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2. OBSERVAR IMAGENS

2.2. A imagem antes da imagem

Procuro a imagem mais primitiva: anterior a qualquer técnica, anterior ao homem. Uma imagem literal, sem construção, sem manipulação. Uma imagem indicial que descarta toda e qualquer possibilidade de representação sendo, portanto, um fato dado, um acontecimento, uma aparição. Algo que estará sempre nos lembrando que há imagens se produzindo continuamente por condições que dizem respeito à natureza e não ao homem.41

Mesmo que focalizando nessa pesquisa mais exclusivamente o território da arte, logo percebemos a enorme extensão do domínio da imagem e a multiplicidade de desdobramentos dele advindos. Diante de tal amplitude, entretanto, e procurando uma coerência relativa à proposta inicial de tratar a imagem por sua materialidade, evidenciou-se uma circunstância a respeito da imagem, nascida da própria experiência prática, que pareceu um interessante foco para a reflexão: distinguindo-se os variados fenômenos produtores de imagens na natureza, podemos reconhecê-los como matéria prima para variadas construções simbólicas, a partir de sua apropriação pelo olhar humano e a partir de sua apropriação dentro da produção artística.

Inspirado na obra de Diane Ackerman (1956) intitulada História Natural dos Sentidos 42, havia um desejo

inicial de compor, apesar do paradoxo, uma história natural da imagem aliada à produção plástica contemporânea, numa abordagem aberta a aproximações plurais, mas centrada, sobretudo, em experiências que partiam de fenômenos naturais, de projeções, impressões, sombras e luzes. Em debate com a teórica francesa Florence de Mèredieu, ponderamos sobre a impertinência do tema que propunha estudar imagens produzidas pela natureza sendo que toda imagem, para ser considerada com tal exige necessariamente o olhar do homem para conferir a ela significado ou importância

41 Epígrafe nossa.

42 Nessa obra que alia ciência e poesia, a autora - naturalista, poeta e ensaísta americana -, nos convida a explorar

olfato, paladar, tato, audição e visão através do relato de histórias, experiências vivenciadas e situações do cotidiano, criando um conjunto de reflexões sobre as sensações e a percepção que permitem ao homem conhecer e usufruir a realidade em que vive. Ver: ACKERMAN, Diane. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A., 1992.

82 simbólica, sendo obrigatoriamente fruto da cultura. Mas essa afirmação poderia também nos levar à absurda constatação de que os fenômenos naturais, especificamente esses que produzem imagens, não são enfim naturais pois estamos sempre nos apropriando deles para alguma construção ou produção, seja no domínio da física, seja no universo da arte. O geógrafo Milton Santos afirma que “(...) a realização concreta da história não separa o natural e o artificial (...)“43

, que a separação entre natureza e cultura, característica do modernismo, não cabe em nossa época em que temos dificuldade de distinguir claramente o que é obra humana e o que é obra da natureza, momento em que não mais acreditamos em conceitos puros e que o hibridismo é a palavra de ordem em qualquer área de conhecimento que desejamos investigar. Por outro lado na obra Lacéré Anonyme, o artista francês Jacques Villeglé (1926) sobre quem falaremos mais adiante, afirma o seguinte: “A civilização é um produto natural, assim como o estado selvagem; são flores diferentes que brotam na mesma floresta.”44 Sabendo que a reflexão só pode avançar na impertinência e no risco de tratar certos temas considerados demasiadamente óbvios ou por outro lado talvez extremamente obtusos, consideramos o fato de que tal empreendimento nos exigiria uma postura ao mesmo tempo humilde e ousada: humilde pela constatação inicial de tratar-se de uma proposta de antemão controversa e, portanto, explicitamente crítica; ousada por partir de circunstâncias deliberadamente literais e concretas para tentar tratar de uma questão tão complexa como essa a respeito da materialidade da imagem. Dessa forma optamos por denominar essas imagens produzidas pela natureza, essas imagens anteriores à imagem, de proto-imagens como afirmamos em nossa introdução sobre os morteros de Machu Pichu , considerando tratar-se de imagens que se formam num momento que antecede a técnica e, portanto, que antecede qualquer recurso de sua fixação. Mesmo que apropriadas e transformadas pela arte (passando então à categoria de imagens propriamente ditas), evidenciaremos aqui sua condição efêmera e precária intimamente ligada a uma frágil mas inequívoca materialidade, bastante expressiva

43 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2006. p. 65.

44 GOURMONT, Rémy de. Promenade Littéraires. Paris: Mercure de France, 1924. P. 303. Apud. VILLEGLÉ, Jacques.

83 na produção plástica contemporânea. Procuraremos então compor uma breve história de proto- imagens explorando alguns desses fenômenos de geração de imagens oferecidos pela natureza, associando-os a diferentes formas de sua apropriação na produção de arte, de maneira a criar um recorte sobre essa presença que vemos dialogar hoje com as mais avançadas tecnologias, representando também uma forma específica de discurso. Acreditamos, assim, ampliar o universo da materialidade da imagem a partir da observação de fenômenos muito corriqueiros em nossas vidas, sendo em sua maioria tão comuns que mal os percebemos.

Desde que iniciamos a pesquisa estava claro que nessas insignificâncias é que encontrávamos a mais potente poesia, algo que aprendemos a usufruir, de forma mais evidente, a partir da obra de Manoel de Barros. Tanto pela incontestável ironia como pela simplicidade de sua escrita, tomaremos seu Poema como mote, abrindo espaço também para essa iniciativa que, da mesma forma irônica, poderíamos talvez chamar de “licença teórica”:

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)(...).45

Levaremos a diante a proposta a partir dessas insignificâncias que para nosso estudo se tornaram verdadeiras preciosidades, destacando então as instâncias de imagens que, como já dissemos, passam muitas vezes despercebidas no nosso dia a dia: as sombras, as projeções de luz, os reflexos. Outras instâncias como os arco-íris, as auroras boreais, as tempestades de raios 46 também surpreendem o olhar, configurando instantâneos de intensa expressão imagética e podem ter seu espaço de

45 BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2001. p.19.

46 Lembramos aqui da apropriação desse fenômeno natural feita pelo artista americano Walter de Maria (1935) ,

84 exploração na arte. Entretanto, nos dedicaremos sobretudo aos fenômenos que entram numa lógica específica e que nos parece aqui fundamental e que distinguiremos a seguir:

1. Trata-se de fenômenos espontâneos na natureza;

2. Podem tanto ser produzidos a partir da incidência da luz e seus respectivos fenômenos óticos, como por contato, condensação e/ou cristalização;

3. Caracterizam-se por sua indicialidade e, portanto, pela constituição do duplo, sendo traço, rastro, vestígio, circunstâncias que os colocam lado a lado com a arte da representação e com a fotografia;

4. Como eventos naturais possuem uma temporalidade fugidia e, a não ser pelos fenômenos de contato e cristalização, tendem ao desaparecimento, o que os torna também sempre novos, configurando-se explicitamente como aparições.

5. Chamaremos tais aparições de proto-imagens, fazendo jus ao fato de que, na condição em que se encontram na natureza, sem qualquer intervenção ou imposição/constituição de significado, ocorrem apenas como fenômenos físicos, não podendo ainda ser incluídos no universo da imagem propriamente dito senão como formas latentes e matéria-prima certamente privilegiada para a arte.

6. Constituem para nós instâncias expressivas da materialidade da imagem que procuramos defender em toda essa investigação.

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