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3 Processos educativos na convivência e no brincar infantil

3.1 A infância

Mandei fazer um barquinho de casca de camarão o barquinho saiu pequeno só coube meu coração. (J. G. S. – Serviço Girassol)

Nesta pesquisa, buscou-se enfatizar as discussões sobre uma vertente em que as práticas educativas analisadas privilegiassem o exercício pleno da infância, nas crianças participantes; com isto, os termos infância e crianças são percebidos em suas dimensões convergentes e singulares enquanto possibilidade de experimentar o inusitado, a inventividade e a não racionalização das ações.

Compreende-se, portanto, a infância não a partir de um conceito cronológico e de um ser à espera de tornar-se adulto, mas enquanto uma experiência que envolve diferentes sujeitos com suas realidades e vivências que, a partir do inusitado e da espontaneidade, vão sendo, isto é, se constroem. Nas palavras de Abramowicz et al. (2009, p.180):

Entendemos a infância como uma experiência que pode, ou não, atravessar os adultos, da mesma forma que pode, ou não, atravessar as crianças. Nessa perspectiva, a idéia de infância não está vinculada unicamente à faixa etária, à cronologia, a uma etapa psicológica ou a uma temporalidade linear, cumulativa e gradativa, mas ao acontecimento, à arte, ao inusitado, ao intempestivo. Vincula-se, portanto, a uma espécie de des-idade.

Por isto mesmo, como enfatiza Quinteiro (2009, p.22), todos os saberes construídos sobre a infância focam muito mais em assuntos relevantes à esfera das condições sociais, suas histórias e “[...] sua posição de criança sem infância [...]” do que àquilo produzido pelas mesmas enquanto possibilidade de “[...] criar e recriar a realidade social na qual se encontram inseridas[...]”; não as considerando enquanto seres capazes de produzir e ter uma cultura que lhes é própria, sendo capazes de representar o mundo e a si mesmas.

Para Abramowicz et al. (2009), isto ocorre por existir um conceito de povo e nação, nos quais os educadores e a sociedade como um todo tendem a seguir, baseados numa ideia de igualdade deste povo, como se fosse fácil moldá-los para que todos acompanhem esta estrutura padrão e se comportem para atender às exigências desse tipo de sujeito idealizado.

É no interior dessa lógica que a professora cuida das crianças e as educa para que aprendam as mesmas coisas, num mesmo tempo. A aprendizagem é entendida como cumulativa e linear e recorre a procedimentos de ação supostamente idênticos para crianças diferentes, na medida em que atua e trabalha na perspectiva dessa construção idealizada de igualdade e de povo. A professora, ao mesmo tempo que colabora com a produção da ideia de povo, é por ela construída (ABRAMOWICZ et al., 2009, 182).

Nesta perspectiva, vários estudos foram sendo realizados, na tentativa de se estabelecer um conceito pertinente à infância de acordo com o período histórico em questão.

Para Ariès (1975), portanto, na sociedade medieval, a criança, assim que podia viver sem a necessidade extrema da mãe, era inserida no universo do adulto, a infância era por si um período curto cujas primeiras idades a tinham como ser inacabado e de distração para o adulto. Num segundo momento e não de forma homogenia, nos séculos XVII e XVIII, a esta noção de infância vai se construindo um novo olhar e outra perspectiva, a de que este ser frágil deveria ser preservado e educado. Nas palavras de Ariès (1975, p.127):

No fim do século XVIII, o ciclo escolar era bastante semelhante ao do século XIX: quatro ou cinco anos no mínimo.A criança, enquanto durava sua escolaridade, era submetida a uma disciplina cada vez mais rigorosa e efetiva, e essa disciplina separava a criança que a suportava da liberdade do adulto. Assim, a infância era prolongada até quase toda a duração do ciclo escolar.

Ainda reportando às idéias do autor supracitado, observa-se que o sentimento moderno de infância traz consigo a constituição da família enquanto agente provedor e socializador do sujeito, já que esta idéia da família como eixo central da vida da criança inexistia na Idade Média. Para Ariès (1975, p.144):

A solidariedade da linhagem e a indivisão do patrimônio se desenvolveram, ao contrário, em conseqüência da dissolução do Estado: “Depois do ano mil, a nova distribuição dos poderes de comando obrigou os homens a se agruparem mais estreitamente”. O estreitamento dos laços de sangue que então se produziu correspondia a uma necessidade de proteção, do mesmo modo como outras formas de relações humanas e de dependências.

Nas famílias mais pobres, no entanto, esta ideia de família estava mais atrelada à relação que estabeleciam com seus amos do que à própria constituição familiar à qual pertenciam. “No caso de famílias muito pobres, ela não correspondia a nada além da instalação material do casal no seio de um meio mais amplo, a aldeia, a fazenda, o pátio ou a “casa” dos amos e dos senhores [...]” (ARIÈS 1975, p.159).

Acredito, com isso, que desde o século dezoito até a atualidade, de formas diversas, mas mantendo a mesma linha de raciocínio, há um conceito referente à educação e à infância que visa não ater-se às diferenças; “[...] veicula uma ordem civilizatória que, quando não ignora, bane, maldiz ou conjura a diferença [...]” (ABRAMOWICZ ET AL, 2009, p.181-182). Fato este que anula a possibilidade de se pensar a diversidade de experiências vivenciadas pelas crianças em seus cotidianos, sendo consideradas em suas fases de desenvolvimento físico e emocional em detrimento do contexto cultural e social ao qual pertencem. (ABRAMOWICZ, 2010).

Nesse sentido, segundo Abramowicz et al. (2009), há a difusão de uma idéia unívoca entre os dois conceitos de criança e infância,em que a criança é aquela pessoa que se encontra na faixa etária que vai de zero aos doze anos de idade,e a infância se encontra relacionada à dimensão legal e institucionalizada que prescreve o seu espaço e o seu vir a ser adulto. “[...] A criança é educada no interior do que é ter uma infância, mas na direção de tornar-se um adulto” (ABRAMOWICZ et al., 2009, p.193).

Quando se enfatiza a cultura relacionada à infância, concordo com Delgado e Müller (2008) que afirmam ser esta produzida e apropriada por cada sujeito para constituir-se enquanto ser humano. Sendo necessário para se entender as especificidades próprias da infância considerá-la enquanto produtora de sentido referente àquilo que fazem e não apenas enquanto etapas de desenvolvimento.

Com isto, pode-se dizer que, apesar de todo aparato legal construído para atender às crianças enquanto sujeitos de Direitos, pouco se avançou no sentido de considerá-las como atores sociais capazes de produzir cultura, caracterizando o que Reis, M. (2009, p.117) define como seres que existem pela fala do outro, ou seja, governados pelo adulto. “Aquele que não fala, significado etimológico da palavra infante, revela a postura dominante, por séculos, diante do que as crianças podem ou devem expressar [...].” (CRUZ, 2008, p.11)

Todo o conjunto de medidas e leis, então, discutidas e formuladas em prol das crianças, desde o ano de 1978 (Ano Internacional da Criança) até as décadas de oitenta e noventa, tais como: Constituição de 198810, Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, em 1989, e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente ,em 1990, visam priorizar a criança enquanto sujeito de direitos além de implantar políticas públicas que garantam o atendimento a este segmento e as protejam de situações que as fragilizem. Em contrapartida, tais políticas estão mais voltadas a cumprirem um princípio normativo de “proteção” do que preocupadas com os processos cotidianos do uso dos espaços nos quais elas convivem e atuam como atores sociais (BERTUOL, 2008). Nas palavras de Bertuol (2008, p.11):

A consideração das crianças como atores sociais e como autores do processo social que as envolve nem sempre tem sido problematizado no interior dessas iniciativas, uma vez que, ao se focalizar a relação da criança com a cidade, parte-se do conhecimento de uma relação ou interface que privilegia aspectos adultos ou conteúdos valorizados numa perspectiva universalizante da criança, deixando para segundo plano os usos e disponibilidades dos espaços urbanos.

Até mesmo porque desconsideram-se os processos educativos que ocorrem no interior das ações tanto públicas ou privadas que atendam às crianças, estes por sua vez capazes de se constituírem enquanto possibilidade de expressão, de transformação e de apreensão do mundo em que vivem. Sendo que o universo infantil é representado por uma complexidade de mediações “[...] quer seja pelo gesto, pelas brincadeiras, pelo faz-de-conta, quer seja pela linguagem em suas diversas manifestações [...]” (QUINTEIRO, 2009, p.41). Elementos estes não fáceis de serem entendidos e/ou aceitos pelos adultos.

Segundo Dussel (1977, p. 205), há uma incoerência referente à educação do sistema onde “[...] este não educará a criança, mas a alienará dentro de uma cultura que não lhe é própria, mas aquela que por interesses políticos, sociais, ideológicos e outros, a burocracia do sistema educativo dispõe neste momento [...]” que se choca constantemente com as características relacionadas à produção inusitada do ser infantil; neste aspecto vê-se a crise atual de sentido que vem passando as escolas, no que se refere à relação aluno-professor- conhecimento. Segundo Quinteiro (2009, p.42):

10Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CRESS SP, 2007).

Apesar de a infância ter sido uma das mais belas invenções da modernidade, na sociedade contemporânea a criança “é sempre vista de cima” sendo ela, desse modo, hostil à ideia de infância. Entretanto é reconfortante e mesmo animador perceber que as crianças não são.As crianças querem ir à escola para brincar, aprender e fazer amigos, porém constatam a falta de sentido da escola e de suas aprendizagens.

Entendo, neste aspecto, que apesar das imposições referentes aos aspectos burocráticos de ensino e aprendizagem na sociedade capitalista, mesmo quando os profissionais não ousem adotar a perspectiva dialógica, a criança tende a abrir caminhos para que seu universo seja respeitado e resgatado pelo adulto.

Com isto é, sobretudo, através do brincar e das brincadeiras que a infância se faz presente e atravessa às crianças. O que iremos tratar no tópico a seguir, dada a importância de considerar estes aspectos lúdicos quando se pesquisa com crianças.

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