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O herói e/o abjecto

No documento O herói sublime: figuras e figuração (páginas 124-143)

1. Elaboração do conceito de herói sublime

2.1. A busca da unicidade: O carácter excepcional do herói sublime

2.2.2. O herói e/o abjecto

O conjunto de características excepcionais, invulgares e inexplicavelmente ligadas que marca os heróis sublimes faz deles monstros, e é dele que resultam tanto o seu fascínio como a sua abjecção. Efectivamente, é este somatório de características que leva a que o herói sublime surja ao mesmo tempo como objecto de atracção e objecto de repulsa. Estamos, pois, perante um tipo de herói que nos parece poder enquadrar-se na definição de abjecto proposta por Julia Kristeva em

Pouvoirs de l’Horreur (1980: 9-39): um herói que atrai porque é repulsivo e que é tanto

mais atraente quanto maior for o sentimento de repulsa que provoca.

Com efeito, o herói sublime é, na sua monstruosidade, o elemento da sociedade que, não sendo limpo ou adequado, ela procura eliminar (sem que, contudo, o consiga fazer de modo definitivo). Na verdade, enquanto elemento abjecto, o herói sublime constitui uma manifestação do carácter ambíguo que faz da abjecção simultaneamente uma recusa e um reconhecimento de um estado do sujeito e da sociedade que é anterior à depuração feita pelas regras morais e sociais com que a sociedade burguesa procura erradicar o lado indesejável do seu ser primordial (no qual coexistiam limpo e sujo, próprio e impróprio). De resto, a sociedade – que aqui referimos como um Eu/elemento pretensamente limpo e adequado – rejeita, expulsa e exclui tudo aquilo que, segundo Kristeva, denuncia a presença do abjecto, isto é, o desadequado, o sujo, a desordem corporal e o anti-social (Gross, 1990: 86). Fá-lo, contudo, com base no princípio inviável, ou pelo menos muito frágil, da proibição do contacto com os elementos definidos por

111 Kristeva como verdadeiramente abjectos e que, segundo Lukacher (1992: 144), equivalem àquilo a que Bataille se refere como “objectos impuros e intocáveis”. Sujeito e sociedade procuram atingir uma identidade sem mácula, uma identidade perfeita, que oculte os aspectos (físicos e morais) que consideram inconvenientes. Dá-se, pois, um processo em que, nas palavras de Halberstam (1995: 22), se opõem identidade humana (positivo) e monstro (negativo a partir do qual se revela o positivo). Este processo conduz ao afastamento (possível) do monstro81 e vai ao encontro do conceito de abjecção proposto por Kristeva, na

medida em que por um lado, desfaz a multiplicidade primordial, que seria impeditiva do emergir da identidade coerente (individual ou de grupo) e, por outro lado, coloca o Eu sob o jugo de uma autoridade externa que funciona no sentido da sociabilização dentro de um sistema que recusa a multiplicidade (Hogle, 1998: 204).

Contudo, ao tentar desfazer-se daquilo que em si é abjecto, sociedade e sujeito estão a criar uma identidade provisória e por isso instável. Efectivamente, o recusar algo que é parte de si e o tentar afastar permanentemente algo que pode ser recalcado e ocultado, mas nunca eliminado, dá origem a uma fragmentação interior e a uma fragilização da identidade que são comuns ao herói sublime e à sociedade a que este pertence – se é que podemos falar em pertença quando nos referimos a uma figura que, como vimos atrás, apesar de atravessar diversos espaços físicos e sociais, não se enquadra integralmente em nenhum deles.

Nas obras em estudo, a repulsa prende-se tanto com questões morais, com uma rejeição/aceitação dos comportamentos dos heróis de Quatrevingt-treize, de Faust

81 Isto porque, segundo Gross (1990: 89), o abjecto é justamente a demonstação da impossibilidade de fazer demarcações claras entre as categorias propostas por Kristeva do limpo e do sujo, do próprio e do impróprio, da ordem e da desordem e, nessa medida, também entre o monstro (corporização do sujo, do impróprio e da desordem) e a dita normalidade.

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I e de Le Comte de Monte-Cristo, como com questões físicas associadas a questões

morais, como se verifica em Melmoth the Wanderer, Peter Schlemihls wundersame Geschichte e Frankenstein; or, the Modern Prometheus. Nos últimos três casos, a invulgaridade/deformação física surge como sinal da transgressão moral. Deste modo, verificamos que os poderes extraordinários de Melmoth, tal como os de Schlemihl (bem como o facto de este não ter sombra), advêm de pactos com o demónio que estes poderes acabam por revelar, ou que estão subentendidos, como sucede com Edmond Dantès. Já em Frankenstein; or, the Modern Prometheus, e ainda que o princípio seja o mesmo e que a deformação física revele uma deformação moral, a questão coloca-se de um modo mais elaborado - Victor manifesta a sua desfiguração moral através da projecção da mesma no corpo aberrante da sua criatura:82

Victor Frankenstein, ao arrogar-se o direito de se apropriar de e substituir as funções do útero materno, está perfeitamente consciente da ambivalência e dos riscos da sua posição, sendo o terror que o monstro lhe inspira quando o vê pela primeira vez o resultado do seu aspecto grotesco, por um lado, e por outro, o medo do castigo divino, de ser punido e engolido por esse mesmo útero que ele rejeitou. (Ferreira, 1996: 92)

Segundo Jerrold Hogle (1998: 195), a criatura de Frankenstein (à semelhança do que ocorre noutras relações Criador/monstro) é o espaço daquilo de que Victor se quer desfazer, neste caso a sua própria deformação moral. A criatura monstruosa exibe no seu corpo a multiplicidade que Victor procura ocultar. Com efeito, no processo de recolha de restos humanos para criação de uma vida que pretende coesa, é o próprio criador que se vai degradando, transformando-se em fragmento –

82 Motivo pelo qual não isolamos a criatura de Frankenstein como um caso de repulsa puramente física.

113 “Sometimes I grew alarmed at the wreck I perceived I had become” ([1818]1998: 56) - revelando assim um lado abjecto que é finalmente exposto na sua totalidade quando vê pela primeira vez a sua criação, o reflexo de si próprio:

His yellow skin scarcely covered the work of muscles and arteries beneath; his hair was of lustrous black, and flowing; his teeth of pearly whiteness; but these luxuriances only formed a more horrid contrast with his watery eyes, that seemed almost of the same colour as the dun-white sockets in which they were set, his shrivelled complexion, and straight black lips. (Shelley, [1818]1998: 57)

Significativamente, o narrador realça o facto de a pele da criatura de Victor não se apresentar como uma camada uniformizadora da superfície do corpo, mas sim como uma transparência através da qual é revelada a multiplicidade que compõe o seu interior e que deveria ser tendencialmente ocultada. Na verdade, a representação das falhas da pele que revelam um interior tão ou mais horrendo do que aquilo que é visível à superfície constitui um mecanismo através do qual o narrador faz com que a etopeia do criador decorra da prosopografia da sua criação. Na realidade, a descrição física do corpo excessivo e monstruoso deste ser é, em última análise, uma forma de construção indirecta da etopeia de Victor Frankenstein, formando e expondo o carácter desta personagem. Há, pois, nesse excerto, um desvendar daquilo que em Victor/na sua criatura é mais íntimo (física e mentalmente), num acto de total despudor. De resto, este ser concebido por meios artificiais exibe todo o seu horror, tanto à superfície da como sob a sua pele, sendo que até mesmo aquilo que poderia ser sinónimo de perfeição, como a brancura dos dentes e o cabelo negro brilhante, acaba por constituir um meio de sublinhar o horror da incoerência: os dentes brancos que contrastam com os lábios pretos, o cabelo negro caindo sobre uma pele amarela, que não é asiática, e junto a uns olhos esbranquiçados – do

114 conjunto ressalta a multiplicidade, a indefinição e a total desconexão dos diferentes elementos que a compõem, o fracasso total da tentativa de representação do ser perfeito, que é também sinónimo do fracasso de Victor Frankenstein enquanto ser uno, coeso e completo.

Segundo Kristeva, o mais repugnante de todos os desperdícios é o cadáver (1980: 11), pelo que encontramos na criatura de Frankenstein um exemplo literal da sua monstruosidade (e por metonímia da monstruosidade do seu criador) como sinónimo de criação (ou criatura) imunda – “filthy creation” (Shelley, [1818] 1998: 55) – e, portanto, como elemento repugnante a ser eliminado através de um processo de abjecção. Com efeito, o corpo repugnante da criatura mais não faz do que negar a existência de uma dicotomia mente/corpo e mostrar aquilo a que Gross (1990: 82) chama uma “mente do corpo”, isto é, mostrar que existe um “desenho do interior do corpo” no seu exterior e um “desenho do exterior do corpo” no seu interior – mostrar afinal que corpo e mente abjectos da criatura e do seu criador existem numa relação de interdependência e de indivisibilidade. Deste modo, em

Frankenstein; or, the Modern Prometheus, o processo de criação revela-se afinal um

processo de mostração: de exibição do que existe mas não devia ser mostrado. A criatura de Victor não é sinónimo de um desfazer-se do elemento abjecto, mas sim, e como nota Hogle (1998: 186), um revelar de tudo aquilo que Victor e a sociedade burguesa rejeitam, do seu lado abjecto/do monstro em si, daquilo que não pode ser reduzido a uma unidade coerente dentro de um sistema. Segundo este autor, a monstruosidade da criatura manifesta-se na medida em que corporiza e distancia tudo o que em Victor, na sociedade, e nela própria é rejeitável pela cultura ocidental:

115 The creature is a ‘monster’ in that it/he embodies and distances ‘all that society refuses to name’ – all the betwixt-and-between, even ambisexual, cross-class, and cross-cultural conditions of life that Western culture “abjects”, as Kristeva would put it. (Hogle, 1998: 186) [itálico do autor]

Os heróis sublimes são, pois, elementos que pela sua diferença, pelas marcas extraordinárias que ostentam, constituem figuras indizíveis, inclassificáveis, alteridades inassimiláveis que correspondem deste modo ao “sintoma do abjecto” descrito por Julia Kristeva: “Le symptôme: un Langage, déclarant forfait, structure dans le corps un étranger inassimilable, monstre” (Kristeva, 1980: 19) [itálico da autora]. A sociedade é incapaz de assimilar estes heróis, mas é também incapaz de os eliminar e, segundo Julia Kristeva, é o reconhecimento da impossibilidade de excluir os elementos ameaçadores e anti-sociais83 (que aqui analisamos como parte do

sujeito, mas também como parte da sociedade enquanto identidade) que provoca a sensação e a atitude a que a autora chama abjecção (Gross, 1990: 87).

O conjunto de malformações que caracterizam os heróis sublimes torna-os simultaneamente cativantes e repulsivos, possuidores de um fascínio que Kristeva diz próprio do (sujeito) abjecto e que ele utiliza sobre as suas vítimas, tornando-as submissas e voluntárias (1980: 16-17). De resto, este encantamento é uma constante nos heróis românticos. Eles são figuras carismáticas a que não é possível ficar indiferente, são personagens arrebatadoras e repugnantes, geradoras de ódios e afeições, ou de uma mistura de ambos. Estas características inexplicavelmente ligadas traduzem-se na própria expressão herói-vilão, habitualmente utilizada para designar o herói romântico: isto porque, se por um lado eles provocam um

83 Até porque, estes heróis sublimes/monstrusos despertam sentimentos ambíguos no sujeito e na sociedade que, se por um lado desejam eliminá-los definitivamente, por outro, segundo Gil (1994: 135), não deixam de procurar na figura do monstro uma imagem estável de si próprios.

116 sentimento de revolta devido aos seus actos criminosos, por outro não deixam de exercer sobre os que os rodeiam, e sobre o próprio leitor, a atracção que faz deles heróis, submetendo os outros passivamente aos seus actos e fazendo com que o leitor, apesar de ter conhecimento dos contornos mais obscuros da sua personalidade, os aceite mais do que como vilões, como vítimas do seu mundo ficcional (Butler, 1981: 161). Independentemente da vontade ou do juízo racional do outro, a atracção pelo herói abjecto (que é também uma atracção pelo abismo) é inevitável.

Importa, pois, distinguir duas situações em que o abjecto se verifica: aquela em que o herói reconhece em si um lado abjecto que procura suprimir, e aquela em que é o próprio herói quem constitui o elemento abjecto de uma sociedade que o procura erradicar. Em Peter Schlemihls wundersame Geschichte, por exemplo, verificam-se ambas as situações – a do terror que Peter Schlemihl sente perante a sua própria condição de homem sem sombra (de que não se pode libertar) e a da atracção/repulsa que desperta nos outros, como sucede com Mina que, apesar de aterrorizada desde o primeiro momento pela ausência de sombra em Schlemihl (Chamisso, [1813] 1922: 278-279), não consegue evitar um amor que acabará por conduzi-la (in)voluntariamente à desgraça.

Em Peter Schlemihls wundersame Geschichte, tal como em Faust I, por exemplo, a questão do abjecto não se coloca apenas ao nível da figura do herói, mas também da sua relação com outros elementos abjectos – no caso de Schlemihl, salienta-se a sua relação com o ouro e com o homem de cinzento. Numa passagem referente ao seu relacionamento com a fortuna que possui, Schlemihl expressa-se em termos de atracção/repulsa, como se estivesse a falar de uma questão sexual – o ouro é algo

117 que ele deseja e possui de uma forma quase carnal, com volúpia, para o rejeitar logo em seguida:

So verging der Tag, der Abend; ich schloß meine Tür nicht auf, die Nacht fand mich liegend auf dem Golde, und darauf übermannte mich der Schlaf. [...] Ich stieß von mir mit Unwillen und Überdruß dieses Gold, an dem ich kurz vorher mein törichtes Herz gesättigt [...]. (Chamisso, [1813] 1922: 277)

Trata-se de uma relação que reflecte afinal a de Peter Schlemihl consigo próprio (a sua fragmentação interior) e o modo como encara, não só o ouro perturbador, sujo e impeditivo da sua tranquilidade, mas também aquele que lho proporcionou. Efectivamente, é a abjecção que define a sua experiência quando observa o homem de cinzento. Schlemihl sente-se incapaz de evitar olhar para uma figura que não suporta: “[S]o ward mir doch seine blasse Erscheinung, von der ich kein Auge abwenden konnte, so schauerlich, daß ich sie nicht Länger ertragen konnte” (Chamisso, [1813] 1922: 274). Mas, em Peter Schlemihls wundersame Geschichte, a conexão entre ouro e abjecção vai além dos sentimentos do protagonista. Na verdade, existe uma outra vertente deste objecto que é semelhante à que se verifica em Le Comte de Monte-Cristo: aqui o dinheiro assume o papel de objecto que potencia parte do fascínio dominador exercido pelo herói sobre os outros. É a riqueza que encanta os que o rodeiam a ponto de, em parte, as suas faculdades ficarem suspensas, mas também, e em grande medida, de eles fingirem não se aperceber da estranheza e da diferença, ou até mesmo dos comportamentos transgressores e das mentiras dos heróis. Ou seja, é o ouro que faz de um sujeito, que à partida seria apenas repulsivo, um indivíduo atraente, ao qual todos se submetem prontamente. A fortuna encanta, mas também compra e, como tal, expõe outros elementos

118 (moralmente) abjectos, nomeadamente a hipocrisia e a falsa moralidade que presidem ao encenar social do Eu limpo e adequado e, por isso, faz prolongar o abjecto dentro da própria (aparente) normalidade.

Na verdade, tanto a hipocrisia como a falsa moralidade constituem elementos que a sociedade e os indivíduos reconhecem como componentes que idealmente deveriam ser eliminados, mas que na prática nunca o são. De resto, o dinheiro é um dos elementos abjectos que nas obras em análise melhor revela os restantes, expondo o contraste entre a moral e os ideais fundadores da sociedade burguesa e a sua (não) prática – são as fortunas de Peter Schlemihl e do Conde de Monte-Cristo que lhes permitem, até certo ponto, viver dentro da sociedade e até mesmo ter poder dentro de um espaço social que, não fora a importância que atribui aos valores materiais, prontamente teria excluído estas figuras estranhas, de proveniência desconhecida e com fortunas de origem duvidosa, que assim sendo provocam concomitantemente repulsa pela diferença e fascínio pelo poder (que compram com as suas fortunas).

Os “heróis abjectos” constituem afinal um repositório das dicotomias e dos paradoxos que definem o ser humano e a sociedade, tornando-os visíveis e sendo por isso fascinantes, como nota Bernstein:

In order to fascinate, the Abject Hero must first persuade us that in spite of the obvious unpleasantness – or, more accurately, exactly because of that unpleasantness – conversation with him will yield the benefit of an otherwise unavailable insight into both human nature and the workings of society. Crucial to his success is the Abject Hero’s exploitation of the knowledge that the dominant culture itself has endowed his marginal position with the compensatory prestige of an access to truths supposedly ‘denied to those blinkered by or imprisoned in the assumptions of their own society.’ (Bernstein, 1992: 33)

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Efectivamente, Bernstein sublinha relativamente a estes heróis alguns aspectos que são também fundamentais à definição do conceito de herói sublime: a noção de que se trata de figuras marginais, uma vez que existem à margem das regras da cultura dominante; a ideia de que despertam a repulsa por parte dessa mesma cultura, mas também a noção de que essa abominação do herói abjecto é indissociável do fascínio que a sua visão única e reveladora do âmago do ser e da sociedade desperta na dita normalidade. Este fascínio, que podemos aproximar daquilo que atrás designámos por estupor, resulta do carácter excepcional do sujeito e da sua exposição, da exibição de uma singularidade deformada. Tal como Burke propõe na sua definição da experiência sublime (Burke, [1757] 1990: 57), também perante o objecto abjecto se dá um gelar das faculdades, uma suspensão do ser que observa. O que torna estes heróis sedutores e temíveis é afinal a singularidade pressentida (a noção ou a suspeita de que algo de obscuro marcou o passado do herói, até mesmo a sua origem, e o acompanha até ao presente), que se alia a um grau de exposição apenas suficiente para despertar a curiosidade, o interesse, e provocar a incapacidade de desviar o olhar. O herói abjecto, apesar de ser uma figura claramente sedutora e de fazer com que todos os olhares se centrem em si, como se refere em Le Comte de

Monte-Cristo, a propósito da presença do Conde no baile dos Morcef – “tous les yeux

se fixaient sur lui” (Dumas, [1845] 1981: 413-414), é simultaneamente uma presença incómoda:

- Revenons à la promesse que vous vouliez exiger de moi, comtesse, dit Franz.

- Ah ! c'est de rentrer directement à l'hôtel et de ne pas chercher ce soir à voir cet homme. Il y a certaines affinités entre les personnes que l'on quitte et les personnes que l'on rejoint. Ne servez pas de

120 conducteur entre cet homme et moi. Demain courez après lui si bon vous semble ; mais ne me le présentez jamais, si vous ne voulez pas me faire mourir de peur. (Dumas, [1845] 1981: 413-414)

A sua estranheza e o seu mistério são uma espécie de recordação de algo que se procura e se evita ao mesmo tempo, numa ambiguidade de sentimentos que neste excerto é expressa pela Condessa G. relativamente ao Conde.

Tal como vimos a propósito de Peter Schlemihl, o herói que por ter perdido a sombra e por se ter tornado misteriosamente rico e eloquente se transforma numa figura notada, também Melmoth e Cimourdain são figuras que despertam a curiosidade daqueles que os olham como se fossem abismos perigosos, ameaçadores, mas absolutamente irresistíveis. O mistério que envolve Melmoth (tal como o que envolve o Conde de Monte-Cristo) faz com que, apesar de ser aterrador (ou por causa disso) ele centre sobre si todas as atenções.84 A mesma sociedade que

o procura suprimir não consegue evitar o seu fascínio. Já no caso de Cimourdain, existe também um passado obscuro – a sua vida enquanto padre, que o narrador afirma ser o seu lado negativo (Hugo, [1827] 1993: 116) – aqui aliado a um carácter severo e insondável. Todavia, neste caso, não são só os aspectos que à partida

84 De resto, na obra de Dumas, há uma longa descrição da figura do Conde, no final da qual se conclui que o verdadeiro motivo para o interesse despertado pelo Conde é o mistério que o envolve: “Nous l'avons déjà dit, le comte, soit prestige factice, soit prestige naturel, attirait l'attention partout où il se présentait ; ce n'était pas son habit noir, irréprochable il est vrai dans sa coupe, mais simple et sans décorations ; ce n'était pas son gilet blanc sans aucune broderie ; ce n'était pas son pantalon emboîtant un pied de la forme la plus délicate, qui attiraient l'attention : c'étaient son teint mat, ses cheveux noirs ondés, c'était son visage calme et pur, c'était son oeil profond et mélancolique, c'était enfin sa bouche dessinée avec une finesse merveilleuse, et qui prenait si facilement l'expression d'un haut dédain, qui faisaient que tous les yeux se fixaient sur lui. Il pouvait y avoir des hommes plus beaux, mais il n'y en avait certes pas de plus significatifs, qu'on

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