• Nenhum resultado encontrado

A importância de obras marginais para a contemporaneidade

A proveniência (Herkunft) do historiador não dá margem a equívoco: ela é de baixa extração. Uma das características da história é a de não escolher: ela se coloca no dever de tudo compreender sem distinção de altura; de tudo aceitar, sem fazer diferença. Nada lhe deve escapar, mas também nada deve ser excluído. [...] O historiador é insensível a todos os nojos: ou melhor, ele tem prazer com aquilo mesmo que o coração deveria afastar.

Michel Foucault

Muitos foram os filósofos, as reflexões e as correntes que contribuíram para que a tendência do pensamento contemporâneo assumisse esse perfil aberto, híbrido e flutuante. Nietzsche, Foucault, Benjamin e Derrida são apenas alguns nomes de importantes homens que refletiram, ao longo dos séculos, sobre as noções que hoje temos do real.

Ao reconhecer que o saber é múltiplo, mutante e inclassificável, os estudiosos deixam de olhar apenas para o que foi “centrado” durante séculos pelas mais diversas áreas do conhecimento e passam a considerar também o que foi expulso desse centro fixo e imóvel. Acreditando nesse contexto aberto e “democrático”, que respeita e olha para os destroços que foram jogados para fora do caminho, Michel Foucault (1992a) propôs uma história que fosse capaz de abarcar tudo e um historiador “insensível a todos os nojos”.

Se considerarmos que as reflexões até aqui delineadas tendem a compreender as coisas do mundo contemporâneo de uma forma mais explosiva, entrecortada e relativizada, como interpretar as totalizações – “compreender tudo”, “tudo aceitar” – sugeridas pelo teórico francês na epígrafe que abre esta discussão?

Acreditamos que as totalizações mencionadas por Foucault não se correlacionam ao fechamento, à conclusão, ao esgotamento de uma reflexão. O francês não dialogava com as definições fixas, as conclusões irrevogáveis, a imobilidade das coisas.

Ao dizer que a história deve compreender e aceitar tudo, Michel Foucault não parece propor que a história abarque e conte, literalmente, todas as narrativas. Na verdade, o que o filósofo parece sugerir é que a história não privilegie apenas os grandes acontecimentos. Aceitar tudo implica falar das grandes façanhas, mas significa falar também do cotidiano – “compreender tudo sem distinção de altura”.

Quanto ao historiador “insensível a todos os nojos”, de modo similar, o pesquisador francês pretende que não haja privilégio na escolha e seleção de acontecimentos a serem narrados. Ou seja, devemos falar sobre os eventos grandiosos, as vitórias, as alegrias, mas também sobre as derrotas, as tristezas, os erros, as dores, as mortes, o que foi desagradável, inferior e descartado pela história tradicional – o historiador deve ter prazer “com aquilo mesmo que o coração deveria afastar”.

Em “Nietzsche, a genealogia e a história” (1992a), Michel Foucault sugere que a história, a proveniência – como ele denomina a história “efetiva” –, deve lançar o olhar para o que está próximo. A proveniência diz respeito ao corpo, ao sistema nervoso, aos alimentos e à digestão. O filósofo acredita que a história deve se originar e se dirigir à plebe, ao povo, às camadas baixas da sociedade. Portanto, o historiador foucaultiano é aquele que percorre os mais diversos e baixos lugares.

A história não é composta apenas por celebridades. Pelo contrário, ela é feita por: velhos, crianças, mulheres, trabalhadores, operários, donas de casa. O mundo é governado pelos “chefes”, mas são, principalmente, os empregados que operam o motor das máquinas, fazendo as histórias se moverem.

No livro Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo (1989), Benjamin afirma que o trapeiro, a prostituta, o proletário e “[...] a multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos usados na fabricação de obras- primas... [...]” (BENJAMIN, 1989, p. 73) foram alguns dos personagens oprimidos escolhidos por Baudelaire para compor suas poesias. O poeta francês também acreditava que os temas de sua produção encontravam-se na vida privada e simples – excluída da história tradicional.

As camadas marginais e sombrias da sociedade do final do século XVIII foram, especialmente, focalizadas pelo olhar do flâneur baudelairiano. Ele vagou pelas ruas parisienses, sem rumo, observando as galerias, as vitrines e a solidão da vida moderna. Era principalmente através do olhar – e não da audição –, que as relações humanas dos grandes centros urbanos do início do século XIX podiam ser capturadas. Então, olhando e observando, como um detetive, Baudelaire caminhou através do coletivo inquieto e efervescente da capital francesa e colheu o material e a inspiração para seu trabalho literário. Os transeuntes, a multidão de oprimidos, os operários das fábricas, as prostitutas e as sombras da cidade – a proveniência – foram os principais personagens das poesias do poeta francês.

Vale destacar que as narrativas excluídas, por não pertencerem a um saber canônico, não são o único foco de interesse dos estudos contemporâneos. Com a globalização e os meios de comunicação de massa, as diversas manifestações discursivas tornaram-se também alvo de pesquisas atuais. O objeto de investigação da literatura – o texto escrito e impresso – deixou de ser o único objetivo dos estudos literários, isto é, a identidade, exclusiva, entre livro e literatura deixou de existir. Outros suportes e outras linguagens passaram a ser considerados (OLINTO e SHØLLHAMMER, 2003). Nesse sentido, o conceito de literatura e, automaticamente, a concepção de narrativa foram ampliados.

A literatura passou a se interessar pelos processos comunicativos que se materializam em diversos sistemas simbólicos. As muitas produções humanas – dos homossexuais, dos negros, das mulheres, a história oral, a memória popular, os best

sellers, as relações entre os meios de comunicação com a sociedade, as tribos urbanas, os estilos musicais – tornaram-se também foco de investigação de muitos pesquisadores.

Até muito pouco tempo atrás, a produção de um amador teatral do interior de Minas Gerais, que estudou até a quarta série de grupo, não tinha importância e não era investigada: “O meu pai... o que eu sei, de onde ele estudou... na realidade ele estudou muito pouco. Ele aprendeu, eu acho com um senhor a ler e escrever” (GUERRA, Antônio, 2005).18 Entretanto, na atualidade, produções de trabalhadores como Guerra despertam o interesse de estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento. Obras como as do teatrólogo, que se encontram entre o saber erudito e o do senso comum, são consideradas fontes de conhecimento. Nessa perspectiva, dirigir-se à história de Antonio Guerra é dirigir-se à plebe, ao pai de família, ao gerente da fábrica de máquina de costura Singer, ao ator amador teatral, ao homem simples do interior de Minas.

Apesar de Guerra ter tido trânsito livre entre vários atores importantes e pessoas influentes da sociedade local e nacional,

Orgulhoso dou conhecimento a todos os amadores do Clube Teatral “ARTUR AZEVEDO”, dos aplausos que tive a honra de receber de todas as autoridades federais e municipais e do povo em geral que assistiram ontem o espetáculo inaugural pelo modo digno e inteligente daqueles que desempenharam os seus papéis, levantando bem alto o nome da nossa agremiação (GUERRA, álbum 3, p. 102).

o teatrólogo era, principalmente, um homem do povo. Lidava com atores, cenógrafos, eletricistas, iluminadores, jornalistas e com o público – pessoas diversas do cotidiano local e regional:

Os trabalhos cenográficos, maquinismos e mágicas estiveram a cargo do hábil amador sr. Marcondes Neves e dos srs. Ivo Oliveira e João Fabiano, que, gentilmente, muito contribuíram para o realce da peça (GUERRA, álbum 3, p. 85).

Observamos a platéia muito civilizada, contando em seu seio muitas exmas. sras. e senhorinhas, ostentando ricas “toilettes” e muitos cavalheiros de acentuada representação social (GUERRA, álbum 3, p. 74).

18 Entrevista do filho caçula de Antonio Guerra, Antônio Guerra, à bolsista de iniciação científica Girlene Verly Ferreira de Carvalho Rezende.

O amador se relacionou com pessoas da classe alta e da baixa. Esse homem fronteiriço transitou pelas várias esferas da sociedade e registrou sua história de vida como membro de clubes de amadores teatrais. O são-joanense, ao arquivar a história do teatro local e nacional, arquivou e narrou também sua vida como integrante de um grupo que não era bem visto por muitos de seus conterrâneos:

Os atores em geral são boêmios, sonhadores sem grandes aspirações e sem residência fixa. Ora vivem no maior conforto e luxo, ora misérias e provações.

É uma injustiça chamar-nos de vagabundos. Coitados trabalham muito, têm o tempo inteiro tomado, copiando ou decorando papéis, ensaiando, promovendo os espetáculos ou representando (GUERRA, álbum 1, p. 67).

A profissão de ator, especialmente de amador, não era respeitada por muitos são-joanenses do início do século XX. No trecho acima, fica clara a indignação do redator, naturalmente também a de Guerra e de outros amadores, para com a forma como a sociedade local, e, certamente, de outras regiões do País, os via: “vagabundos”.

Grande parte dos amadores teatrais do interior e do centro não tinha voz nem vez. Assim, ir ao encontro de textos como os arquivados por Guerra é ir ao encontro de histórias menores. É possibilitar que um pouco do que ficou para fora do caminho – as ruínas e os destroços do passado – assuma temporariamente o centro e estabeleça um diálogo com outras narrativas.

Além de os atores amadores fazerem parte das camadas consideradas baixas por muitos contemporâneos de Guerra, as histórias coladas nos álbuns do teatrólogo retratam um pouco da vida dos operários das pequenas localidades mineiras, pois elas foram escritas por tipógrafos – que confeccionavam convites e cartazes de apresentações teatrais –, fotógrafos, jornalistas e, especialmente, redatores de jornais, que noticiavam em suas colunas os eventos teatrais locais.

Com a intenção de serem fiéis aos eventos teatrais diários, os redatores relatavam as vitórias e o sucesso das apresentações cênicas: “[...] todos os amadores portaram-se com galhardia, desempenhando, cada qual, com inteira correção, os seus papéis” (GUERRA, álbum 1, p. 30), mas, se fosse necessário, não

deixavam de criticar e de comentar sobre a má atuação dos atores ou a má qualidade dos espetáculos:

Guerra que fez o papel de Luiz Soares foi muito sacrificado não por ser feito por esse amador, que aliás é um moço inteligente e que muito poderá fazer no teatro se estudar e tiver um bom ensaiador, mas por este não se ter encarnado bem no seu papel e tê-lo dito cantado, sacrificando por isso a naturalidade do personagem (GUERRA, álbum 1, p. 40).

Assim como os jornalistas publicavam o positivo e o negativo das apresentações teatrais – falando do sucesso e também da decepção dos grupos teatrais quando um espetáculo fracassava –, eles noticiavam as viagens, as turnês, os almoços, as festas e a alegria dos clubes; não deixando de divulgar o sofrimento, as perdas, as tristezas e a morte de companheiros de palco:

RECEPÇÃO ENCANTADORA

Na estréia o Teatro esteve superlotado. Completo êxito da finalidade artística e a colônia são-joanense exulta de satisfação. Pedimos transmitir a notícia aos jornais.

Antônio Guerra e José Carlos das Neves (GUERRA, álbum 7, p. 101).

Estão de luto a esquina do Tininho e o teatro de amadores de S. João del-Rei. Este gênero de arte vai perdendo os soldados e estamos vendo a hora em que o Nequinha Guerra, o seu grande entusiasta e permanente animador, terá de separar na sua completa biblioteca de teatro num canto à parte os monólogos, por lhe faltarem comparsas para dialogar (GUERRA, álbum 8, p. 35).

Através da seleção dos papéis que compõem os álbuns, Guerra narrou as vitórias, os sucessos, as noites de brilho e de encantamento das atividades teatrais, assim como as dificuldades financeiras, a falta de pessoas especializadas para o trabalho cênico, as desavenças entre os clubes de amadores, o sofrimento daqueles que, pela idade avançada, já não “serviam” mais para representar papéis nas apresentações cênicas e a dor das perdas dos colegas de palco.

As narrativas das grandes companhias teatrais internacionais e nacionais, dos atores profissionais e consagrados, não foram o foco da atenção de Antonio Guerra. Pelo contrário, foi o cotidiano são-joanense que forneceu o material para que ele pudesse contar suas histórias teatrais. Lembrando-nos a produção de escritores consagrados como Charles Baudelaire, as ruas da cidade, as sedes de clubes de amadores teatrais, os bastidores dos teatros, os colegas de trabalho, o

público das apresentações cênicas, os figurinistas, os eletricistas, os ensaiadores e os operários foram alguns dos personagens das narrativas do são-joanense.

Várias são as notas sobre as atividades cênicas. Entretanto, a ausência de notícias teatrais, os silêncios e as lacunas que atravessam, especialmente, os últimos álbuns do amador não significam apenas a decadência das atividades cênicas locais. Mais do que isso, as páginas sem recortes teatrais de alguns álbuns metaforizam a solidão e as “faltas” da velhice, transformando-se, então, na única informação a ser dada.

Recolhendo papéis velhos e inúteis – coletando especialmente recortes de jornais e cartazes de peças do teatro amador do interior de Minas Gerais que iriam para o lixo –, Guerra vislumbrou a possibilidade de contar suas histórias: “Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto [...]” (BENJAMIN, 1989, p. 78).

Apesar de Antonio Guerra não ter sido poeta nem mesmo escritor, nos moldes tradicionais, sua obra pode ser aproximada do pensamento de filósofos como Michel Foucault e da literatura de autores canônicos como a de Charles Baudelaire. Dialogando com saberes consagrados pela humanidade, as produções menores têm muito a investigar e a dizer. Através de diversos papéis que foram produzidos para serem lidos e descartados, Guerra representou e relatou um pouco do reverso da história do teatro, contando sobre os bastidores e os palcos cênicos nacionais.