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PARTE II A extinção do vínculo de emprego público por motivos disciplinares

4. Os fundamentos subjetivos de extinção do vínculo

4.1. Elementos conformadores da justa causa de despedimento ou demissão

4.1.2. A ilicitude

I. A ilicitude traduz-se primariamente, e tal como resulta do artigo 183.º, na violação de

deveres gerais ou especiais inerentes às funções exercidas pelo trabalhador125: são gerais os deveres transversais a todos os trabalhadores da Administração Pública e especiais os

121 De acordo com o artigo 351.º, n.º 1, do CT, “constitui justa causa de despedimento o comportamento

culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”.

122 MENEZES LEITÃO, Direito do Trabalho, cit., p. 444; ROSÁRIO PALMA RAMALHO,Tratado..., II, cit., p.

954.

123 Conforme o princípio romanístico cogitationes poenam nemo patitur.

124 ANA FERNANDA NEVES,O direito disciplinar..., cit., p. 178; PAULO VEIGA E MOURA/CÁTIA ARRIMAR,

Comentários..., cit., p. 545.

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que recaem sobre determinados grupos de trabalhadores, por conta das particularidades que rodeiam as funções por si exercidas ou da situação profissional em que se encontrem. No topo da escala dos deveres laborais encontramos o dever principal de prestação da atividade de trabalho (que se infere do artigo 6.º, n.º 2, pois faz parte da própria noção de vínculo de emprego público), ao qual se juntam um conjunto de outros deveres acessórios, norteados pelo princípio geral da boa-fé e pelo dever de as partes colaborarem tendo em vista a melhoria da qualidade do serviço prestado e da respetiva produtividade (artigo 70.º, n.ºs 1 e 2, primeira parte).

Quanto aos deveres acessórios, a regra geral constante do n.º 1 do artigo 73.º é a de que o trabalhador se sujeita aos deveres previstos na lei, no regulamento interno do órgão ou serviço (artigo 75.º) ou no IRCT que lhe seja aplicável (artigos 355.º e ss.). Em particular, no que respeita aos deveres que têm a sua origem em normas legais, há que sublinhar os deveres enumerados nos n.ºs 2 a 12 do artigo 73.º (e, dentro destes, os deveres gerais de prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade e de informação, dado serem específicos da relação laboral pública126) e os previstos no artigo 21.º, n.º 2, do

RVP para os trabalhadores colocados em situação de valorização profissional, nos termos desse diploma.

É ainda pertinente assinalar a distinção entre deveres acessórios integrantes e autónomos da prestação principal, adotada entre nós por ROSÁRIO PALMA RAMALHO e LUÍS MENEZES

LEITÃO127.Os primeiros são indissociáveis da realização dessa mesma prestação e, por

isso, acompanham as respetivas vicissitudes, sendo exigíveis unicamente na pendência daquela prestação; o dever de prossecução do interesse público (n.º 3 do artigo 73.º) é, porventura, o exemplo paradigmático deste tipo de deveres no contexto da função pública, visto ser a própria Constituição, no n.º 1 do seu artigo 269.º, que vinca a correlação entre este dever e o exercício das funções de que o trabalhador foi incumbido128. Por seu lado, os deveres autónomos da prestação principal, tal como o nome indica, não pressupõem a efetiva prestação do trabalho, pelo que “vigoram independentemente da sua realização”, mantendo-se mesmo em caso de suspensão do vínculo (artigo 277.º, n.º 1) ou de colocação do trabalhador em regime de valorização profissional (artigo 21.º, n.º 1, do RVP): quanto a esta segunda categoria, podemos dar como exemplos os deveres de isenção, correção, e

126 O dever de informação também existe no direito do trabalho (artigo 106.º, n.º 2, do CT), mas com uma

configuração muito diferente da que apresenta nesta sede (vide, por contraposição, o n.º 6 do artigo 73.º).

127 MENEZES LEITÃO, Direito do Trabalho, cit., pp. 265-266; ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado..., II,

cit., pp. 433-435.

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de frequentar ações de formação e aperfeiçoamento profissional (n.ºs 4, 10 e 13 do artigo 73.º), para além, naturalmente, dos deveres especiais que vinculam os trabalhadores em valorização profissional.

Partindo destas considerações, concluímos, na linha de ANA FERNANDA NEVES,que as condutas extralaborais ou extrafuncionais podem ser punidas disciplinarmente (máxime, por via do despedimento ou da demissão) na medida em que entrem em confronto com o acervo de obrigações e deveres a que o trabalhador se sujeita mesmo quando não está, em concreto, a desempenhar a sua atividade129.

II. Porém, o teor da ilicitude não se esgota na violação de deveres laborais. Para que

determinado comportamento possa ser tido por ilícito é ainda indispensável demonstrar a ausência de qualquer causa de justificação. Voltando ao n.º 1 do artigo 190.º, consideram- se circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar a legítima defesa – própria ou alheia –, assim como o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever (alíneas c) e e)). Em todos estes casos, a ação ou omissão do trabalhador é formalmente contrária a deveres laborais a que este se encontra adstrito; todavia, por ter sido praticada num contexto fáctico a que a lei atribui eficácia justificativa, daí não decorre qualquer ilicitude, não sendo a sua conduta censurada pelo ordenamento jurídico130.

O legislador da LTFP optou ainda por autonomizar no artigo 177.º uma outra causa de justificação, ainda que, em boa verdade, ela se reconduza genericamente ao cumprimento de um dever (artigo 190.º, n.º 1, alínea e), in fine), nomeadamente o dever de obediência (n.º 8 do artigo 73.º). Pois bem, a interpretação conjugada desse preceito com artigo 271.º, n.ºs 2 e 3, da CRP diz-nos que o trabalhador está obrigado a acatar e a cumprir quaisquer ordens ou instruções provenientes do seu legítimo superior hierárquico, ainda que ilegais, desde que versem sobre matéria de serviço (falamos de um dever acessório integrante da prestação principal), não impliquem a prática de qualquer crime e, segundo FREITAS DO

AMARAL, não constem de ato nulo (vide artigo 162.º, n.º 1, do CPA)131. Quererá isto dizer

que, estando preenchidos esses pressupostos, o trabalhador da Administração Pública que se limita a obedecer a uma ordem ou instrução ilegal incorre na prática de uma infração disciplinar? Não necessariamente: se o trabalhador considerar o comando ilegal e, antes

129 Ibidem, pp. 196 e 283.

130 TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal – Parte Geral: questões fundamentais, teoria geral do crime, 2.ª

ed., reimp. Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 331.

131 FREITAS DO AMARAL, Curso..., v. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, pp. 684-685. Na jurisprudência,

cf. o Acórdão do STA de 29/04/2014 (COSTA REIS), proc. 01097/13, bem como o Acórdão do TCAS de 10/05/2007 (RUI PEREIRA), proc. 10792/01.

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da respetiva execução, fizer expressamente menção desse facto ao reclamar ou ao pedir a sua transmissão ou confirmação por escrito, a lei afasta a sua responsabilidade disciplinar (artigo 177.º, n.ºs 1 e 2); na hipótese de ter sido dada uma ordem ou instrução com menção de cumprimento imediato, a exclusão da responsabilidade terá lugar caso o trabalhador efetue essa comunicação depois de executar a dita ordem ou instrução (n.º 4 do mesmo artigo).