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A improvisação meisneriana e o étude stanislavskiano

3. A técnica Meisner e o Sistema stanislavskiano: uma aproximação

3.3.5 A improvisação meisneriana e o étude stanislavskiano

Em paralelo com o trabalho de preparação emocional, Meisner abandona a repetição, que cede lugar ao que ele chama de improvisação. A improvisação, como vimos no capítulo anterior, mantém as mesmas premissas da repetição, a de que tudo o

que você faz vem do outro e não faça nada a não ser que algo o faça fazer – mas

abandona a fôrma daquele exercício, que fica então muito mais próximo do que conhecemos por uma cena, com a condição que a essência da repetição seja mantida, senão todo o trabalho anterior será perdido. Novamente, os atores não devem prever o que irá acontecer entre eles, apenas estabelecer claramente o que são, um em relação ao outro, e trabalhar o momento a momento, a atividade e a preparação emocional. Os elementos devem se unir harmoniosamente, e assim acontecerá se os atores não cederem à tentação de mirar um resultado prévio ou entregar para a platéia algo fabricado intencionalmente.

Para aproximar o procedimento meisneriano de improvisação do étude, meio fundamental da análise ativa proposta por Stanislavski, é necessário frisar que esta não se restringe ao chamado “trabalho de mesa”, no qual o texto dramático é decupado e analisado racionalmente e previamente, definindo-se a supertarefa e as ações transversais de cada personagem. A análise ativa330 não é a leitura de mesa, mas uma visita à cena pelos atores, e por isso é chamada de ativa. É interessante notar que o método das ações

físicas de Stanislavski será desenvolvido a partir do procedimento da análise ativa.

Durante sua trajetória, que inclui décadas de trabalho dedicado à investigação da arte do ator, Stanislavski entendeu que o estudo do texto deveria se realizar de forma prática, não uma prática de feitura de cena com o texto decorado pelo ator, mas uma prática processual. Assim, o étude é uma aproximação cênica às situações do texto e do universo dos personagens. O étude revela um texto cênico construido pelo ator que preencherá o território proposto pelo autor do texto, produzindo assim o encontro desse                                                                                                                

330 Termo cunhado por Maria Knebel, a análise ativa, ou análise pela ação, combinava trabalho de mesa e a

experiência dos études: “[...] em cena, o ator não pode se limitar a raciocínios psicológicos abstratos, assim como não pode realizar nenhuma ação física que esteja desconectada de uma ação psíquica. Stanislavski dizia que entre a ação cênica e a causa que a engendra existe uma ligação inseparável; entre a “vida do corpo humano” e a “vida do espírito humano” existe a união completa. In: KNEBEL, M. Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 24.

ator com o personagem.331 Nessa inversão de papéis não é mais o ator que está subjugado ao texto, mas o texto que surgirá da ação do ator. O étude sugere uma nova posição para o ator, de ator-criador, que carrega consigo uma nova responsabilidade.

O trabalho de análise ativa chegou ao Group Theatre durante os anos 30 através de Stella Adler. Se Adler, apesar desse contato com Stanislavski, faz do trabalho de análise do texto (que conhecemos por trabalho de mesa) praticamente o centro de seus ensinamentos, Meisner evita até o final de sua técnica o trabalho com dramaturgia.332

No procedimento de improvisação meisneriana, que não deve ser confundida com o étude stanislavskiano, não existe análise de um texto prévio, apenas o estabelecimento de uma mesma situação entre os atores, ligados à atividade e às preparações. A improvisação deve antes ser vista como um exercício, o de repetição, mantendo as suas características fundamentais.

Entretanto, como parte das investigações desta tese, em meu trabalho de pedagoga com uma turma avançada da técnica333 decidi experimentar a prática do étude, paralelamente à improvisação nos moldes meisnerianos, para testar as diferenças entre eles. Percebi que a diferença estava primeiramente na maneira como a cena se articulava, uma vez que na improvisação meisneriana as circunstâncias se estabelecem com menos definição e mais lentamente – pois são calcadas fundamentalmente nas relações que se criam no momento. A adaptação que Stanislavski prevê nos atores já é dada na improvisação meisneriana, não sendo necessário buscá-la (já que tudo vem do outro). Outra qualidade da improvisação que podemos notar é a ausência de gênero em que esta resulta, por não partir de um texto determinado. Muitas vezes os atores passeiam por diversos modos, justamente porque estes não estão previamente definidos. Minha experiência ao unir o étude à improvisação resultou numa melhor estruturação do exercício de improvisação, sem a perda do pressuposto momento a momento.

                                                                                                               

331 Fundamentam essa definição de étude as práticas com minha orientadora, Maria Thaís Lima Santos, por

ocasião de estágio em suas aulas de graduação, e a residência do encenador russo Yuri Butusov, no MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) de 2017, de que participei.

332 O trabalho de Meisner com os monólogos, por exemplo, não buscava uma ação transversal ou uma supertarefa, mas sim destilar uma determinada emoção em uma situação específica, trabalhando a partir

dela.

333 Com uma turma de onze atores que esteve comigo de agosto de 2017 a setembro de 2018 em meu

espaço, o Atelier Cênico pude comparar os procedimentos de improvisação e étude no processo de criação do espetáculo Pagu/Gaivota.

Entendemos que nessa etapa do exercício da improvisação Meisner mantém sua escolha de adiar mais uma vez o trabalho com o texto, invertendo o caminho da análise ativa de Stanislavski. Apesar de diferentes, os procedimentos de improvisação de Meisner e do étude de Stanislavski são irmãos em suas premissas e resultados, embora o segundo seja mais articulado que o primeiro, por estar dando conta de um texto dramático. Em ambos a finalidade é que o ator experimente o território desconhecido de aceitar uma circunstância proposta e trocar com seu parceiro, mas o étude de Stanislavski é mais ambicioso, pois pressupõe um ator livre para experimentar dentro da dinâmica de um personagem e uma situação. Meisner entendeu a prática pedagógica de Stanislavski com os études e se aproximou dela em sua técnica, porém de maneira modesta, concentrando-se em manter o aluno fiel ao procedimentos em que a técnica se baseia.