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A identidade do velho e a memória-hábito

2.2 Identidade do velho e memória

2.2.3 A identidade do velho e a memória-hábito

Para Bergson, segundo Bosi (1987, p. 11), o passado conserva-se e atua no presente, mas não de forma homogênea. De acordo com este autor, de um lado, nosso corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas. Isto seria o que ele denominou “memória-hábito” ou a “memória dos mecanismos motores”. De outro lado, ocorreriam as lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado.

Assim, a memória-hábito é adquirida pelo esforço da atenção e pela repetição de gestos e de palavras, podendo ser considerada como parte de nosso processo de adestramento cultural. Por sua vez, a lembrança pura traz à tona um momento único, singular, não repetido, irreversível. Para Bérgson (1990), a matéria dessas memórias reside no inconsciente de cada um de nós. Através da memória, o passado sobrevive, quer chamado pelo presente sob as formas de lembrança, quer em si mesmo, em estado inconsciente.

Para Bérgson (1990), a imagem-lembrança tem data certa: ela se refere a uma situação definida, individualizada, ao passo que a memória hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia e parece fazer um só todo com a percepção do presente. Podemos pensar que as lembranças dos velhos vêm sempre acompanhadas das

evocações de seu passado e repetem sempre hábitos que aprenderam ao longo de seu cotidiano e divagam em suas imagens-lembranças.

Mas, Bosi (1987, p. 12) nos lembra que Bergson não se ocupa dos casos-limite nem de uma psicologia diferencial. Enfatiza que o cuidado maior é o de entender as relações entre a conservação do passado e a sua articulação com o presente, a confluência de memória e percepção. É neste sentido que buscamos compreender os efeitos da memória na identidade do velho no mundo contemporâneo, ao despojar-se de seu passado e das percepções que afirma em seu presente.

Para Brandão (2001), de certa forma há uma ampla investigação fenomenológica de que a memória conduz a uma série de distinções: “memória- hábito” e “memória-lembrança”, diz-nos ele: (é de Bergson, o “inegável parentesco entre a lição aprendida de cor e meu hábito de andar ou de escrever”), “memória que se repete” e “memória que se imagina”, “memórias” e “lembranças” (como se diz, os velhos têm mais lembranças, mas menos memória!). Ainda para o autor, existe também uma memória ativa, que comporta um enigma, já que “busca o que teme ter esquecido). Na rememoração (“recherche”, “rappel”) a memória assume a forma de “trabalho” e revela sua “dimensão cognitiva”, seu “caráter de saber”.

Brandão (2001) ao trazer a articulação entre a memória individual e a memória coletiva no campo das ciências e de como o objeto memória pode ser apreendido, insiste no conceito de “traços”, que fornecem uma passagem articulada entre memória individual e coletiva. São os “traços” de memória que permitem uma organização social do tempo e da comunhão de lembranças. Logo, é do testemunho do velho, “traços de memória”, que são originalmente orais, que emergirá a construção de sua história e de sua identidade, e com isso o seu projeto de vida.

Para Bobbio (1997, p. 30, 54), o mundo dos velhos é o da memória, através da qual se reconhecem, e se identificam:

(...) somos aquilo que lembramos (...) a nossa riqueza são as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião. (...) se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade.

Num certo sentido podemos refletir que a memória não conta apenas a história do indivíduo, mas também a de seu grupo.

A memória produz elos entre os significados do presente e do passado para o coletivo de sua convivência, para a reconstrução do passado e sua preservação no presente. O velho, ao tecer afirmações sociais perante os grupos de pertença, muitas

vezes, busca trazer, através dos processos temporais, os significados e sensações embutidos na memória. O velho tem mais facilidade em identificar-se com o seu passado. A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro.

Segundo Le Goff (1996, p. 477). “Devemos trabalhar de uma forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Neste modo de ver a memória coletiva, ela só se torna positiva enquanto for capaz de tornar- se lugar de libertação do homem no presente e não de escravização ao passado.

Nas civilizações tradicionais o velho tinha a função de rememorar, simbolizava o guardião da memória do grupo, o depositário do saber da comunidade. O mesmo se dava nas sociedades tidas como sem escrita, nas quais o velho era considerado o guardião dos códices reais, dos chefes de família, dos bardos e dos sacerdotes que tinham o importante papel de manter a coesão de seu grupo social.

Assim, para Le Goff (1996, p. 423), “a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a certas funções específicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. Assim, a memória coletiva possibilita, por um lado, integrar indivíduos e, por outro, evocar traços e questões da memória histórica ou da memória social.

O velho, como depositário privilegiado da memória coletiva, tem uma importante função social ao trazer à tona memórias esquecidas ou não conhecidas, que correm em paralelo à memória escrita, podendo, com isso, ampliar a compreensão do conteúdo das últimas. Se a memória pode ser representativa de um grupo social, fonte legítima de informação e reconstrução dos acontecimentos que repercutem na história de dada sociedade, pode revelar aspectos desconhecidos de eventos conhecidos bem como aspectos desconhecidos de eventos igualmente ignorados. Portanto, relembrar é refletir dialeticamente sobre o presente e o passado, pois tanto pode permitir ao velho relativizar a importância de acontecimentos, de situações e de lugares do passado em vista do presente, quanto seu contrário, retirando o valor absoluto das coisas. Mas, relembrar é, ainda, poder transcender às marcações políticas e econômicas institucionalizadas, pois o peso das experiências passadas, tanto individuais quanto coletivas, pode trazer temporalidades que as marcações impõem ao mundo contemporâneo.