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A individualização e o totalitarismo

No documento O direito na obra de Nicos Poulantzas (páginas 120-123)

3. O direito em torno de O Estado, O Poder, O Socialismo

3.3 O direito no Estado moderno: Estado-nação

3.3.2. A individualização e o totalitarismo

Daremos aqui prosseguimento ao tratamento teórico de Poulantzas ao tema da individualização, o qual, justamente ao contrário do que muito já se disse durante o século XX, coloca-se como o anverso da moeda em relação ao fenômeno do “totalitarismo”. É essa uma das conseqüências da trama teórica de Poulantzas.

Como já acima enunciamos, o individuo é criado, “instaurado”, pelo Estado. Ao mesmo tempo, este representa aquele na unidade do povo-nação234.

O processo de surgimento do indivíduo se dá a partir das relações de produção e da divisão social do trabalho, ainda que esteja presente na assim chamada “circulação”235. A separação completa dos produtores induz o surgimento do indivíduo “nu”, o trabalhador livre, imprimindo ao processo de trabalho uma estrutura determinada: “objetos de utilidade só se tornam mercadorias porque são o produto de trabalhos privados executados independentemente uns dos outros”. “É então que predomina a lei do valor”. Só esta forma de produzir, segundo Poulantzas, de trabalhos privados, é que pode criar o indivíduo, impondo ao mesmo tempo em que impõe esta independência, uma dependência oriunda da socialização do trabalho (o trabalhador coletivo).

A estrutura do processo de trabalho e das relações de produção não cria diretamente a individualização. “Ela induz um quadro material referencial das matrizes espaciais e temporais que são os pressupostos da divisão social capitalista do trabalho”.

Esse quadro consiste na organização de um espaço-tempo simultaneamente contínuo, homogêneo e parcelarizado, que é a base do taylorismo. Um espaço esquadrinhado, segmentarizado e celular onde cada parcela (indivíduo) tem seu lugar, onde cada localização corresponde a uma parcela (indivíduo), mas que deve apresentar-se como homogêneo e uniforme. Um tempo linear, serial, repetitivo e cumulativo, em que os diversos momentos integram-se uns aos outros, orientando-se para um produto acabado – espaço/tempo materializado por excelência na cadeia de produção. Em suma, o indivíduo bem mais

234 Ibidem, p. 70. 235 Ibidem, p. 71.

que criação da ideologia jurídico-política engendrada pelas relações mercantis, aparece aqui como o ponto de cristalização material, ponto focalizado no próprio corpo humano, de uma série de práticas da divisão social do trabalho.236

Parece-nos que Poulantzas deduz a individualização como resultado instransponível da fragmentação do corpo social. O individuo seria essa unidade mínima, a partir da qual não se poderia dividir ainda mais. Daí se conclui a individualização “no corpo”, unidade que não mais se pode parcelar.

Essa é a base então para Poulantzas afirmar que há corporeidades diferentes no capitalismo e na Idade Média. O “indivíduo” é induzido pelo processo de trabalho e pelas relações de produção, no sentido de que esta individualização só se completa pela ação do Estado produtor de técnicas de saber e práticas de poder. É, então, por isso, que Poulantzas considera as análises de Foucault como de grande relevância.

Contudo, logo argumenta nosso autor, as constatações pertinentes de Foucault só podem ser corretamente colocadas a partir do marxismo. Elas, em certa medida, confirmam as constatações do marxismo, bem como as enriquecem. São, portanto, imprescindíveis duas advertências à constelação teórica de Foucault: uma referente à noção da relação entre economia e poder; outra relativa à relação entre relações de produção, divisão social do trabalho e Estado.

A primeira diz respeito a que todo poder tem seu referencial material nas instituições da economia, não podendo ser de oura forma. A segunda, que a relação entre divisão social do trabalho, relações de produção e Estado só podem ser compreendidas em toda sua complexidade a partir da noção espaço-temporal própria do capitalismo, noção essa essencial para o desvendamento do Estado-nação enquanto forma do capitalismo237.

A partir das reflexões sobre este processo de individualização, Poulantzas argumenta que o “totalitarismo” seria um fenômeno tipicamente moderno, construído com base na noção de indivíduo e de nação.

236 Ibidem, p. 72. 237

Ao Estado não pode, pela primeira vez na história, existir nenhum limite de direito e de princípio à atividade e à invasão do Estado na esfera do individual-privado. O individual-privado é uma criação estatal, concomitante à sua separação relativa da sociedade como espaço público, o que não somente indica que essa separação é apenas uma forma específica da presença do Estado nas relações econômico-sociais, como também uma onipresença estatal jamais igualada em suas relações238.

A diferença que Poulantzas tenta apontar em relação à Poder Político é que neste, ainda que fossem percebidos os efeitos de individualização e isolamento, eles estavam restritos aos seus efeitos ideológicos e jurídico-políticos. Segundo o próprio autor, ele não inscrevia na própria materialidade do Estado a individualização, consubstanciada em técnicas de poder as quais moldam seus aparelhos. Só a partir da contribuição original de Foucault é que ele pôde assim fazê-lo.

O individual-privado não é um obstáculo intrínseco à ação do estado, mas um espaço que o estado moderno constrói ao percorrê-lo: é o que se transforma em horizonte infinitamente retrátil, e passo a passo, ao longo da caminhada estatal.239

Assim, “O estado não comporta nenhum limite de princípio e de direito a suas usurpações no privado: por mais que não pareça, é a separação público-privado, por ele instituída, que lhe abre perspectiva ilimitada de poder”240.

o individual-privado não é um limite e sim o canal do poder do estado moderno, embora isso não queira dizer que o poder não tenha limites reais, mas, sim, que esses limites não se prendem a qualquer naturalidade do individual-privado: dependem das lutas populares e das relações de força entre as classes, pois o estado também é a condensação material e específica de uma relação de força, que é uma relação de classe.241

Deste modo, o totalitarismo nem é um fenômeno atípico do capitalismo, nem é mero acidente de uma conjuntura da luta de classes, apesar de depender destas. Suas

238 Ibidem, p. 78. 239 Ibidem, p. 80. 240 Ibidem, p. 81. 241 Ibidem, p. 82.

raízes estão fincadas no seio das relações de produção capitalistas, na divisão social do trabalho e na ossatura material do Estado.

Neste sentido, Poulantzas articula uma fundamentação extremamente complexa entre relações de produção, divisão social do trabalho, processo de individualização e formação de classes. São todos estes fenômenos do mesmo processo que é a unidade própria da sociabilidade capitalista:

(...) essa análise que fundamenta a materialidade do estado nas relações de produção e na divisão social do trabalho, não é heterógena ou complementar a uma análise dessa materialidade em termos de classes e luta de classes. No que concerne à individualização do corpo social sobre o qual se exerce o poder, não se trata de “deduzir” a estrutura organizadora do estado no processamento da individualização e de relacioná-la em seguida com a luta de classes em sua especificidade capitalista. Essas classes (abertas) provocam um papel no estado até então inédito, o de distribuir-repartir os agentes individualizados através das classes, de forma a preparar, de qualificar e subjugar os agentes, de tal forma que possam ocupar tal ou qual lugar de classe à qual não estão ligados por natureza ou nascimento; papel próprio da escola e também do exército, da prisão ou da administração.242

Portanto, uma vez que o trabalho manual está dominado pelo trabalho intelectual, este passa a tudo subsumir. Ele é o organizador do todo da vida social. Assim, também é ele que define quem pertencerá a determinada classe ou não. Se tomarmos o político numa acepção ampla, como região do trabalho intelectual, como centro “organizador” da vida social, e o Estado o centro desta região, certamente chegaremos à conclusão de que quem define quem pertencerá à classe x ou y, quem ocupará tal ou qual lugar nas relações de produção, será a instância política; no caso, o Estado. Esse é, pois, um dos pontos fundamentais que faz avançar, na presente construção teórica, os porquês de o Estado de classes moderno ser um Estado-nação.

No documento O direito na obra de Nicos Poulantzas (páginas 120-123)