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2. Discurso e Ideologia

2.2. A ideologia nas artes

O termo estética provém do grego aisthesis e significa todo o domínio da percepção e das sensações humanas, em contraste com o domínio mais árido do pensamento conceitual. Da raiz da palavra, aisth, deriva o verbo grego aisthanomai, que significa “sentir, mas não com o coração ou com os <sentimentos>, mas sim com os sentidos, com a rede de percepções físicas” (BARILLI, 1994, p. 18). O termo foi cunhado, como se sabe, por Baumgarten e trai, em sua etimologia, um discurso sobre o corpo, sobre os aspectos psicofísicos inerentes à experiência estética. Baumgarten (1993) parte do étimo para construir o que chama de uma “ciência do conhecimento sensitivo”.

A distinção que o termo estética estabelece inicialmente não é entre a arte e a vida, mas entre o material e o imaterial: experiência direta com as coisas, de um lado, e pensamentos, de outro. Trata-se de um território que constitui

nada mais do que a totalidade da nossa vida sensível ― o movimento de nossos afetos e aversões, de como o mundo atinge o corpo em suas superfícies sensoriais, tudo aquilo enfim que se enraíza no olhar e nas víceras e tudo o que emerge de nossa mais banal inserção biológica no mundo. (EAGLETON, 1993, p. 17)

Ela é a dimensão do humano que a filosofia pós-cartesiana se empenhou em ignorar.

Uma das teses que Eagleton (1993) sustenta — e com a qual nos afinamos — é que a estrutura política de uma sociedade interfere diretamente nessa área mais tangível do “vivido”, em tudo o que pertence à vida somática e sensual de uma sociedade. E uma de suas hipóteses é

que “os caminhos misteriosos” da experiência viva de algum modo podem ser mapeáveis pela intelecção, o que teria gerado uma ciência completamente nova, a ciência da sensibilidade. Por exemplo, o discurso da estética, que germinou a partir do século XVIII, não teria se mostrado como um desafio à autoridade política, mas pode ser lido como sintoma do dilema ideológico inerente ao poder absolutista. Baumgarten teria resolvido esse dilema de forma notável, procurando estabelecer um equilíbrio delicado entre o racional e o sensível. “Para Baumgarten, a cognição estética é mediadora entre as generalidades da razão e os particulares dos sentidos: a estética é um domínio da existência que participa da perfeição da razão, mas de um modo ‘confuso’” (EAGLETON, 1993, p. 18). “Confusão” significa, nesse contexto, fusão, interpenetração orgânica entre o elemento racional e o sensível. Não significa que o discurso resultará obscuro, pelo contrário, “quanto mais ‘confusas’ elas [as representações expressas pelo discurso] são ― quanto mais unidade-na-variedade elas produzem ― mais claras, perfeitas, determinadas, elas se tornam” (EAGLETON, 1993, p. 19). Percebe-se, dessa forma, que a experiência do “vivido” não

escapa às determinações ideológicas. Mas, concomitantemente, esse tipo de experiência é capaz de subverter a ordem política, determinando, por sua vez, as ideologias. A relação é, pois, dialética.

Outro exemplo que podemos oferecer é o caso do movimento estético Realismo/Naturalismo. Consideramos que a linguagem, especificamente na criação do texto literário, é infinitamente produtiva. A tendência realista da estética tende a reprimir essa produtividade no “fechamento” (oclusão) do texto. O pensamento, marcado pela “estabilidade ideológica”, reprime as forças “desagregadoras”, “descentradas” da língua, em nome de uma unidade imaginária. Nas palavras de Eagleton (1997, p. 174),

o processo de forjar “representações” sempre envolve esse fechamento arbitrário da cadeia significante, restringindo o jogo livre do significante a um significado espuriamente determinado que pode então ser recebido pelo sujeito como natural e inevitável. [...] a representação ideológica envolve reprimir o

trabalho da linguagem, o processo material da produção significante subjacente

a esses significados coerentes e que, potencialmente, sempre pode subvertê-los.

Ainda no que concerne à relação entre arte e ideologia, consideraremos a “prática intersemiótica”, tal como foi discutida por Maingueneau (2005). Ele parte do modelo da formação discursiva (FOUCAULT, 1996) como um “sistema de restrições” para defender que se

trata de um modelo aplicável não apenas aos objetos lingüísticos, mas a qualquer tipo de organização de sentido. Como salienta Maingueneau (2005, p. 145), “os diversos suportes intersemióticos não são independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas escanções [sic.] históricas, às mesmas restrições temáticas etc”. As noções de “escola” e “movimento” na estética, por exemplo, constituem um conjunto de crenças sobre a arte, que não podem estar imunes a determinações ideológicas. A formação discursiva que constitui a estética romântica entra em conflito com a que constitui a estética neoclássica ou parnasiana. A luta ideológica é travada pelo conflito entre conceitos distintos, que expressam as crenças dos membros de cada comunidade intelectual/estética. Portanto, é relevante investigar as relações entre as diversas artes e entre as artes e os sistemas lingüísticos de produção conceitual, a fim de mapear as influências ou correspondências ideológicas. Essa hipótese leva Maingueneau (2005, p. 146) a formular a seguinte proposição: “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de objetos de domínios intersemióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um mesmo sistema de restrições semânticas”. Ou seja, as produções discursivas de diversas ordens são, num dado momento histórico, suscetíveis senão de todas, mas de muitas das restrições semânticas.

A noção de texto precisa, nesse caso, ser expandida aos diversos tipos de produções semióticas que pertencem a uma mesma prática discursiva. A coexistência de textos que pertencem a domínios semióticos distintos não é, portanto, livre no interior de uma formação discursiva determinada. “Não é qualquer domínio que pode figurar com qualquer outro, e essas restrições são função ao mesmo tempo do gênero de práticas discursivas concernidas e do conteúdo próprio de cada uma” (MAINGUENEAU, 2005, p. 147).

Essa discussão sobre arte e ideologia desmistifica a concepção idealista e formalista da estética, hoje mais enfraquecida, mas que congrega ainda muitos acólitos, e abre espaço para uma reflexão sobre a arte como instituição. Bloom (1995) é um dos representantes dessa concepção idealista da estética, quando supõe que as obras canônicas ocidentais contêm um valor trans-histórico. Shakespeare, por exemplo, cuja produção data do período elisabetano, nos legou uma gama de textos que ainda hoje são apreciados. Constituem obras que teriam transcendido os limites históricos. Nossa discordância em relação ao ponto de vista de Bloom parte já da noção de cânone (do grego kanon, “vara de medir”). Trata-se de uma noção puramente estética, com base na filosofia kantiana, em que se enfatiza na arte o belo “desinteressado”. O belo seria dotado de um caráter metafísico e imanentista. Questiona-se muito, hoje, a legitimidade do belo artístico. Apelando para o étimo da palavra cânone, perguntamos: quem definirá a medida da beleza de uma obra? Quais os critérios para definir

essa mesma medida? A escolha desses critérios não implicaria uma opção subjetiva? Ninguém pode afirmar que o seu prazer estético é melhor ou maior do que de outra pessoa. Ninguém tem a última palavra nesse caso. Não há critérios de comparação racionalmente aceitáveis para hierarquizar o prazer dos sentidos. O valor da obra vem a ser legitimado, a nosso ver, pelas Universidades, pelas críticas especializada e jornalística, por exemplo, a partir de critérios que são significativos para momentos históricos determinados. Começamos a ter uma idéia do que é o valor consensual de uma obra quando articulamos os diversos depoimentos que vários autores já produziram sobre ela, em locais e tempos diferentes.

A propósito da discussão, vale conferir as lúcidas palavras de Magaldi (2003, p. 26):

Não se pense que os ideais estéticos sejam eternos. Cada época tem as suas necessidades, eminentemente variáveis. O valor de um momento é demérito de outro. Shakespeare reinou absoluto, no fim do século XVI e início do século XVII inglês, sofrendo, depois, quase dois séculos de ostracismo. Sua grandeza confundiu-se com indisciplina, para os padrões do século XVIII. Até que o romantismo reabilitou-o, colocando-o inquestionavelmente no centro da criação artística. Para os nossos valores, ele é ainda o exemplo do gênio completo, não só do teatro. É possível, porém, que gerações vindouras, fincadas em preceitos diferentes, consagrem outros méritos, elevando ao primeiro plano nomes que para nós ainda habitam o purgatório. Seria erro de alguém? Foram cegos os que não perceberam a genialidade de Shakespeare? Seremos obtusos nós, que não estamos enxergando a excelência de alguém a ser reconhecido no futuro? Esse jogo de brilho ou hibernação faz parte da História e é tolice querer negá-lo, ainda que se tente, de todas as formas, minimizar seus efeitos.

Bem se vê que a perspectiva essencialista da arte não é mais sustentável. Não há nenhuma essência do “belo” que faz a obra “transcender” seu tempo e “ficar para a posteridade”. Defender a “perenidade” espontânea de uma obra, pelo seu “valor intrínseco”, revela um viés dogmático para o qual faltam argumentos teórico e empiricamente razoáveis. É, pois, importante que estejamos atentos à distinção entre a arte como discurso(s) e o(s) discurso(s) sobre a arte. Em ambos os domínios, verificamos graus de restrições a partir de práticas discursivas determinadas. No entanto, é importante salientar que a prática artística, pela sua própria natureza ambígua, socialmente construída, apresenta condições materiais para questionar as

ideologias dominantes e propor novas formas de conceber o mundo, também estas marcadas ideologicamente. É o que discutiremos a seguir, no que se refere, especificamente à literatura.

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