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Na partilha de papéis sociais, tem sido atribuído ao sujeito velho o papel de guardião da memória, de transmissão de valores, de conhecimentos dos fatos do presente e do passado, de integração de grupos social/familiar e o de socialização de pessoas. Estas práticas geradas do mundo da vida fazem parte de um dos recursos

de que a sociedade dispõe no exercício de seu governo e que podemos denominar de recurso da solidariedade.

Assim, fazem parte, então, do papel do velho na sociedade contemporânea, ações que dizem respeito ao recurso da solidariedade, e que se desenvolvem num lento aprendizado.

Considerando-se que a “memória social” é um discurso que fala do passado e também do presente, neste sentido, a interpretação do passado dada pelo velho reforça a sua auto-imagem criada por ele no presente, assim também como sua identidade de velho tem sido vinculada a uma de suas potencialidades humanas – o papel transformador e gerador da preservação da memória e da construção da identidade neste contexto do processo de envelhecimento – e como este é um processo biopsicossocial, tudo o que diz respeito ao desempenho do papel de transmissor, receptor, é obrigação e não é visto como esforço ou competência adquirida para o desempenho deste papel.

Segundo Mucida (2009, p. 78),

“apesar do crescimento vertiginoso da população idosa, ainda são incipientes os conhecimentos e os estudos sobre a velhice tal como ela se apresenta em nossos dias. Devemos estar atentos e informados de que não há como negar a passagem do tempo e da idade cronológica, mas não envelhecemos mais da mesma forma como acontecia de há 30, 40 anos atrás; os nossos conceitos e os nossos conhecimentos devem avançar com o tempo do sujeito e da sua velhice”, também com os seus papéis sociais.

De acordo com Halbwachs (2006, p. 55) a memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere- se, portanto, a “um ponto de vista sobre a memória coletiva”, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e nas relações mantidas com outros meios.

Neste sentido, a profissão que o velho exercia no seu passado era mesclada com as experiências, as práticas e os costumes de sua época. É compreensível que no passado um dos recursos usados, era guardar o dinheiro no baú, embaixo do colchão, nas frestas de assoalhos, pois assim economizava-se para o futuro, para as ocasiões de doença e outros.

Aqui, peço licença mais uma vez, para contar um passeio da minha memória de infância, a respeito de meu avô, o meu querido avô, o Senhor Nicolau Anechini, um italiano de raiz. Lembro-me de que eu ia com ele, a uma mercaria da cidade em que

morávamos, para “ajudá-lo” a fazer as compras do mês para a familia. E, muitas vezes, o dono da mercearia perguntava a ele, “Senhor Nicolau, o senhor quer pagar agora, ou o senhor vai marcar na caderneta?” De certa forma, essa pergunta do comerciante soava para o meu avô como um afrontamento, pois ele respondia: “meu senhor, eu não tenho conta no banco, nunca tive e nunca vou ter, pois, dinheiro a gente guarda em casa. O dinheiro que recebo, eu guardo na minha carteira ou no meu guarda roupa e assim não preciso depender do banco e nem contraio dívidas”.

De certa forma, o papel social e econômico definia para o velho, o lugar em que ele se instalava em sua condição social e econômica. No entanto, as circunstâncias do tempo presente são diferentes daquelas do passado. Percebemos, então, que o velho não tem mais esta preocupação de guardar para o futuro, numa dinâmica própria da sociedade contemporânea, em que se vislumbra o aquecimento de um mercado consumidor de produtos específicos e de serviços que atendam a essa população velha.

Assim, o velho, no mundo da vida capturado pela ordem sistêmica da contemporaneidade, movimenta-se em seus papéis sociais e econômicos, para suas necessidades e para suas satisfações imediatas, pensando apenas em seu presente e, com isso, se movimenta para: “os gastos com viagens, com compras, com objetos (roupas, academia, turismo, etc.)”. Afirma Halbwachs ((2006, p. 78-81) que não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito, suporte em que se apóia a memória individual.

Pode-se perceber que para os velhos, o passado não permaneceu como passado, mas mudou como hoje é o seu presente. Houve mudanças significativas na modernidade, e o velho faz parte delas. Bosi (1987), ao relevar as lembranças dos velhos como um dado significativo do mundo social, demonstra que estes sujeitos exercem uma função primordial na e para a sociedade. Nesse sentido, o velho passa a ter um papel na construção da memória coletiva do seu grupo, fortalecendo assim seus elos e reconstruindo sua identidade, tarefa fundamental na formação dos papéis e dos sujeitos sociais.

Mas, mesmo assim, podemos perguntar o que significa elaborar o passado para o velho? Qual a importância dos papéis econômicos para ele atualmente, considerando que a memória não é somente um objeto de estudo, mas também tem uma tarefa ética? Para o velho, pressupomos que consiste em preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, com suas tradições, a sua vida, sua fala, seus papéis sociais e as imagens que ele trouxe para o seu presente. Ainda,

cabe notar que a preocupação com a memória, mesmo que seja tão antiga como a poesia homérica, assume hoje traços muito específicos. Diz Gagnebin (2006, p. 97): “é justamente porque não estamos mais inseridos em uma tradição da memória viva, oral, comunitária e coletiva”.

Para o velho, o reviver das histórias e dos fatos que contribuíram para o seu enraizamento e a para a permanência dos seus papéis no mundo contemporâneo, decorre assim, de uma consciência coletiva que ele mantém com o grupo de pertencimento, e, conforme aponta Halbwachs (2006), esta consciência coletiva “está constantemente presente nas pessoas, inclusive na evocação da memória”. No entanto, para que um fato seja evocado pelo velho e que este fato seja a reconstrução de seu passado, ou dos papéis que ele manteve em seu passado, mas que agora no presente ganham novo sentido, o velho, pode continuar retendo-os, mesmo que não façam mais parte da tradição, porque suas lembranças não estão em um ponto determinado de sua memória, mas sim constantemente reconstruídas em sua evocação, pela memória viva, oral, comunitária e coletiva do grupo social.

Assim para Bergson (1990, p. 31)

A memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção.

Concluindo, através da percepção imediata do presente, o velho reencontra o passado, mas a memória coletiva é pautada na continuidade do presente, e está constantemente evocada na construção dos papéis que ele manteve do seu passado e que trouxe também para o seu presente, com o grupo de pertencimento na base da formulação de sua identidade. E, assim, ao evocar suas lembranças, suas percepções que em seu passado passaram por significativas trocas, o velho constrói para si e com o outro sua identidade no presente, fruto de seu tempo e de sua memória. Mesmo que os papéis não estejam mais presentes em suas práticas e experiências, ele conserva a tradição do lento aprendizado que veio traçando na sua história.