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As bibliotecas, arquivos, museus de Antonio Guerra

2 OS ÁLBUNS DE ANTONIO GUERRA E OS SABERES SOBRE O ARQUIVO 2.1 As origens da arquivologia

2.5 As bibliotecas, arquivos, museus de Antonio Guerra

Há uma loja no sobrado onde não há comerciante. Há trastes partidos na loja Para não serem consertados. Tamborete, marquesa, catre Aqui jogados em outro século, esquecidos de humano corpo. Selins, caçambas, embornais, cangalhas

de uma tropa que não trilha mais nenhuma estrada do Rio Doce. A perna de arame do avô

baleado na eleição da Câmara.[...].

O espaço tem exercido um papel crucial na reconfiguração da episteme contemporânea. Rompimento de fronteiras, possibilidade de diálogo entre diferentes textos, simultaneidade, explosão temporal, enfim, várias são as discussões atuais atravessadas por considerações do contexto espacial. Entretanto, se a pós- modernidade redimensionou o seu conhecimento, inserindo o espaço em suas reflexões – não deixando de manter um diálogo com as questões temporais –, de certo modo, o mesmo não se deu com a modernidade.

Marques (2004), ao citar sua pesquisa com as cartas trocadas entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, menciona que, em uma das correspondências de Renault, fica evidente a primazia do tempo sobre o espaço. Reflexo do pensamento do século XIX, a carta de Renault confirma que as discussões sobre a preservação da história e da memória eram uma das questões típicas do homem moderno. Porém, apesar da preferência pelo tempo, Renault, Drummond e muitos outros se empenharam

[...] em construir seus arquivos pessoais, conforme demonstra a correspondência. Arquivam compulsivamente cartas, cartões, bilhetes, telegramas, cópias manuscritas de poemas, originais de suas obras. Guardam especialmente recortes de jornais, muitos recortes, contendo publicações de seus poemas, crônicas, textos críticos sobre suas obras, notas em colunas jornalísticas. Ainda colecionam fotos, diplomas, livros, objetos pessoais. Montam, assim, um rico acervo literário, constituído de material bastante heteróclito, como demonstra o de Abgar Renault, integrado hoje ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais (MARQUES, 2004, p. 41).

A atitude dos dois missivistas é compreensível se considerarmos que o tempo só pode ser preservado se for materializado em um espaço. Nesse sentido, tempo e espaço não caminham em sentidos opostos. Pelo contrário, o espaço só é possível quando é preenchido por elementos do mundo físico e esses elementos só têm uma sobrevida, só podem chegar ao futuro, no sentido benjaminiano e derridiano, a partir do momento em que são exteriorizados em uma superfície. Apesar de Drummond e Renault, aparentemente, não terem tido consciência das implicações espacializantes de suas memórias, já que a concepção tradicional de arquivo era o empilhamento e o acúmulo de coisas, foi graças a esse hábito, a essa mania, que os dois escritores mineiros e muitas outras pessoas preservaram para o futuro fragmentos de tempos diversos.

Traço saliente do homem mineiro, Antonio Guerra também guardou as suas memórias para um tempo que ainda estava por vir. Contemporâneo dos dois missivistas, o amador, inicialmente, arquivou recortes – similares aos que compõem os acervos dos dois escritores – e mais tarde os organizou em álbuns grandes, de capa dura, capazes de resistir ao tempo. Guerra também parece ter privilegiado o tempo ao espaço. Entretanto, foi através do espaço material dos álbuns que narrativas do início do século XX, e muitas outras histórias, chegaram ao século XXI. A compulsão arquivística dos literatos e do teatrólogo – e de muitos outros escritores brasileiros – possibilitou que os atuais acervos das universidades brasileiras se tornassem realidade. Assim como o Acervo de Escritores Mineiros, os arquivos do Clube Teatral Artur Azevedo e de Antonio Guerra também estão alocados em uma biblioteca de uma universidade.

Ao entrarmos na sala Antonio Manoel de Souza Guerra, localizada no segundo andar da biblioteca do campus Dom Bosco da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), percebemos, imediatamente, que o ambiente se assemelha ao perfil das bibliotecas e dos arquivos, mas não dos museus. Várias estantes com muitos livros, uma mesa comprida para leitura, duas escrivaninhas e um computador – certamente, para auxiliar o trabalho de catalogação dos documentos –, e vários armários de metal, um deles com gavetões, compõem o ambiente. Num primeiro momento, um único elemento quebra o clima de leitura e de organização documental do espaço. Fixado na parede, próximo à porta de entrada, há um pôster em preto e branco de Marcondes Neves, Alberto Nogueira e Antonio Guerra. Os três amigos de palco e de lutas teatrais marcam presença no ambiente e atraem o olhar daqueles que lá estão.

A biblioteca do Clube Teatral Artur Azevedo está disposta, especialmente, em várias estantes no centro da sala. Além das mais variadas obras, inclusive a coleção da revista Seleções, o acervo do Clube é composto por muitos jornais, por duas plantas baixas – “Planta do Theatro da cidade de S. João del-Rei” de 2 de junho de 1839 e planta do “Cine Teatro Matosinhos” –, por composições musicais de textos cênicos e vários manuscritos e datiloscritos de peças teatrais. Muitos documentos raros, pois produzidos por pessoas anônimas, compõem o material ali arquivado.

A beleza desse acervo não se faz pela exposição artística dos objetos de renomados homens de letras. Pelo contrário, a simplicidade da produção cotidiana

de homens desconhecidos interessa ao pesquisador, pois o coloca em contato com obras singulares, que conseguiram sobreviver e chegar ao século XXI.

Encontramos ainda papéis e fotografias em armários que parecem não ter sido ainda catalogados. Talvez, os pesquisadores não tenham conseguido correlacioná-los a outros materiais, não encontrando, assim, um espaço adequado para esses documentos. Tal fato leva-nos a refletir sobre o desejo e ao mesmo tempo a impossibilidade de organizarmos todas as coisas que nos rodeiam: “[...] toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício” (BENJAMIN, 1987, p. 228).

As dificuldades de organização, os excessos e até mesmo as perdas dos arquivos problematizam e, ao mesmo tempo, representam bem o trabalho com acervos. A surpresa, a alegria, o inusitado e a tristeza – ao encontrar ou perder uma informação importante – são experiências que frequentemente atravessam o cotidiano dos guardiões da memória.

Os álbuns de Antonio Guerra também estão arquivados na mesma sala onde está a biblioteca do Clube. Em um armário de aço, cada álbum encontra-se envolvido por uma caixa plástica. Na parte exterior de cada caixa há o número do álbum e uma breve descrição do objeto. A proteção plástica dos álbuns evidencia a preocupação também do homem do século XXI em proteger a materialidade desses objetos para o futuro.

Mesmo que a biblioteca do Clube e os arquivos de Guerra não tenham a mesma perspectiva cenográfica e museográfica das obras expostas no Acervo de Escritores Mineiros, a quantidade e a variedade de elementos que compõem esses acervos instigam a imaginação do pesquisador, possibilitando-lhe percorrer os mais variados espaços e construir os mais diversos cenários.

Ao olhar a planta baixa do Teatro Municipal de São João del-Rei e ler um dos muitos manuscritos e/ou composições musicais de peças teatrais dos arquivos do Artur Azevedo, somos transportados, por exemplo, para as noites cênicas são- joanenses. Músicas, cenários, figurinos e personagens, aos poucos, vão tomando forma em nossa imaginação. Em outro tempo e espaço, ainda que mentalmente, vamos reconstituindo, aos poucos, o espaço físico das noites de apresentações teatrais. Nessa perspectiva, através de um cruzamento de leituras, imagens vão se configurando e a perspectiva cenográfica desses espaços, de certo modo, vai sendo construída.

Além de possibilitar-nos construir múltiplas imagens, a leitura entrecortada e simultânea que fazemos nesses locais põe-nos também em contato com bens não-fungíveis (MENESES, 2002), ou seja, com objetos que foram contaminados por vidas que já não existem mais. Os muitos textos cênicos escritos à mão foram tocados pelo passado – circularam e foram produzidos por várias pessoas anônimas que, certamente, estão mortas. O caráter aurático desses bens instiga-nos a voltar na linha do tempo e a dar um sentido novo ao que estava adormecido nos arquivos teatrais. Pensamos em quem teria escrito e deixado para nós aqueles textos. Imaginamos como seriam e o que faziam as pessoas que viviam em 1910, 1920, 1930...

Aquelas páginas amarelecidas pelo tempo, preenchidas por caligrafias diversas, levam-nos a uma época em que, manualmente, utilizando as canetas- tinteiro, as letras bordadas corriam e iam preenchendo as folhas de papel. Longe da rapidez e da velocidade do mundo das máquinas, encontramos homens que, artesanalmente, trabalhavam ato por ato as apresentações cênicas, deixando suas marcas, sua presença, no traçado das letras bordadas de um texto teatral ou musical.

Muitas são as teias a que esses papéis estão ramificados – século XIX, caligrafia, canetas-tinteiro, trabalho artesanal, temporalidade lenta, século XXI, velocidade, computadores, impressoras etc. Como os objetos dos museus, o material aqui investigado está aberto a uma infinidade de reflexões – seja através da rede de relações a que estão ligados, seja através das narrativas que são construídas a partir do cruzamento de diversos textos.

Se a sala Antonio Manoel de Souza Guerra, a biblioteca do Artur Azevedo e o acervo de Guerra têm evidente o perfil dos arquivos e das bibliotecas, mas não dos museus, o mesmo não se dá com os objetos pessoais do são-joanense. Além das características dos arquivos e das bibliotecas, os álbuns do teatrólogo têm o perfil dos museus bastante evidente. Eles convidam, capturam, aguçam e estimulam o olhar.

Muitos são os procedimentos metodológicos utilizados pelo amador para montar seus artefatos e várias são as maneiras de que os leitores precisam lançar mão para investigá-los: leitura longa e cuidadosa, focalizando especialmente os recortes jornalísticos; busca de informações, correndo os olhos nas anotações de Guerra a fim de localizar dados específicos; manuseio das páginas dos álbuns,

olhando o material colado e recriando histórias através de textos diversos. Como um microespaço das bibliotecas/arquivos/museus, os álbuns do teatrólogo são espaços que possibilitam a leitura, a pesquisa e o olhar.

Diferentemente do espaço físico onde estão alocados, os objetos de Antonio Guerra têm a perspectiva museográfica bastante evidente. O colorido dos papéis, as letras de tamanhos variados dos recortes, a disposição de todo o material selecionado, o modo como os grandes cartazes cênicos foram dobrados e colados, a mistura de textos verbais a textos não-verbais, enfim, a diversidade e a mobilidade desse material capturam o olhar dos leitores assim que abrimos a primeira página dos álbuns.

Além disso, a cada aparição de um documento ou de um papel inesperado a linha do pensamento é interrompida e as reflexões precisam ser rearticuladas. Entrecortadas e móveis, histórias múltiplas são constantemente cristalizadas, desmanchadas e reconfiguradas a partir dos álbuns do amador.

Transformando-se em testemunhos do passado que deveriam estimular as lembranças de Guerra na velhice, os objetos do são-joanense instigam a imaginação de pesquisadores através da leitura e do olhar, levando-os a analisar, questionar, produzir conhecimentos e narrativas atravessadas por uma temporalidade simultânea, explodida e plural – como o tempo da memória.

Através do mundo imaginário e empírico, encontramos e manuseamos álbuns que foram modelados por um amador teatral durante anos, e que, de certa forma, simbolizam as suas ferramentas de trabalho – caderno, tesoura, cola, caneta e papéis diversos. Em busca das verdades, da origem, das cinzas desses arquivos, ficamos fascinados ao olhar e tocar os documentos que trazem a poeira das mãos e da vida de Guerra.

Contaminadas pela presença de vários homens do início do século XX e, especialmente, pela presença de Guerra, as narrativas dos álbuns foram mergulhadas na vida do amador e depois retiradas dele. Como um artesão, o amador trabalhou as informações de seus 13 álbuns, transformando-as em um artefato.

Ao exteriorizar as suas experiências em uma materialidade, como em uma superfície de um quadro, o teatrólogo criou um efeito intencionalmente estético para os seus papéis. Na qualidade de quem viveu, relatou e construiu narrativas,

como “a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994), Guerra deixou suas marcas nos objetos que confeccionou.

Os álbuns que foram modelados por Guerra, trazendo cacos da vida do amador, trazem também vestígios da vida de tipógrafos, jornalistas, colunistas, fotógrafos, figurinistas, cenógrafos, artistas etc. Apesar de a produção desses homens, agora colada em álbuns teatrais, marcar a presença de uma ausência – a perda da funcionalidade primeira desses papéis –, foi através do material que esses trabalhadores produziram – fotografias, tickets de apresentações teatrais, lembrancinhas de bailes de clubes, cartazes cênicos, colunas de jornais – que múltiplas histórias, inclusive as teatrais, chegaram ao futuro.

Utilizando-se, basicamente, de textos da mídia impressa, a obra do teatrólogo inseriu no meio acadêmico a produção de trabalhadores do cotidiano são- joanense. Contrariando a tese de que os textos de jornais só têm valor no momento em que as informações são novas, Antonio Guerra utilizou especialmente as colunas descartáveis de vários periódicos para imortalizar suas histórias.

Como na antropofagia oswaldiana, Guerra recolheu e “devorou” de seu cotidiano o que lhe interessava – alguns papéis da mídia impressa e outras novidades que surgiram com advento da modernidade. Até mesmo o cinema, que foi tão atacado pelos grupos de amadores, foi utilizado em prol das apresentações cênicas. Com o recorte de jornal do Clube Dramático Artur Azevedo, O Teatro, de 18 de maio de 1916, evidenciamos uma das muitas críticas destinadas às exibições cinematográficas:

Todo o jornal que se dedica ao teatro deveria assumir o solene compromisso de levantar a perseguição ao cinema. [...] descobrem- se nos cinemas “mundos” e mundos inteiramente desconhecidos em plena obscuridade, avolumando-se os descobridores nas razões diretas da obscuridade e dos mundos por descobrir. E o essencial para isto é a ausência da luz! Veio-me então a idéia de que ali está a morte do cinema. Luz! Luz! Dêem luz às salas que elas se tornarão menos repletas...

Esta é uma tarefa que cabe ao teatro em 1º lugar, porque a questão da luz é a questão da moral e nós precisamos moralizar o cinema (GUERRA, álbum 1, p. 81, grifo meu).

Mesmo sabendo que os meios de comunicação de massa, especialmente o cinema, contribuíram para a decadência das noites cênicas, muitos filmes foram exibidos, antes das peças, no teatro do Clube Artur Azevedo. A fim de lotar a casa

de espetáculos teatrais – para investir nas apresentações cênicas e para arrecadar dinheiro para terminar as obras do teatro –, os amadores devoraram as imagens em movimento para atrair público e verba para as noites teatrais.