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A importância da titulação na definição e leitura do herói

No documento O herói sublime: figuras e figuração (páginas 54-67)

1. Elaboração do conceito de herói sublime

1.2. A importância da titulação na definição e leitura do herói

A procura de uma definição para o conceito de herói sublime leva-nos a fazer uma leitura das obras em análise em função dos títulos, uma vez que a relação entre texto e paratexto (Genette, 1982: 17) é aqui particularmente próxima e significativa. Efectivamente, os títulos desempenham um papel fundamental, indicando o herói da obra e estabelecendo, desde logo, um protocolo de leitura. Seguindo um procedimento comum na literatura do século XIX, cinco das seis obras em estudo identificam o herói no título. Quanto à sexta obra, Quatrevingt-treize, Victor Hugo faz a identificação título/herói de modo indirecto, sendo 93 sinónimo de Cimourdain. O autor recorre a um processo metonímico para demonstrar a contiguidade de sentidos existente entre o Terror e o herói e, na alusão à força, à violência, às ambiguidades, justiças, injustiças, simpatias e ódios de um encontramos a referência ao outro – falar de 93 é assim falar de Cimourdain e vice-versa, como de resto se pode depreender quando o narrador diz explicitamente que Cimourdain é 93, sublinhando assim de modo inequívoco a equivalência entre título e herói. A propósito da presença do nome do herói no título das obras românticas, Lilian Furst (1979: 42) afirma que tal não é naturalmente uma coincidência e que subjaz aliás a um outro fenómeno: o reconhecimento da obra através de uma versão abreviada do título. Com efeito, mesmo quando o título não é constituído apenas pelo nome do herói, a obra é igualmente identificada com ele. A presença dos protagonistas das obras analisadas é de tal modo marcante e decisiva para a acção que elas são, regra

41 geral, facilmente identificáveis através dos nomes de Faust, (Peter) Schlemihl, Melmoth ou Frankenstein.

O nome está intimamente relacionado com a própria origem do ser e a sua atribuição surge na Bíblia como um momento essencial para completar o processo da criação (Frye, [1990] 1996: 243) – como o momento que irá permitir ao sujeito o reconhecimento do Outro e, assim, estabelecer os limites que lhe permitem reconhecer-se a si próprio: “The subject can never meet the object, the Other, as the Other, but can only encounter it in the intermediate realm of language, to which both subject and object are assimilated” (Frye, [1990] 1996: 254). Este entendimento do acto de nomear como parte intrínseca do acto de criar (extensível também aos títulos das obras, na medida em que também eles são nomes e logo são parte fundamental do processo de criação e identificação dos textos) permite-nos compreender a eterna incompletude da criatura de Frankenstein. Uma incompletude que ao longo do tempo os leitores têm vindo a resolver, deixando que a criatura usurpe o nome do seu criador como forma de ser. Na verdade, tanto o acto de não nomear o monstro36 (recusando-lhe uma identidade e, em última instância, a própria

existência), como o acto de suprir essa lacuna são igualmente significativos. A não atribuição de nome ao “filho”, numa época em que, segundo Ragussis (1986: 6), o nome próprio do indivíduo (principalmente da criança) adquire uma nova

36 Na verdade, esta ausência de nome próprio constitui um espaço deixado em aberto que Victor e Walton preenchem chamando-lhe “diabo”, “demónio” e “monstro” e mostrando assim como a designação escolhida para alguém influencia a sua leitura por parte dos outros, mas também o conhecimento ou a consciência que este tem de si próprio. Neste caso, o modo negativo como os outros o vêem e o lugar marginal que ocupa na sociedade são trazidos ao conhecimento da criatura tanto pelas reacções que desperta como pelos termos que usam para o designar. Sobre a importância que as palavras do Outro têm na construção da auto-consciência, confronte-se Macovski, 1994: 111-112.

42 proeminência,37 constitui uma forma intencional de exclusão, que tem como

resposta a usurpação do nome (de família) recusado pelo pai. Adoptar o nome do pai revela uma busca de integração através da afirmação da pertença a uma linhagem e constitui simultaneamente o arrogar-se o direito de cidadania. Todavia, a usurpação do nome paterno pode ser também entendida como um acto de afirmação de que o filho adquiriu a sua própria persona, distinta e independente do pai (Mauss, [1938] 2000: 336-337), motivo pelo qual não usurpa o nome próprio – aquilo que define a sua individualidade – mas sim o sobrenome. Na impossibilidade de se nomear o inominável, atribui-se à criatura o nome de família do seu criador, aquele que indica a sua ascendência (mas que deixa também margem para a sua individualidade) e que Botting (2002: 282), remetendo para Foucault e Lacan, afirma ser um elemento essencial à contextualização do filho – à sua inscrição na “temporalidade humana” (Buescu, 2001: 97-98), já que uma das funções primordiais do nome é justamente integrar o indivíduo num determinado sistema cultural (Ragussis, 1986: 7-8). Não se manifesta assim unicamente a necessidade de identificar este sujeito através de um nome que o designe, mas também a de conhecer a sua filiação, identificando-o como membro de determinada família, fazendo-o pertencer a uma estirpe e tornando-o mais familiar através deste processo.

37 “During the eighteenth century in England significant changes occurred in family life that gave a new prominence to the child's name. For example, the omission from genealogies of the names of short-lived infants drops significantly between the sixteenth and the mid-eighteenth centuries, and the practice of giving a newborn infant the same first name as an elder deceased sibling, common in the Middle Ages and the Renaissance, similarly drops sharply by the middle of the eighteenth century. Such changes, of course, signal the growing belief in the uniqueness of the individual, in the belief that one child cannot simply replace another” (Ragussis, 1986: 6).

43 O facto de Victor Frankenstein ter recusado um nome à sua criatura leva a que esta exista sem a presença de uma figura paterna, que teria sido essencial à delimitação das suas fronteiras, ao estabelecimento de regras de conduta, à sua legitimação enquanto membro de uma sociedade e, até mesmo, à definição da sua identidade, como afirma Botting: “The paternal figure polices the boundaries of legitimacy, thereby constituting meaning, behavior, and identity” (Botting, 2002: 282). Até porque, como bem nota Ragussis (1986, 6-7), o nome de família é aproximável ao “nome geral” na filosofia e ao “nome da espécie” nas ciências da natureza, servindo para uniformizar, classificar e até mesmo anular a individualidade (que só pode ser conferida através do nome próprio que a criatura de Frankenstein nunca chega a ter). No entender de Ragussis, atribuir um nome de família é um acto de posse sobre o nomeado que possibilita de alguma forma determinar a sua identidade e limitar tudo o que no sujeito é imprevisível e desviante, e que a ausência de um nome não permite restringir na criatura de Victor, colocanda-o à partida fora de qualquer categoria, sistema e controlo. Com efeito, esta ausência paterna, que se manifesta de modo evidente no não nomear o filho, torna-o, mais do que não-nomeável, não-integrável num mundo em que lhe foi recusado o direito a uma “inscrição identitária na memória social, em síntese, no tempo humano”, sendo forçado a viver “fora do mundo”, num mundo que não é o seu mas para o qual não existe uma alternativa (Buescu, 2001: 97-98).38 Ironicamente foi esta recusa

de Victor Frankenstein em conceder uma identidade à sua criatura (por via do nome), que levou à usurpação do nome do criador/pai, uma vez que a necessidade de nomear esta figura sem nome determinou a identificação imediata da obra com

38 Também Guerreiro (2000b: 82-83) refere o modo como a ausência do patronímico impede a inserção do monstro na sociedade, fazendo desta o não-lugar em que é condenado a viver.

44 ela e não com Victor, herói explicitamente reconhecido como o novo Prometeu mencionado no subtítulo, mas para o qual Spark considera que a criatura constitui uma alternativa a partir do momento em que no título surge a palavra “or”:

(That casual, alternative Or is worth noting, for though at first Frankenstein is himself the Prometheus, the vital fire-endowing protagonist, the Monster, as soon as he is created, takes on the role. His solitary plight –“… but am I not alone, miserably alone” he cries – and more especially his revolt against his creator establish his Promethean features. So the title implies, the Monster is an alternative Frankenstein.)” (Spark, 1988: 161) [itálico da autora]

Nas obras em análise, os títulos identificam e individualizam não só a obra, mas também o herói (mesmo quando a sua identificação é tão complexa como vimos relativamente a Frankenstein; or, the Modern Prometheus), remetendo desde logo o leitor para a sua dimensão mítica. Apesar deste traço comum, os títulos das obras em análise não indicam uma mesma opção estratégica por parte dos autores no que respeita à quantidade de informação neles condensada. Em Faust I, o título sugere apenas uma abordagem do mito de Fausto e a sua continuação noutro/s volume/s. Já em Le Comte de Monte-Cristo, verifica-se a referência ao nome e à posição social do herói, mas também o remeter para o mito de Cristo, como veremos de modo pormenorizado na Parte II. Em Frankenstein; or, the Modern Prometheus, por outro lado, a referência ao nome do herói poderá indiciar as suas práticas científicas, uma vez que o nome reproduz muito provavelmente o de um castelo do Reno (pelo qual a autora e o marido terão passado durante a sua viagem ao longo deste rio, em 1814), onde viveu o alquimista Konrad Dippel, dedicando-se à tentativa de criar um elixir da vida a partir de ossos e sangue (Crook, 2000: 59). Para além desta informação, e tal como sucede em Le Comte de Monte-Cristo, o título menciona ainda o mito em

45 causa nesta obra, o mito de Prometeu, e acrescenta-se o facto de se tratar de uma actualização do mesmo. Todavia, a identificação do mito de Prometeu a partir do título poderá ser de algum modo ilusória. É pelo menos esta a opinião de David Punter, que considera que o mito central para o entendimento da obra de Mary Shelley é sobretudo o de Cristo:

[T]he most immediate connection being with myth, not the stated myth of Prometheus, in which the body is merely an adjunctive site of pain and punishment, but the Christian myth and suffering body of Christ on the cross. Like the Christian myth, Frankenstein is a work of torment and torture, distortion and grotesquerie, the tender passions hung on the cross of pride and reason. […] The monster is not merely 'born'; he is reborn, of course as 'a thing of shreds and patches', but nevertheless as a living reincarnation. (Punter, 1998: 50)

Carl Kerény, em Prometheus ([1946] 1997: 3), estabeleceu a comparação entre estes dois mitos a partir da proximidade invulgar de Prometeu em relação à humanidade e do facto, inédito na mitologia grega, de um deus optar pelos humanos. É, pois, nesta protecção da humanidade que, segundo Kerény, reside a semelhança entre Prometeu e Cristo. Todavia, o autor refere também a grande diferença entre eles: Cristo sofreu uma existência humana e Prometeu não. Na verdade, seguindo o raciocínio deste autor, podemos constatar a presença de ambos os mitos em

Frankenstein; or, the Modern Prometheus. Por um lado, Victor aproxima-se de Prometeu

quando procura utilizar a electricidade com que dá vida à sua criatura em substituição do fogo roubado aos deuses, assumindo-se como um deus que proporciona à humanidade aquilo que lhe foi vedado pelos restantes deuses. Por outro lado, Victor e a sua criatura podem ser vistos como uma recriação de Cristo e da ressurreição, na medida em que o herói vive como um ser humano que sofre física e psicologicamente, como se aceitasse a sua crucificação/punição em troca da

46 possibilidade de trazer a luz à humanidade. Uma luz que se traduz na salvação tornada visível através da ressurreição, neste caso sob a forma da criatura (que Spark (1988: 161) diz perpetuar Victor), ainda que se trate de um monstro feito de restos humanos.39

Em Melmoth the Wanderer, a associação da história do herói (Melmoth) ao mito do judeu errante é inevitável, antes de mais pela proximidade das designações em inglês – Melmoth the Wanderer e The Wandering Jew – e também porque este foi um dos mitos mais explorados na literatura do período Romântico. São exemplos do recurso a este mito, entre muitos outros, Der Wandernde Jude (Christian Schubart, 1785), Der Ewige Jude (A. O. Richard, 1785), Der Geisterseher (Friedrich Schiller, 1786),

The Monk (Matthew Lewis, 1795), Peter Schlemihls wundersame Geschichte (Chamisso,

1813) Ahasverus (Andersen, 1844), Isaac Laquedem (Dumas (pai), 1853), Chronicles of

Cartaphilus, the Wandering Jew (David Hoffmann, 1853-4) e La Fille du Juif Errant

(Paul Fével, 1878). Associada às ideias da natureza desastrosa da transgressão e da marginalização como consequência desse acto, a exploração do mito do judeu errante no período Romântico está associada ao tema da expulsão do paraíso, não apenas de um paraíso celeste, do Éden descrito na Bíblia, mas do paraíso terrestre do protagonista. O herói que erra é uma alma atormentada que vagueia porque perdeu a sua casa como forma de punição para o (seu) pecado original – alguém que foi expulso do mundo, como refere Schlemihl: “Ich schwankte hinweg, und mir war’s, als schlösse sich hinter mir die Welt zu.” (Chamisso, [1813] 1922: 294). Linda

39 Até porque, não se podendo libertar da sua qualidade humana, Victor nunca poderia criar a partir do nada, uma vez que, como afirma Gusdorf (350-351), só Deus o pode fazer. O homem não é o princípio e, como tal, não poderá jamais ultrapassar essa desproporção que o autor diz existir entre Deus e o homem: “Le créateur humain demeure créature; il recueille des fragments de l’œuvre divine et les manipule selon la mesure des pouvoirs qui lui ont été donnés, tel un enfant jouant avec des galets sur la plage” (Gusdorf, 1984: 356).

47 Bayer-Berenbaum aproxima Melmoth de várias figuras míticas que, devido aos seus crimes, sofreram a maldição de vaguear permanentemente, como sejam Adão, Caim e até mesmo os vampiros:40

Melmoth is associated with a number of different biblical characters. He has the brand on his brow, linking him with Cain, the first murderer, condemned to wander the earth for his crime of blood, yet he is also cast as Adam after the Fall, who has ‘eaten of the fruit of the interdicted tree … and [been] sent to wander mid worlds of barrenness and curse for ever and ever.’ (Notice the similarities between the vampire’s curse and that of both Cain and Adam. In exchange for his blood thirst, the vampire too is condemned to wander the earth forever). (Bayer-Berenbaum, 1982: 98)

Esta autora sugere ainda a aproximação de Melmoth ao mito de Cristo, na medida em que o herói de Maturin é apresentado como parcialmente mortal, parcialmente divino e em que se entrega à sua culpa e ao sofrimento (Bayer-Berenbaum, 1982: 98), como teremos oportunidade de confirmar no capítulo relativo à punição e à absolvição.

Como vimos, a utilização do termo Wanderer no título de uma obra romântica remete, logo à partida, para uma figura transgressora, exilada e em busca de uma qualquer forma de absolvição, ou de um reconhecimento da sua inocência, que a liberte da errância (Ellis, 1989: 166), possibilitando desse modo a sua reintegração na sociedade. Na verdade, esta é, como já referimos, uma situação bastante comum nos heróis deste período e, nas obras em análise, não se atém unicamente ao protagonista da obra de Maturin, constituindo o errar por caminhos tortuosos e muitas vezes intermináveis um motivo importante também em Frankenstein; or, the

Modern Prometheus, em Le Comte de Monte-Cristo, e sendo o motivo central de Peter

40 Sobre a proximidade entre as figuras do vampiro e do vilão gótico, veja-se “The Vampire as Gothic Villain” (Senf, 1988: 31-74).

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Schlemihls wundersame Geschichte (tal como em Melmoth the Wanderer e nas diversas obras

que neste período exploram os mitos associados ao Judeu Errante).

Retomando a questão da titulação, em Peter Schlemihls wundersame Geschichte, o nome do herói é desde logo significativo, uma vez que, em Iídiche, a palavra Schlemihl designa um homem azarado ou ridículo (Herdman, 1990: 42), indo ao encontro quer do destino quer da descrição da personagem que é feita logo no início da obra:

Du wirst Dich noch eines gewissen Peter Schlemihls erinnern, den Du in früheren Jahren ein paarmal bei mir gesehen hast, ein langbeiniger Bursch’, den man ungeschickt glaubte, weil er linkisch war, und der wegen seiner Tätigkeit für faul galt. (Chamisso, [1813] 1922: 267)

Nesta obra, para além de colocar a questão do nome do protagonista, o título remete o leitor para o domínio do fantástico, pois não se trata apenas da história de Peter Schlemihl, mas da sua história maravilhosa (“wundersame Geschichte”). Cria-se assim no leitor uma expectativa que na obra é concretizada com a presença de uma figura demoníaca que se move entre o mundo real e o sobrenatural, com a referência a uma sombra que se autonomiza relativamente ao corpo, com a Bolsa de Fortunato (de que se podem retirar riquezas infindáveis), com as Botas das Sete Léguas e as pantufas com que elimina o seu efeito (Chamisso, [1813] 1922: 267-268).

Por último, temos Quatrevingt-treize. Aqui, como atrás referimos, procede-se a uma identificação indirecta do herói, mas nem por isso a quantidade de informação relativa ao conteúdo da obra é menor. Efectivamente, tratando-se de uma obra francesa datada de 1874, a identificação do título com os acontecimentos de 1793 é imediata, uma vez que a data reporta a um dos momentos mais marcantes da

49 História desse país. Por outro lado, não se está apenas a localizar a acção no espaço e no tempo, mas também a informar relativamente a toda a componente sociopolítica em que irá decorrer. Assim, remetendo o leitor para os acontecimentos relativos ao período do Terror (1793/94), que não podemos dissociar do contexto do pós-Revolução Francesa, o título indicia à partida uma obra referente à conturbação e aos factos grandiosos vividos nessa época e, metonimicamente, o carácter conturbado e grandioso de Cimourdain, o herói que cresceu com os acontecimentos:

Il avait vécu les grandes années révolutionnaires, et avait eu le tressaillement de tous ces souffles: 89, la chute de la Bastille, la fin du supplice des peuples ; 90, le 4 août, la fin de la féodalité ; 91, Varennes, la fin de la royauté ; 92, l'avènement de la République. Il avait vu se lever la Révolution ; il n’était pas homme à avoir peur de cette géante ; loin de là, cette croissance de tout l’avait vivifié ; et quoique déjà presque vieux – il avait cinquante ans, -et un prêtre est plus vite vieux qu’un autre homme, il s’était mis à croître, lui aussi. D’année en année, il avait regardé les événements grandir, et il avait grandi comme eux. (Hugo, [1874] 1979: 150-151)

O paralelismo entre os acontecimentos e a evolução de Cimourdain é aqui sublinhado por uma repetição da estrutura da frase que origina um crescendo ao nível das ideias através da enumeração de datas decisivas para a Revolução Francesa, partindo da queda da Bastilha, prosseguindo com a referência aos vários “fins” daí resultantes e terminando com o advir da República – culminar do processo revolucionário identificado com este herói. De resto, a equivalência que se cria na narração entre Cimourdain e 93 chega mesmo a esta interpenetração sujeito/objecto, só possível num universo metafórico. Como explica Northrop Frye ([1990] 1996: 254), a metáfora é contralógica, uma vez que a afirmação de que A é B, apesar de se saber que não é, só faz sentido nesse mundo próprio da metáfora,

50 onde os conceitos se podem equivaler sem que tal obedeça a qualquer tipo de lógica e dentro do qual Cimourdain e os acontecimentos terríveis de 1793 podem ser sinónimos.

O período histórico que abrange a Revolução Francesa constituiu um momento que, pela dimensão e repercussão dos acontecimentos ao longo dos séculos posteriores e pelo que trouxe de novo ao mundo, pode ser lido como um passado que une presente e futuro (Frye [1990] 1996: 254). Trata-se, pois, de um período que, tendo dado origem a um mundo novo, acaba por poder assumir-se dentro do âmbito do mítico e Cimourdain, sendo seu equivalente, pode ser visto, ele próprio como um mito. Efectivamente, o herói surge em Quatrevingt-treize não só como sinónimo dos acontecimentos, mas também, e remetendo mais uma vez para o mito, como uma forma de narração de uma história que relata uma acção fundadora praticada por seres que na mitologia tradicional seriam sobrenaturais ou divinos e que, nesta obra, surgem sob a forma de homens extraordinários que “usurpam” esse estatuto de divindade (Marat, Danton, Robespierre e o próprio protagonista). Segundo Guerlac (1990: 20), Quatrevingt-treize conta a história da origem do homem do século XIX (fundado sobre os acontecimentos de 89 e 93), e

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