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Considerações sobre o direito na teoria regional do Político

No documento O direito na obra de Nicos Poulantzas (páginas 90-96)

2. O direito em torno de Poder Político e Classes Sociais

2.5 Considerações sobre o direito na teoria regional do Político

Neste tópico, buscar-se-á realizar uma avaliação das conseqüências da teoria regional para a concepção do direito, expondo os avanços e modificações na teoria jurídica desenvolvida por Poulantzas perante sua fase anterior.

Uma avaliação do direito nesta fase de Poulantzas tem o papel de nos fornecer tanto a possível evolução na concepção de direito perante sua primeira fase quanto os possíveis problemas que ainda restariam por resolver após a fase em torno de Poder Político. Além disso, aqui será colocada a forma pela qual o próprio autor compreende- se nesta fase, de modo que, a partir disso, em tese, poderemos melhor compreender as motivações de sua produção teórica posterior. Para tanto, retomaremos brevemente o desenvolvimento da teoria jurídica própria desta fase.

O funcionamento teórico de Poulantzas nesta sua segunda fase traz consigo uma negação do “humanismo” de sua fase anterior. Na primeira, o sujeito é posto teoricamente, a partir de suas necessidades concretas, como criador, não como portador de estruturas, o que, segundo ele, conduzia a pesquisa das estruturas a uma dissolução das mesmas na práxis resultante da “subjetividade criadora”. Isto, na sua segunda fase, resolve-se como uma negação dessa investigação (ainda que geral) “empírica”, não sendo, pois, o ponto de partida da pesquisa as “necessidades do sujeito”. Isto, por sua vez, abre expressamente a possibilidade de se identificar as estruturas jurídicas em sua especificidade, em sua autonomia própria, das quais a subjetividade, o agente, é portadora.

A pesquisa poulantziana apresenta, na seqüência, três planos de investigação interligados, o estrutural, o de aparelhos e o campo das práticas. Ainda que distintos, eles estão ligados entre si por uma “causalidade metonímica”.

Perpassando esta abordagem, Poder Político tem um objetivo teórico definido: desenvolver uma teoria marxista do Estado capitalista. É uma tentativa de elaborar sistematicamente uma teoria do Estado que não deslize para o campo do Idealismo nem tampouco para o campo de um economicismo. Esta teorização então assim se desenvolve: tratar-se-ia de explicar como o Estado capitalista é, ao mesmo tempo, classista, sem reduzir o Estado a mero instrumento de uma classe; e, não ligando-o à imagem de um Estado acima das classes, apresenta-se numa forma popular-nacional.

Assim, metodologicamente falando, numa acepção mais geral, Poulantzas tenta trabalhar com uma perspectiva em que o método não tem como matéria-prima o empírico. Nesse sentido, procurando conceder especificidade a cada objeto de pesquisa, a análise poulantziana se desenvolverá a partir de instâncias e estruturas componentes destas instâncias, que, por sua vez, supõem aparelhos e práticas.

Impõe-se aqui ser ressaltado que, em Natureza das Coisas, os valores- estruturas eram resultantes da problemática do “sujeito”, a qual remetia somente à práxis criadora, ali não se desenvolvendo as especificidades das estruturas das quais os agentes são portadores. O elemento central na primeira fase de Poulantzas era uma subjetividade que era pura carência, um vazio que permanentemente se colocava para além de si mesmo; isto, por sua vez, não questionava o próprio surgimento do indivíduo moderno enquanto propriamente “indivíduo”. Já na elaboração em torno de Poder Político a argumentação poulantziana abre um campo de “descoberta” da gênese desse indivíduo; indaga-se como o econômico capitalista “engendrou” o próprio indivíduo. Poulantzas em sua segunda fase busca “decifrar” o porquê das características específicas do direito Moderno a partir das relações de produção. Estando, pois, o produtor direto desapossado dos meios de produção, o agente enquanto indivíduo, em decorrência dos efeitos do direito moderno, é instalado na própria produção. É, então, que podem os agentes executar trabalhos privados no trabalhador coletivo.

Dessa maneira, podemos, então, considerar o direito no campo das praticas, dos aparelhos e das estruturas, com seus respectivos impactos (inclusive o efeito de individualização) nas três instâncias: o político, o ideológico e o econômico.

Nessa linha de raciocínio, podemos afirmar que o direito enquanto instituição desempenha sua função de constituir o equilíbrio instável de compromisso entre o bloco no poder e as outras classes ou frações de classe, o que, no campo das práticas, camufla o pertencimento de classe dos agentes. Assim, a precisa localização teórica dos diversos “direitos”, os direitos subjetivos, é o campo do direito enquanto “instituição”. Isto é, aliás, a conclusão de Barison:

A esta altura cremos ser possível se fazer notar o direito não apenas enquanto estrutura mas também enquanto instituição.173

Em nossa leitura poulantziana, esta é a localização teórica precisa dos conteúdos de direitos humanos, dos direitos políticos, das instituições democráticas e dos direitos sociais (...).São conteúdos produzidos na exata medida da necessidade de fixação de compromissos no bloco hegemônico (...) e na exata medida da necessidade de garantir a aceitação da dominação política.174

Entretanto, ainda no âmbito dos aparelhos (com especial realce para a elaboração de Fascismo e Ditadura), podemos mesmo dizer que o direito nele participa através da regulação dos mesmos, de modo a permitir a previsibilidade da política, o que supõe uma estabilidade do econômico. Sendo instável o econômico, o direito apresenta-se como imprevisível em nível do político, vez que está totalmente submetido a reorganizar a hegemonia. Assim, ao tempo em que enquadra valorativamente o agente, demonstra as estruturas que nele estão inscritas.

Agora podemos começar a adentrar o campo do direito Moderno num nível estrutural, sem sombra de dúvidas o momento mais complexo e razoavelmente obscuro da presente análise. Vimos que Poulantzas mantém quanto à descrição do direito (já identificado com norma, com lei) as características de Natureza das Coisas: o direito seria abstrato, geral, formal e estritamente regulamentado. Observamos também que estas características no Estado de Exceção perdem a eficácia de permanência na

173 BARISON, op. cit., p. 80. 174 Ibidem, p. 81.

formação social capitalista. Assim, indaga-se: tais características são estruturas, padrões valorativos de permanência suficiente a caracterizar todo o direito no capitalismo? Aparentemente, pela evidente flutuação de importância que adquire na passagem de um “Estado normal” a um Estado de Exceção, afirmaríamos que não, fazendo essa flutuação crer que esta descrição do direito mais se próxima do direito enquanto aparelho, como direito no nível de análise dos aparelhos.

Além disso, vimos também que o direito moderno enquanto sistema normativo se desenvolve sob a égide dos princípios da liberdade e igualdade. Assim, a liberdade e a igualdade do indivíduo estariam resguardadas na lei. Vejamos as próprias palavras de Poulantzas:

Este Estado apresenta-se como Estado-popular-de-classe. Suas instituições apresentam-se como organizadas em torno dos princípios da liberdade e da igualdade dos indivíduos.(...)O sistema jurídico moderno, distinto da regulamentação feudal baseada em privilégios, reveste um caráter “normativo”, expresso em um conjunto de leis sistematizadas a partir dos princípios de liberdade e igualdade: é o “reino” da lei. A igualdade e a liberdade dos indivíduos-cidadãos residem na sua relação com as leis abstratas e formais, as quais são tidas como enunciando essa vontade geral no interior de um “Estado de direito”. 175 (grifo nosso)

Esmiucemos um pouco mais tais assertivas. Num primeiro momento, os valores (princípios) liberdade e igualdade parecem pertencer a um nível de permanência maior do que as instituições do Estado e do que as leis sistematizadas (elas se configuram em torno dos princípios, não o contrário). Isto, inclusive, é a afirmação de Poulantzas em um artigo de transição a Poder Político, o artigo Introducción al estudio de la hegemonía en el Estado176, o qual, em seu conjunto, tem um valor ainda muito precário para a afirmação dos princípios de liberdade e igualdade como estruturas, dada a sua flagrante fusão de “problemáticas”. Eis o trecho que trata do assunto:

175 POULANTZAS, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p.119.

176 POULANTZAS, NICOS. Introducción al estudio de la hegemonía en el Estado. In: POULANTZAS, NICOS. Hegemonia y Dominacion en el Estado Moderno. Córdoba: Ediciones Pasado y Presente, 1969. É, inclusive, do original francês deste artigo que Saes extrai o

A separação específica do Estado e da sociedade civil, ou seja, o caráter verdadeiramente político do Estado capitalista, manifesta-se, na continuação da obra de Marx, no caráter de universalidade que reveste um conjunto particular de valores que constituem os fatores objetivos de estruturação, a mediação específica entre base e a superestrutura política das instituições de um estado engendrado por um “tipo” particular de modo de produção que caracteriza a formação social capitalista-mercantil. Este conjunto de “valores” desempenha não simplesmente um papel ideológico de justificação, mas também a função de uma condição de possibilidade das estruturas objetivas do Estado representativo moderno. Ditas estruturas constituem as condições de possibilidade das coordenadas da base de uma sociedade capitalista mercantil: são os valores “universais” de liberdade e igualdade formais e abstratos.177

Já num segundo movimento, a igualdade e a liberdade dos indivíduos são postas na lei, não mais diretamente naqueles valores-princípios. Dada tal concatenação de idéias, parece-nos haver aqui, simultaneamente, dois movimentos distintos. O primeiro, o do próprio nascimento das instituições, é uma passagem do nível das estruturas ao das instituições e da lei. Estando isso correto, o segundo movimento seria já o dos agentes para com as instituições (aqui inclusa a lei).

Entretanto, mesmo que a teorização poulantziana possa nos permitir chegar a tais conclusões, não nos parece que Poulantzas leve a cabo tal distinção. O que acreditamos acontecer em sua argumentação é uma passagem “insensível” do Estado enquanto estrutura ao Estado enquanto instituição. Esta “insensibilidade”, inclusive, para Décio Saes, comentando a produção teórica de Poulantzas em Poder Político, conduz a uma ainda enigmática distinção entre Estado como estrutura e Estado como instituição178.

Ora, a todo tempo o direito foi tratado por Poulantzas como norma coercitiva, seja ele o “direito” feudal, antigo ou capitalista. Isto, por sua vez, se é certo que a norma, a lei, pertence ao âmbito das instituições, acaba por tornar, no mínimo, difícil a distinção entre uma estrutura jurídica tipicamente capitalista e seu momento de instituição.

177 POULANTZAS, op. cit., p. 55.

178 SAES, Décio. Estado e Democracia. Ensaios teóricos. Campinas: UNICAMP. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1998. (Coleção Trajetórias 1), p. 10.

Dado tal estado de teorização, podemos dizer que há aqui conseqüências diretas para a elaboração teórica do “efeito da individualização”. Ora, como isto é efeito da estrutura jurídica e a todo o tempo o direito é tomado como lei, deslizamos diretamente para um nível de análise o qual já é aquele em que se apresenta o Estado como instituição. Assim, ao se procurar esse padrão valorativo para além da própria instituição - a estrutura -, tenderemos a ficar só com o efeito dessa estrutura, sem poder, de modo clarividente, dizê-la.

Certamente, Poulantzas aqui se alçou a procurar um “padrão valorativo” real que esboçasse uma continuidade característica de todo o capitalismo. Mas, entretanto, ao passar “insensivelmente” da formulação de um direito enquanto “estrutura” para um direito enquanto “instituição”, permaneceu impossibilitado de formular tal empreitada ou, pelo menos, de poder formulá-la expressamente.

Eis o essencial deste segundo momento da obra poulantziana. Passaremos agora às considerações da última fase, oportunidade na qual se abre um campo de pesquisa diferenciado, inclusive quanto à sua teoria jurídica.

No documento O direito na obra de Nicos Poulantzas (páginas 90-96)