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3.1 A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO CONTEXTO EDUCACIONAL

3.1.1 A importância da participação na educação da sociedade

Uma educação de qualidade, na visão de Demo (1983, p. 518), somente é possível quando ela tem a capacidade de gerar conhecimento original, de conduzir cientificamente o progresso de uma nação e de desenvolver na sociedade, além das condições necessárias para que ela possa resolver os seus problemas, a consciência social, política, cultural e, principalmente, a personalidade democrática de seus sujeitos.

Diante desta afirmação, pesa sobre a família, educadores, professores, instituições de ensino e, sobretudo, o Estado, uma responsabilidade tamanha na condução dos processos e políticas públicas educativas, uma vez que a educação passa a ser encarada, dentro da visão apontada por Demo, como um instrumento de formação para a vida (SCHLESENER, 2007, p. 179), de formação de um novo tipo de homem e de cidadão, para uma nova civilização (GRAMSCI, 1977, apud SCHLESENER, 2007, p. 179-180; FERREIRA, 2006, p. 98; MORIN, 2004, p. 65).

Desta forma, se educar é formar para a vida em sociedade (SCHLESENER, 2007, p. 179), essa educação precisa estar afinada com o que a sociedade pensa e deseja. E é daí que vem o conceito de autonomia educacional (autogoverno), que é a faculdade que os indivíduos têm de se regerem por regras próprias, tendo a liberdade (e capacidade) para definir os rumos de sua educação: o que ler, o que estudar, o que aprender, o que fazer e assim por diante (BARROSO, 2006, p. 16).

Vive-se, atualmente, num mundo dominado por uma ideologia educativa tradicional baseada na reprodução do conhecimento e que coloca em questão a função da escola e, especialmente, a do professor visto, muitas vezes, como mero instrutor do saber. Para Demo (2003, p. 83), a sala de aula, lugar em si privilegiado para processos emancipatórios através da formação educativa, tem se tornado, a cada dia, uma prisão da criatividade do sujeito, à medida que se instala dentro dela um ambiente transmissivo e imitativo de informações de segunda mão. Segundo ele, “na frente está quem ensina, de autoridade incontestável, imune a qualquer avaliação; na platéia cativa estão os alunos, cuja função é ouvir, copiar e reproduzir”.

Infelizmente, a grande maioria das escolas tem pautado a sua relação com o conhecimento única e exclusivamente pelo ensino, trabalhando numa perspectiva de fixidez do conhecimento. São entidades meramente repassadoras e reprodutoras de tudo aquilo que outros produziram. Aqui, o discente não é provocado a refletir criticamente e nem tão pouco a ser co-produtor (participação) dos conhecimentos desenvolvidos em seu ambiente escolar (PARO, 2001, p. 41). “A educação aparece decaída na condição única de instrução e informação, quando deveria aparecer como um ambiente de instrumentalização criativa, num contexto emancipatório” (DEMO, 2003, p. 18).

Ainda de acordo com Demo (1999, p. 22), a verdadeira aprendizagem somente se processa quando as pessoas têm um envolvimento (participação) profundo com o conhecimento, quando são sujeitos e não quando são apenas objeto de intervenção externa. Infelizmente, a escola faz isso: o aluno senta e é condenado a assistir a uma aula que geralmente é puro “café velho”, tomar nota e fazer prova. “É preciso entender que isso é um lixo total e que não passa nada de importante para o futuro do país e para a cidadania da população” (DEMO, 1999, p. 22), cidadania essa, que pressupõe independência, libertação e inovação. O desejo de cidadania é também o desejo de autor, de poder e de liberdade (LEITE, 1998 apud LEITE, 2004, 28).

Predomina na educação do Brasil uma pedagogia conteudista, de cunho essencialmente funcionalista, que acaba tirando a alma do professor, o seu entusiasmo e a alegria de construir o saber elaborado junto com seus alunos. Predomina no país uma pedagogia que sufoca a multiculturalidade própria de nosso tempo, impondo “um saber que contém, dentro dele, elementos que legitimam a dominação, que inibem a possibilidade de os homens se transformarem em sujeitos de sua própria história”. “É um saber que foi expropriado e é devolvido aos seus criadores na forma de receitas, instruções, postulados” (ARGUMEDO, 1985 apud GADOTTI, 2006, p. 35-36).

O que tem definido a qualidade da educação, hoje, não é mais o cultivo do saber e da cultura, mas a capacidade de aparelhar o indivíduo para a sua imediata colocação no mercado de trabalho (SANTOS, 2005). A escola brasileira, orientada em grande parte pelos pressupostos de uma pedagogia tradicional, tem enfatizado o primeiro dos “aprenderes” – o conhecer – que deverão segundo esta perspectiva,

caracterizar a educação do século XXI. Haveria, então, no futuro, lugar para as demais formas como o fazer, o conviver e o ser? (VIEIRA, 2006, p. 135).

Paulo Freire73, segundo Evangelista e Silva (1999, p. 43), denunciou e combateu essa concepção de educação vigente no Brasil, denominada por ele de “educação bancária” (fazendo analogia ao ato de depositar). Nela, o professor é aquele que sabe, que educa, que pensa, que diz a palavra, que atua, que escolhe os conteúdos e que se identifica como a autoridade do saber, por isso sujeito do processo. Os educandos, por sua vez, são aqueles que não sabem, são os educados, os pensados, os que escutam. A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. E essa narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais se “enche” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor será. Quanto mais se deixam docilmente ser “enchidos”, melhores educandos serão74. “Desta maneira”, segundo Freire, “a educação se torna um ato de depositar, em que educandos são os depositários e o educador o depositante” (EVANGELISTA; SILVA, 1999, p. 44; GHANEM, 2004, p. 83-84).

Parece não haver dúvidas de que essa situação de alheamento dos educadores escolares se deve a uma multiplicidade de fatores, entre os quais se destacam sua inadequada formação, bem como as precárias condições em que exercem seu ofício, as quais não lhes proporcionam oportunidades mais sistemáticas de reflexão; sem esquecer o próprio meio social, permeado pela ideologia dominante, que reforça a postura acrílica diante dos problemas (PARO, 2001, p. 30).

A grande contribuição de Paulo Freire para a educação será, sobretudo, filosófica. Isto porque ele pensa a educação entranhada à sociedade, inventaria os valores da sociedade brasileira, critica-os e propõe a construção de novos, para um homem novo, que emergirá a partir da luta coletiva, para um mundo novo sem opressor, nem oprimido (EVANGELISTA; SILVA, 1999, p. 42). Ele entende a educação como um projeto histórico integrado na luta popular e no processo

73

Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997). Um dos principais expoentes da educação popular no Brasil (GHANEM, 2004, p. 82).

74

Edgar Morin (2004, p. 21) utiliza uma expressão similar: “uma cabeça bem cheia”. Tal expressão formulada por Montaigne, contrapõe-se a “uma cabeça bem feita”. O significado de “uma cabeça bem cheia” é uma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado e que não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe dê sentido.

educativo, de formação e capacitação. A ação educativa não deve contribuir apenas para a elaboração e aquisição de conhecimentos, mas também para a elevação do nível de consciência dos indivíduos (educação libertadora). Daí o ato educativo ser um ato político, e o político, educativo (EVANGELISTA; SILVA, 1999, p. 47; GHANEM, 2004, p. 84). “Quanto maior a simetria entre professor e alunos nas relações diretas estabelecidas na prática educativa, mais os alunos estarão exercendo sua liberdade e se afirmando como sujeitos” (GHANEM, 2004, p. 87).

Enquanto a democracia não chegar ao trabalho de sala de aula, a escola não pode ser considerada democrática. A sala de aula não é só lugar de conteúdo. É também lugar da disputa do saber, é o lugar da construção da subjetividade, é o lugar da educação política (BASTOS, 2005, p. 25).

É preciso tirar a escola daquele plano ideológico conservador baseado no isolamento, na massificação do saber e na alienação dos indivíduos, e colocá-la num plano de renovação fundamentado no contato com a sociedade, com a inovação científica e a consciência crítica. Não cabe à escola, especialmente nestes últimos tempos, a responsabilidade de apenas “consumir conhecimento” (LUCKESI et al, 2003). “A ciência não corresponde a um mundo a descrever. Ela corresponde a um mundo a construir” (BACHELARD apud GOLDENBERG, 2000). Para Freire, “a leitura do mundo antecede a leitura da palavra” (EVANGELISTA e SILVA, 1999, 43).

Uma medida nessa direção certamente teria de ser a atenção maior para a concretude das relações que se dão no interior da escola e para com o papel dos atores aí envolvidos, procurando-se desenvolver pesquisas e reflexões cujos objetos de estudo incluam o desvelamento de problemas mais relevantes em termos estratégicos, para municiar, não só educadores escolares, mas também usuários do ensino, na luta por mais e melhores escolas públicas (PARO, 2001, p. 31).

Na medida em que os problemas e diferenças sociais não são conhecidos pelos sujeitos que integram o processo educativo para que se possa propor soluções, isto implica em atrasos para a sociedade nos campos crítico, social, cultural, intelectual e econômico. Nisto a sociedade sofre e se percebe o declínio progressivo do conhecimento e a subversão do papel da escola, em sua condição de formar indivíduos preparados para a vida em sociedade, seja qual for o seu nível.

Sabe-se que a ação docente se estende muito além da sala de aula e que o modo pelo qual o professor conduz seu trabalho é decisivo para modificar ou manter a sociedade que aí está (SANTOS, 2005). A escola precisa dar o exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais importante do que reproduzir com qualidade o que existe, pois “a matéria-prima da escola é sua visão do futuro” (GADOTTI, 2000).

Entretanto, essa construção coletiva do conhecimento somente é possível quando há participação, ou seja, quando se compreende a necessidade de construir comunicativamente o conhecimento através de um plano de ação coletivo. A educação, embora ultrapasse e se exerça em outros espaços que não o escolar, “é uma tarefa coletiva da sociedade e, portanto, de cada comunidade” (NOGUEIRA, 1999 apud VIEIRA, 2006, p. 141). Tudo isso propicia a riqueza de idéias, o debate e o confronto de argumentos diferentes (FERREIRA, 2007, p. 173).

Permitir a participação das pessoas no processo de construção coletiva do conhecimento significa, dentre muitas coisas, oportunizar momentos para que se conheça os problemas e necessidades uns dos outros. Esta atitude, além de ser um importante instrumento de adequação das ações do Estado à realidade local, representa uma maneira de educar informalmente75 o indivíduo para a vida, através do desenvolvimento de valores como cidadania, responsabilidade, consciência política, personalidade democrática, capacidade para resolver problemas e para conviver com a diversidade, propondo mudanças que possam tornar a sua sociedade mais justa e solidária (SINGER, 1998, p. 140).