos: na condição de vítimas, doentes, denunciantes da omissão dos serviços de saúde ou justiça, ou na condição de heróis, porta-vozes do mito da superação, segundo o qual, mesmo deficiente o indivíduo consegue realizar feitos impensáveis para um deficiente (p. 109)

Essas considerações apontam para a necessidade de medidas cada vez mais coerentes a serem adotadas pela sociedade, que contribuam para a reconstrução de uma história pautada em modelos que possibilitem uma

mudança no cenário atual. Falta-nos, todavia, atitudes facilitadoras à tomada de consciência cidadã, onde as pessoas possam assumir posições representativas dos seus desejos e mesmo suas buscas por visibilidade. Assim, uma vez tendo respeitadas as preferências das pessoas, sobre o lugar onde queiram estar e se situar, poderemos com nossas ações contradizer as seguintes palavras de Silva (1986, p. 363):

[...] a ignorada epopéia de parcelas da população mundial, através dos muitos séculos da História do Homem sobre a Terra, mostra-nos com muita clareza que a sociedade dos homens, em todas as partes do mundo e em todas as épocas, sem qualquer exceção praticamente, colocou e continuará colocando por muito tempo mais à margem de sua correnteza principal, certos tipos de indivíduos que dela poderiam fazer parte.

O desafio que o atual contexto apresenta é o de abordar a deficiência considerando sua complexidade ao orientar nossas práticas por meio do investimento nas potencialidades dos indivíduos, sem, no entanto, desconsiderar suas limitações. Conseqüentemente, significa que romperemos também com o discurso da inclusão pautada apenas na valorização dos aspectos positivos da deficiência. Para isto, é importante compreender, conforme pontua Omote (1997, p. 113):

[...] algumas mudanças ocorreram na maneira de se encarar o diagnóstico da deficiência, o funcionamento da pessoa deficiente, a prescrição de serviços especiais e os resultados obtidos de atendimentos especializados. Em todas essas questões, além do atributo anátomo-fisiológico-psicológico do deficiente, passou a ser levado em conta, cada vez mais, o contexto das relações sociais e interpessoais onde está inserido o deficiente.

Nesses termos, vale salientar que a deficiência deve ser compreendida em um sentido mais amplo, levando em conta tanto o indivíduo, a patologia, como também o contexto em que a pessoa encontra-se inserida. Isto talvez possa contribuir para a construção de discursos e práticas onde a pessoa com deficiência não seja considerada apenas como um ser diferente ou alheio a nós, o que nos exigirá a compreensão de que:

[...] qualquer defeito físico modifica não apenas a atitude da pessoa em relação ao mundo, mas também a sua interação social. A deficiência promove um tipo de cenário social diferente do das

pessoas normais. Todos os contatos com os outros, os aspectos que definem o seu local geométrico no meio social, e o seu papel participante na vida, todas as funções cotidianas são realinhadas a partir de um novo ponto de vista (Braga, 1995, p. 73).

Essa afirmação de Braga (1995) nos remete às idéias de Vigotski (1995) de que a deficiência é uma construção social e, portanto, deve ser tratada considerando não apenas os aspectos clínicos e biológicos. É importante entender e conceber a deficiência a partir das suas repercussões no desenvolvimento do indivíduo, pois, enquanto estudiosos do desenvolvimento humano, nos interessa compreender os significados históricos e culturais encontrados no contexto de exclusão os quais mediam a construção do self (Valsiner, 2002) nas narrativas de histórias de vida.

É nessa perspectiva que desenvolvemos esta pesquisa, tendo definidos os objetivos relacionados à identificação das pessoas com deficiência e à construção dos significados do self, atentando para os contextos culturais onde estão inseridos, nos quais emerge um novo sistema global heterogêneo. É por isso que devemos “focalizar nossos estudos nas zonas do contato das culturas, nas complexidades do self, da identidade e na experiência da incerteza” (Hermans e Kempen, 2003, p. 1.111). A exigência fundamental é que consideremos, também, os efeitos que a longa história pode ter sobre os significados do que são essas pessoas, de sua identificação, de sua inclusão na sociedade e do seu processo de socialização.

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