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Nascentes da imagem no corpo

1. SER IMAGEM: aproximações entre o indivíduo e a imagem

1.3. Nascentes da imagem no corpo

Pensemos então o que seria a imagem do corpo (do meu corpo como diria Bergson) e como ela se faz no processo de amadurecimento do indivíduo, desde o útero até a fase adulta. Como nos diz a pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto (1908 - 1988), “a imagem do corpo é peculiar a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história”16

. Todos os sentidos são convocados nessa construção da imagem do corpo, por isso começarmos na experiência uterina onde ocorrem os primeiros registros de estímulos elaborados pelo feto.

Os batimentos cardíacos da mãe, sua movimentação e seu repouso, são exemplos de estímulos auditivos e táteis que contribuem para a formação desse proto-repertório sensível a conceber o conforto e o desconforto, a fome e a saciedade e a constituir assim os primeiros traços de uma imagem corporal auto-referente. Com o nascimento outros tantos estímulos são acrescidos: na estreita passagem para o mundo exterior em que todo corpo é massageado e tocado, no primeiro sopro de vida, a urgente absorção do ar entrando pelas narinas e invadindo os pulmões inaugurando ao mesmo tempo a experiência com os estímulos olfativos, abrem-se assim importantes canais de comunicação entre o Ser e o mundo. Na sua condição impositiva e necessária, tal experiência vem carregada dos instintos mais primitivos de sobrevivência. Atraído pelo cheiro e pelo calor materno e mobilizado pela fome, ainda de olhos fechados, o recém nascido reconhece e se serve instintivamente do seio que o alimentará abrindo-se a outra dimensão de seu reconhecimento do corpo, que agora se comunica intrinsecamente com outro corpo e, a partir de estímulos táteis e gustativos, sensibiliza lábios, boca, língua, papilas, esôfago, estômago, todo o aparelho digestório que, a partir de então, passa a compor

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43 mais alguns traços àquela imagem inicial, delineando a partir de então um verdadeiro território de ricas sensações.

Aprendemos com Dolto que a imagem do corpo entrecruza percepções relativas ao esquema corporal - que seria a ferramenta ou “o mediador organizado entre o sujeito e o mundo” 17

, às percepções relativas ao seu funcionamento, contexto e comunicação com esse mundo. Nesse entrecruzamento estariam os elementos essenciais de deflagração e constituição da imagem do corpo, que ocorre em todo indivíduo mesmo antes de qualquer consciência visível do corpo. Por isso acreditamos que a imagem não é, a priori, uma forma necessariamente visível mas, mesmo assim, trata-se de uma forma a se configurar, desde muito cedo, no nosso imaginário.

Mesmo antes da consciência visível de seu corpo, a criança já possui uma noção relativamente integral do mesmo, a partir dessa experiência interna, substancial e mesmo visceral, vivenciada no seu íntimo, e reconhecida ainda a partir dos limites de sua epiderme sensível, que toca e que é tocada. A percepção ocular se desenvolve posteriormente, enquanto, tato, audição e olfato já estão em pleno funcionamento e estimulação, o que contribui para essa noção de que antes de qualquer imagem visual, outras imagens não visuais já se formaram constituindo no indivíduo uma primeira matriz sensível.

Mas é evidente que a visão vem enriquecer e ampliar enormemente os limites desse universo que compõe nossa auto-imagem. A partir da incorporação da visão os aspectos retinianos da imagem passam a ter grande importância conferindo extrema complexidade à mesma, incluindo seus desdobramentos psico-sociais. Num primeiro momento a criança se vê e se toca diretamente, experimenta todas as suas partes visíveis e alguns de seus pontos cegos, mas naturalmente sensíveis. As costas, a nuca, a parte de traz da cabeça, as nádegas, permanecem sem uma imagem visível precisa, apesar de reconhecível como presença, não só por sua percepção tátil, mas pela correspondência possível com o que vê nos outros. Nesta etapa, o conjunto de imagens do próprio corpo, associando o

44 interno com o externo e já reconhecendo seus pontos cegos como semelhantes ao dos outros parece preservar uma unidade que será, entretanto, rompida a partir da noção especular do corpo, ou seja, a partir do primeiro confronto da criança com o espelho.

Tema fartamente tratado por Jacques Lacan e seus seguidores, incluindo Dolto, o Estádio do Espelho18 é um momento do desenvolvimento psicológico da criança, entre os 6 e os 18 meses, em que se processa a experiência reveladora da identificação com sua imagem refletida no espelho.

A assunção jubilatória de sua imagem especular, por um ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da alimentação materna, que é esse pequeno homem no estado de infans [aquele que não fala], parece manifestar desde então, em situação exemplar, a matriz simbólica onde o EU [sujeito do inconsciente] se precipita de forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.19

Dolto, comentando a esse respeito, nos alerta que essa “assunção jubilatória”, ou seja, a elevação do sujeito à revelação de seu duplo especular – seria menos um estágio em sua evolução psicológica que pressupõe um processo com certa duração, e mais um corte definitivo no desenvolvimento psíquico da criança, constituindo também um novo lugar para o sujeito. Poderíamos caracterizá-lo como um “rito de passagem”, experiência transformadora que fatalmente se impõe na vivência de qualquer pessoa, a não ser no caso de alguém que não possua visão. Tal experiência, ao mesmo tempo em que se anuncia como uma revelação lúdica e prazerosa (como define Lacan a partir da referência ao júbilo provocado por essa vivência), no reconhecimento dos próprios gestos e de sua fisionomia particular, traz consigo outra revelação mais complexa: a inexorável distância que se estabelece entre aquela auto-imagem constituída até então e a imagem visível no espelho. Sua simetria invertida, sua planaridade e aprisionamento contribuem para a constituição de uma cisão do Eu explicitada sobretudo pela

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Trata-se de conferência apresentada por Jacques Lacan no XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, 1949.

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LACAN, Jacques, 1949. Disponível em: <http://pagesperso-

45 diferença entre a imagem totalizante do corpo e aquela percebida internamente. Dolto comenta que a imagem que a criança vê no espelho:

(...) lhe traz apenas a dureza e a frieza de um espelho, ou a superfície de uma água dormente na qual, atraídas pelo encontro com o outro, tal como Narciso, não encontram ninguém: apenas uma imagem. (...) essa ferida irremediável da experiência do espelho pode ser denominada de buraco simbólico do qual decorre, para todos nós, a inadaptação da imagem do corpo e do esquema corporal – da qual numerosos sintomas visarão, doravante, reparar o irreparável estrago narcísico.20

É, portanto, no instante do reconhecimento de sua imagem no espelho que se forma a matriz identificadora do eu, imagem unitária que oferece uma ilusão de completude. Entretanto, o desencontro entre o corpo e sua imagem, ainda que marcado pela entrada de uma dimensão simbólica que ocorre através da nomeação feita pelo adulto em contato com a criança, mesmo assim evidencia uma falha que, em maior ou menor grau, irá explicar a condição humana de insatisfação permanente com sua própria imagem, algo que atravessa toda a vida do sujeito e que Dolto aponta como o „irreparável estrago narcísico‟.

Numa etapa consecutiva vemos nascer a transferência desse narcisismo em direção ao olhar do outro. Ao ver-se no espelho, a criança é invadida por uma inquietação, que imediatamente convoca um ponto exterior para melhor constituir essa relação imaginária. Esse ponto exterior é o olhar do outro, para quem ela se dirige em busca daquilo que lhe falta e é esse outro o responsável pelo eixo simbólico com o sujeito, que permite fixar a relação imaginária entre o corpo e a imagem. Como resume Lacan: “Basta compreender o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem (...)” 21

. E eis como, de um momento para o outro, torna-se também pertinente a fantasia e a ficção, na importância simbólica adquirida pela imagem especular para a construção do sujeito, inaugurando a primazia da aparência sobre todo aquele conjunto complexo de imagens que engendrou a noção do Eu, até então

20 DOLTO, op.cit. p. 124. 21

LACAN, J. Escritos. O estádio do espelho como formador da função do Eu. 1949. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.. p. 97.

46 e trazendo consigo condições inigualáveis para o florescimento do imaginário e da presença do outro como formador da auto-imagem. No espaço intermediário entre essa imagem especular e a imagem percebida internamente, abre-se uma lacuna e um lugar de conflito, propício à construção de máscaras e ilusões que se tornam de tal maneira presentes a ponto de constituírem uma nova forma, por vezes traidora, para o sentir do sujeito É, portanto, nessa primeira infância, através da paradoxal experiência de auto-conhecimento no confronto com o duplo do espelho, que a imagem do corpo se re-organiza, criando um continuum de experiências repetidas e reconhecidas aonde irão se alternar percepções antigas e desconhecidas.

Concluímos que a imagem do corpo é, portanto, o traço estrutural da história emocional do sujeito, sendo o lugar onde se elabora sua expressão e comunicação com o mundo, o lugar da recepção, da memória e da emissão, onde a experiência e o conhecimento se transformam em imagem e linguagem para dar conta das relações inter-humanas.

Já que a imagem do corpo não é um dado anatômico natural, como pode ser o esquema corporal, mas que, ao contrário, se elabora na história do sujeito, cumpre-nos estudar de que maneira ela se constrói e se remaneja ao longo do desenvolvimento da criança. Este fato nos conduzirá a distinguir três modalidades de uma mesma imagem do corpo: imagem de base, imagem funcional e imagem erógena, as quais, em conjunto, constituem e asseguram a imagem do corpo vivente e o narcisismo do sujeito a cada estágio de sua evolução. Elas são associadas entre si a todo o momento, mantendo- se coesas através daquilo que denominaremos: imagem (ou melhor, substrato) dinâmica22, designando com isto a metáfora subjetiva das pulsões de vida que, originadas no ser biológico, são continuamente sustentadas pelo desejo do sujeito de se comunicar com um outro sujeito, por meio de um objeto parcial sensorialmente significado. 23

Dolto explica que as Imagens de base têm uma dimensão estática e se dividem em: Imagem de base aérea - ligada às vias respiratória, olfativa e auditiva; Imagem de base oral - que compreende a zona bucal, faringe-laringe associada à imagem do ventre, se está cheio ou vazio, com fome ou saciado;

22 Aqui a autora associa a imagem dinâmica a um substrato dinâmico, conferindo a essa imagem um caráter de

substância estrutural e essencial para a constituição do ser.

47 Imagem de base anal - relacionada à retenção, expulsão, às sensações táteis das nádegas e do períneo. Há ainda a Imagem funcional que é a imagem estênica, ou seja, relativa à força e à atividade de um sujeito em direção à realização de seu desejo e à sobrevivência e se relacionam às funções básicas do organismo como alimentar-se, defecar, respirar. A Imagem erógena se refere ao prazer e/ou desprazer erótico na relação com o outro. A Imagem dinâmica corresponde ao desejo de ser e de se autopreservar em direção a um devir. Fundamentalmente abalado pela falta, este desejo está sempre aberto para o desconhecido.

Por objeto parcial sensorialmente significado entendemos o conjunto de imagens que conseguimos concretamente expressar, representar e então compartilhar, diante do universo de imagens que concebemos internamente e que permanece inexpressável, da mesma forma como percebemos um conjunto de imagens do real24 que também é parte indubitavelmente limitada do que esse real nos oferece. Sabemos que de toda a “paisagem” do real o que percebemos é sempre parcial, como é parcial um instantâneo fotográfico, não somente pela fugacidade do momento de captura e pela incapacidade de apreender simultaneamente todos os ângulos e nuances, mas sobretudo pelo perfil de cada sujeito que, em sua singularidade, atua sempre com seus próprios e particulares filtros de percepção. Como nos diz Bergson, se referindo prioritariamente à memória, não há percepção que não esteja impregnada de informações que desviam e remodelam o que é percebido.

Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens. A comodidade e a rapidez da percepção têm esse preço; mas daí nascem também ilusões de toda espécie. 25

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É importante salientar que aqui nos referimos à noção de real da doxa, do senso comum, tanto empregado por Bergson como por outros teóricos aqui citados, não entrando, portanto, no conceito lacaniano que estabelece a subdivisão entre simbólico, real e imaginário.

48 Assim, tanto internamente, através da imagem dinâmica que se constrói na associação entre os conjuntos de imagens apontados por Dolto, como externamente, através da complexidade de informações e imagens que se produzem diante do sujeito, os desvios e perdas são sempre ativos, reinventando a todo o momento interações novas entre o ser e o ambiente, entre o ser e o outro.

Consideramos fundamental apontar essa construção da imagem do corpo como uma maneira de nos aproximarmos de nossa aposta numa condição matérica da imagem e evidenciamos aqui mais um postulado do qual partimos: a importância do corpo como primeira instância de manifestação da percepção e da constituição de imagens, sendo sua matriz e seu filtro definidor, agindo sobre a realidade percebida e interagindo com o outro, a partir de uma complexa rede de associações físicas, psicológicas, históricas e sociais. Por esse postulado reconhecemos que a materialidade do mundo pode ser tomada como um conjunto de imagens que agem umas sobre as outras, sempre produzindo novas e diferentes reverberações em cada indivíduo. Se as imagens passam a ser um dado concreto de compartilhamento, é mesmo assim importante esclarecer de antemão que não estamos nos referindo a imagens que representam a realidade ou uma verdade seja ela qual for. Ao focalizarmos, por exemplo, uma imagem capturada (uma fotografia ou o reflexo de uma imagem na água), nem nesse caso podemos afirmar que se refira a um „recorte do real‟. Mas é fundamental que a compreendamos diante das condições aqui desenvolvidas relativas ao corpo, à experiência, à percepção, à cognição e às formas de expressão, pois qualquer linguagem e, por conseguinte, qualquer imagem, para ter sentido, precisa adquirir no corpo do indivíduo sua própria corporeidade, sendo passível de ser “metabolizada” ainda como imagem num terceiro corpo que é o corpo relacional ou corpo social.

Mas, para além dessa relação que construímos com a imagem e que procuramos aqui desenvolver inicialmente, interessam-nos explorar sua materialidade a partir de outras referências que se situam nas próprias formas de sua produção, tanto como fenômeno a ser observado como por sua captura, apropriação e transformação, tendo sempre em vista a possibilidade de refletir sobre esta importante presença nas Artes Plásticas.

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