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A Identidade profissional: a constituição do ser professor-formador

CAPÍTULO 1 O ACOMPANHAMENTO NA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

1.2. O acompanhamento da escrita autobiográfica prática e formação

1.2.3 A Identidade profissional: a constituição do ser professor-formador

Sim, sou eu, mesmo, tal qual resultei de tudo... Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou... Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma... Fernando Pessoa

Tal qual a citação acima, somos muitos em um. Ao nos constituirmos pessoa e profissional, somos partes de um todo e um todo em partes. Quero dizer com isso que somos sujeitos de relações e, a partir delas, construímos nossas identidades pessoais e profissionais.

Essa posição toma a concepção da dialogicidade do sujeito constituídos de diversas vozes (BAKHTIN, 2010). Essa afirmação assume que a formação humana começa com um mergulho no grupo social através da linguagem. Ela agrega os sujeitos de uma coletividade e os torna pertencentes a um mesmo grupo social que marca suas singularidades.

É com essa apropriação que entendo a identidade constituída pelos sujeitos. Claude Dubar (1991, p. 105) considera identidade como sendo “o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e as instituições”. Com base nesta visão multifacetada de identidade, pretendo estabelecer um diálogo para compreender como se dá a construção da identidade das professoras- formadoras.

O entendimento do termo construção de identidade profissional parte da ideia de que a identidade, seja ela pessoal, seja profissional, ocorre em um movimento constante de construção, desconstrução e reconstrução que o sujeito, no nosso caso, o professor, em suas várias dimensões (histórico, político e social), estabelece consigo e com os outros o seu processo de formação e desenvolvimento profissional.

Ao se referir a identidade pessoal, Giddens (2002) revela que esta pode ser encontrada no comportamento, nas reações das pessoas e dos outros, pois se insere na capacidade que o indivíduo possui de manter-se em sua narrativa

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Com Berger e Luckmann (1985), a identidade é configurada como um elemento chave da subjetividade e da sociedade. Ela vai se formando e remodelando-se através dos processos e das relações sociais. Para os autores, a identidade é "um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (p. 230). Nesse sentido, as identidades são singulares ao sujeito e produzidas nas interações desse sujeito com os contextos sociais nos quais se insere.

Nóvoa (1992), em análise sobre as formas de “se sentir e ser professor” em Portugal, revela que a identidade não é uma propriedade tampouco um produto, mas “um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (p.15) e nessa construção, o profissional atravessaria uma tripla trajetória: de adesão - a um conjunto de princípios e valores; de ação – ao selecionar formas de agir, com decisões de foro pessoal e profissional; de auto-consciência – na reflexão sobre a própria ação, base de todas as decisões.

Assim, a identidade pessoal e a identidade construída coletivamente são essenciais para que possamos compreender a identidade profissional do indivíduo, entendendo que esse processo identitário, pessoal ou coletivo, é dinâmico e

A identidade profissional acontece dentro de um domínio especializado da atividade humana. No caso dos professores, a identidade profissional está muito relacionada com o núcleo central da pessoa, mas também com as relações no grupo profissional e a cultura mais vasta da sociedade em que integra. (LOPES, 2002, p.15)

Para Lopes (ibid), a identidade profissional de professores está relacionada tanto no âmbito pessoal, quanto na relação com seu grupo profissional e cultural. A autora destaca que "a atividade docente põe em destaque as capacidades de relação humana [...] e é uma atividade eminentemente pública e coletiva - daí a importância das relações no grupo profissional e na dinâmica socio-econômica e cultural mais vasta em que ela se integra" (ibid.). Ainda, no que diz respeito à identidade docente, Pimenta (1997, p. 07) destaca que

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[..] se constrói a partir da significação social da profissão [...] constrói-se também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à atividade docente de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida: o ser professor. Assim, como a partir de sua rede de relações com outros professores, nas escolas, nos sindicatos, e em outros agrupamentos.

Compreender a identidade profissional como processo contínuo e subjetivo que se molda de acordo com as trajetórias individuais e sociais que vai re/des- construindo-se através da imagem e autoimagem que se tem de si e da profissão a partir da relação com seu grupo profissional, é colocá-la numa visão interacionista e relacional.

Nesse sentido, Goffman (2009) situa a identidade como múltipla, flutuante e situacional, pois se estrutura através dos encontros sociais e da interação. A linguagem teatral é um artifício utilizado pelo autor para trabalhar a concepção de identidade, definindo a representação do “eu” na vida cotidiana como o conhecimento do indivíduo sobre si mesmo, pois "Quando um indivíduo se apresenta diante de outros, consciente ou inconscientemente projeta uma definição da situação, da qual uma parte importante é o conceito de si mesmo" (GOFFMAN, 2009, p. 220)

Segundo o autor, o modo como o indivíduo aparece para a sociedade é resultado de uma espécie de ação teatral, em que ele (indivíduo) tenta dominar qualquer impressão que as pessoas possam ter sobre sua maneira de agir perante o mundo, de falar e de se apresentar. Cada sujeito é identificado e reconhecido pelo outro de acordo com a identidade que se quer ou que se almeja, mas nem sempre é a que se tem socialmente. Goffman (ibid) considera a identidade como estratégia de interações na construção da narrativa em que se dá a representação do eu. Para o autor, nós passamos a maior parte do tempo narrando nossas histórias, expondo nossas opiniões. Nesse caso, a narrativa é sempre a dramatização do sujeito para um público, e o ator-narrador sabe todo enredo da sua história.

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Dubar (1997) problematiza essa discussão articulando o que ele denomina de a identidade para si – que tipo de sujeito você quer ser - e de

identidade para o outro – que tipo de sujeito você é. Dessa dualidade entre

identidade para o outro, conferida, e identidade para si construída, se origina um campo de possibilidades de estratégias de formação identitária que se desenvolvem no decorrer da vida de cada sujeito. Dessa forma, a identidade

nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições (DUBAR, 2005, p.136).

O conceito de identidade profissional remete à ideia de construção, que se opõe à concepção de uma identidade estática. Assim, a própria percepção do atividade docente, seu sentido e significado que os professores atribuem ao trabalho que realizam, são fundamentais na construção da identidade profissional docente. Tardif e Raymond (2000, p. 2) compreende que,

Se uma pessoa ensina durante trinta anos, ela não faz simplesmente alguma coisa, ela faz também alguma coisa de si mesma: sua identidade carrega as marcas de sua própria atividade e uma boa parte de sua existência é caracterizada por sua atuação profissional, como também sua trajetória profissional estará marcada pela sua identidade e vida social, ou seja, com o passar do tempo, ela tornou-se – aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros – um professor, com sua cultura, seu éthos, suas idéias, suas funções, seus interesses etc. (itálico no original)

Nesse sentido, a identidade docente é construída na formação e no trabalho pedagógico do professor, oportunizando desenvolver a sua própria profissão em seus universos profissional e socioculturais. Conceber a identidade profissional docente como contínua é entender que ela "se constrói com base no significado de movimentos reivindicatórios dos docentes e no sentido que o profissional confere ao trabalho" (VEIGA, 2008, p. 17), dessa forma, ela envolve o desenvolvimento pessoal, profissional e institucional do professor.

Essa identidade é também construída pelo discurso do Estado. Segundo Martin Lawn (2001, p. 118), "A identidade do professor simboliza o sistema e a

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nação que o criou". Parte da ideia de que a identidade pode ser fabricada. Assim, dentro do contexto das políticas do Estado, podemos falar de uma identidade que é alterada por ser fruto de um discurso que explica e constrói o sistema educativo, criando identidades docentes sintonizadas com os projetos oficiais de educação. Para o autor ( ibid)

[...] à medida que, neste século [XX], o sistema da “escola de massas” se foi desenvolvendo e se tornou significativo, no âmbito do planejamento do Estado, a produção de uma identidade fidedigna do professor também se tornou relevante. Este facto constituiu um problema em vários aspectos: primeiro, para o seu sentido enquanto colectivo – os professores cresceram em número e, por vezes, encontram-se em grupos alargados; segundo, para o seu posicionamento social – os professores do Estado eram um grupo socialmente instável, com baixos rendimentos, mas, com formação superior; terceiro, para os seus deveres e obrigações – os professores eram vistos como exemplos morais, quase missionários ou servos civis; finalmente, para o seu processo de trabalho – os professores tinha de ser regulamentados e eficientes [...] (p.121)

O referido autor (2001) analisa a força que a ação institucional exerce na construção da identidade profissional docente, influenciada por projetos educacionais do Estado em um discurso legal, expresso por programas de formação, projetos, regulamentos, parâmetros, manuais, discursos. Nesse sentido, a forma como está posto as diretrizes de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), no presente caso, o memorial de formação, influencia como as professoras-formadoras orientam a escrita desse trabalho. Nesse sentido, temos uma prática de acompanhamento que deixa suas marcas no trabalho e na profissão docente.

Ao tomar o modelo inglês, Martin Lawn (2001) situa dois tipos de identidade docentes no século XX de acordo com seus modelos. O profissional

colonizado (anos 1920) era o professor com ênfase na responsabilidade, apolítico

e com autodisciplina. Seu discurso centralizava-se pelo dever para com o Estado e pelo discurso da escola como uma esfera pública neutra. Este modelo marcou a formação de professores, os discursos ministeriais, as publicações e o discurso sobre práticas de trabalho. A profissionalização era uma importante etapa de sua

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vida e “entrar nesta nova identidade profissional constituía um acontecimento singular e simbólico que se consumava com a fase final da formação” (LAWN, 2001).

O profissional moderno (nos anos 40 e 50) era o profissional do bem-estar

social. Esse professor era experiente, entusiasta, que almejava a reconstrução social da escola, mas "Esta identidade também mudou quanto ao género – do anterior ideal da elite de professor, no masculino, para a mulher madura, reflectindo o papel pastoral e de bem-estar do ensino, no novo sistema" (Ibid, p. 127).

No final dos anos 1990 um novo profissional docente deve ser atribuído de competências de acordo com o discurso oficial dada à complexidade e velocidade com as novas tecnologias nas escolas. Nesse pensamento, o autor evidencia "Um leque de identidades de professor, relacionadas com os novos papéis e tarefas e diferenciação do trabalho na escola, está a emergir" (LAWN, 2001, p. 128).

Ao identificar as relações de acompanhamento em suas várias faces, Josso (2012) identifica que essas relações implicam a constituição da identidade do sujeito, sejam nas relações de parentesco, terapêuticas ou profissionais. Para a autora (ibid., p. 119), "As relações profissionais constroem e sustentam uma parte significativa da identidade do período dito da vida ativa" e que "são as perceções e representações que informam a identidade destes profissionais" (PEREIRA, 2013, p. 10).

No contexto de ensino, em todos os níveis, a prática do professor, enquanto sujeito de relações que forma e é formado pelas experiências, acarreta implicações sobre a sua forma de ser professor-formador, visto que

a problemática do trabalho dos formadores de professores tem implicações incontornáveis nas concepções sobre as suas identidades. Os formadores de professores são agentes educativos que constroem conhecimento científico-pedagógico e se (re)constroem à medida que trilham o conhecimento da sociedade em mudança (PEREIRA, 2013 , p. 10).

Neste sentido, a construção da identidade profissional corresponde sempre a um processo inter e intrapessoal por se desenvolver em um contexto de interações, de trocas, de aprendizagens e de relações, seja no âmbito familiar ou

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profissional. Por se tratar de uma construção eminentemente coletiva, reitero que este não é um processo homogêneo, ou seja, não se desenvolve da mesma forma para todos os indivíduos, o que me leva a concluir pela presença irremediável de uma identidade no plural.

As vozes enunciadas neste diálogo - a formação no ensino superior e o acompanhamento na escrita autobiográfica (experiência, aprendizagem e identidade) - fundamentam os fazeres e dizeres dos sujeitos que refletem sobre suas práticas docentes no ensino superior.

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CAPÍTULO 2