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2. Discurso e Ideologia

2.3. Discurso literário e ideologia

No capítulo anterior, tratávamos da literatura como uma produção ideológica, na acepção que Bakhtin (1981a) dá ao termo, ou seja, uma produção significativa realizada por sujeitos sociais e históricos. Foi necessário refletir sobre a relação dialética entre literatura e sociedade, e sobre como os elementos que compõem os diversos valores sociais se encontram materialmente presentes no discurso literário. Vamos expandir um pouco mais a discussão e refletir sobre a relação dialética entre literatura e ideologia.

Como declaramos no capítulo anterior, a literatura é uma produção social que tem a linguagem como material de trabalho. Somente esse fato seria suficiente para flagrarmos o caráter ideológico da literatura, uma vez que não podemos conceber a linguagem como uma realidade deslocada do contexto ideológico em que se desenvolve. Lembra Bakhtin (1990) que

todo produto ideológico é uma parte da realidade social material em torno do homem, um aspecto do horizonte ideológico materializado. Qualquer coisa que uma palavra possa significar, ela está antes de mais nada materialmente presente, como coisa enunciada, escrita, impressa, sussurrada ou pensada. Ela estabelece uma relação entre indivíduos, que é objetivamente expressa nas reações combinadas das pessoas: reações em palavras, gestos, atos, organizações etc. O intercurso social é o ‘medium’ no qual o fenômeno ideológico primeiro adquire sua existência específica, seu significado ideológico, sua natureza semiótica.

Admitindo que a ideologia só pode ser entendida como realidade sígnica existente na interação social, podemos dizer, a partir da metáfora usada por Bakhtin, que a arte seria um dos troncos sígnicos da dimensão ideológica, sendo a literatura um dos ramos, o que não significa que toda obra literária expressa claramente um corpo de idéias relativamente homogêneo. Antes de tudo, a ideologia não pode ser concebida como um conjunto de idéias conscientemente veiculadas e reproduzidas. Pelo contrário — e nisso a concepção de ideologia em Marx ainda faz eco aos estudos contemporâneos sobre o tema — a ideologia está sobretudo no que não é visto, no que subjaz e organiza toda e qualquer atividade discursiva. Mas a dimensão ideológica, que

isto fique bem claro, só poderá ser objeto de investigação se tomarmos o discurso como o seu suporte inalienável.

Encontramos em Eco (1991), no capítulo intitulado “Do Modo de Formar como Compromisso com a Realidade”, uma visão lúcida quanto à relação entre as formas artísticas e a ideologia, que nos ajudará a compreender a dimensão ideológica da literatura. Para o semiólogo italiano, a arte contemporânea opera, no nível das estruturas formais, uma contínua remanipulação da linguagem adquirida e estabilizada, bem como dos tipos de ordem consagrados pela tradição. Poderia parecer, portanto, ao crítico de arte que, deslocando sua atenção para os problemas da estrutura, a obra de arte renuncia a fazer um discurso sobre o homem, perdendo-se numa vazia abstração. No entanto, não podemos nos esquecer de que esse discurso sobre o homem de que trata o crítico de arte corresponde a um tipo de ordem discursiva [formativa] que servia para falar do homem de ontem. “Rompendo esses módulos de ordem, a arte fala do homem de hoje, através da maneira pela qual se estrutura” (ECO, 1991, p. 255). Para falar do homem e do mundo, a arte não se restringe a conteúdos explícitos sobre o tema: ela o faz dispondo suas formas de maneira determinada. O conteúdo da obra só poderá ser construído a partir da sua materialização na forma artística, e é nesse nível que deverá ser conduzido o discurso sobre as relações entre arte e mundo.

No caso da narrativa literária, por exemplo, começar descrevendo as circunstâncias que envolvem a ação (espaço, tempo, personagens) para apresentar o conflito, cujos motivos se sucedem numa relação causal até chegar a um desfecho, implica que se acredite numa determinada ordem dos acontecimentos, numa determinada concepção de ordem do mundo, refletida na linguagem, que serve apenas para expressar uma interpretação da realidade.

A literatura organiza palavras que significam aspectos do mundo, mas a obra literária significa o mundo em si através da maneira como essas palavras são organizadas, ainda que, tomadas isoladamente, signifiquem coisas sem sentido, ou então acontecimentos, relações entre acontecimentos que parecem nada ter em comum com o mundo. (ECO, 1991, p. 258-259)

É sobre esse aspecto que nos debruçaremos para estudar a obra literária como produção ideológica.

Tal premissa nos possibilita reagir à visão de que a literatura foge à ideologia, uma vez que ela subverte os sistemas de poder. É inegável que o discurso literário, a partir de uma

liberdade aparente de que goza o escritor, se mostra como um discurso de resistência (cf. BOSI, 1993), mas esse discurso não deixa de estabelecer, pelo seu caráter avaliador, um conflito de ordem ideológica.

Podemos citar o projeto estético-ideológico empreendido por Brecht (2005, p. 31), que propõe substituir uma dramaturgia aristotélica por uma dramaturgia não-aristotélica, como vemos no quadro abaixo:

Forma dramática de teatro Forma épica de teatro

A cena “personifica” um acontecimento narra-o

envolve o espectador na ação e consome-lhe a

atividade faz dele testemunha, mas desperta-lhe a atividade

proporciona-lhe sentimentos força-o a tomar decisões

leva-o a viver uma experiência proporciona-lhe visão do mundo

o espectador é transferido para dentro da ação é colocado diante da ação

é trabalhado com sugestões é trabalhado com argumentos

os sentimentos permanecem os mesmos são impelidos para uma conscientização parte-se do princípio que o homem é conhecido o homem é objeto de análise

o homem é imutável o homem suscetível de ser modificado e de

modificar

tensão no desenlace da ação tensão no decurso da ação

uma cena em função da outra cada cena em função de si mesma

os acontecimentos decorrem linearmente decorrem em curva

natura non facit saltus facit saItus

(tudo na natureza é gradativo) (nem tudo é gradativo)

o mundo, como é o mundo como será

o homem é obrigado o homem deve

suas inclinações seus motivos

o pensamento determina o ser o ser social determina o pensamento

Brecht, dramaturgo, poeta, encenador e teórico do teatro, é herdeiro do teatro político de Piscator e concebe o fenômeno teatral como um instrumento poderoso para intervir politicamente sobre a realidade concreta. Sua extensa obra dramatúrgica é heterogênea, considerando-se que o autor passou pelo estilo expressionista, pelo teatro didático, dialético, épico.

Como podemos ver no quadro exposto, a natureza ideológica da dramaturgia épica, que se contrapõe a uma dramaturgia de tradição aristotélica, não está no conteúdo da obra, entidade abstrata quando separada da forma, nem tampouco apenas nos temas escolhidos, tal como muitos exegetas fazem crer. O caráter ideológico de uma tal estética está precisamente no seu nível formal: tratamento das personagens, das ações; disposição dos argumentos; etc. Tudo isso implica uma forma de ver o mundo e os sujeitos sociais que se contrapõe ao mundo “fechado” que costumava ser expresso pela dramaturgia aristotélica. Não satisfeito com esta forma de expressão, Brecht experimenta desconstruí-la e construir uma estrutura textual que alcance seus objetivos políticos. É, nas palavras do teórico, o ser social determinando o pensamento.

Como se vê, o tema Ideologia traz inúmeros aspectos, muitas vezes conflitivos, de forma que não podemos esgotá-lo em poucas páginas. Como dissemos, a dimensão ideológica do discurso é condição imperiosa para o trabalho investigativo do analista crítico. Tentamos estabelecer, neste capítulo, alguns princípios norteadores que procuraremos seguir na análise crítica do discurso literário, especificamente no que tange às ideologias masculinas. Para entendermos um pouco mais sobre essas ideologias, buscaremos, no próximo capítulo, apresentar uma concepção do que chamamos discursos masculinos e uma leitura crítica das ideologias que constroem estes discursos.

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