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A infertilidade e o conhecimento científico

2.1 O que posso saber sobre o tempo?

3.3.1 A infertilidade e o conhecimento científico

Lançada em meio a uma revolução sexual dos anos de 1960 quando a mulher desperta para o poder de controle de seu corpo parece paradoxal que exatamente neste momento de independência de escolha entre gerar ou não uma vida dentro de si o romance mais publicado do autor surja com o tema do desejo e da consequente impossibilidade da gestação de uma vida no ventre materno de Consuelo.

Refletir sobre a questão da infertilidade e dos avanços do conhecimento científico em relação à pílula anticoncepcional lançada em 1961 é um dos temas que a obra nos suscita. Existe em Aura um conflito feminino que perdura no tempo e se encontra na alma feminina que é a questão da infertilidade.

No romance, este tema tem um impacto proporcional ao seu silenciamento. Queremos poder supor que por esta razão, frequentemente, outros elementos estéticos se sobreponham ao conflito da personagem: destripar animais, cultuar objetos religiosos, sacrificar gatos, mimetizar gestos, parecer fantasma ou bruxa, todos esses elementos desviam a atenção para os atos da personagem, a declaração do marido nas cartas é a voz de um morto, tudo se torna magia e essa barreira mágica torna difícil fruir a obra.

As próprias atitudes de Consuelo diante da não solução de seu desejo ao recorrer ao passado e a um conhecimento esquecido pela sociedade do século XX são desviantes da questão da infertilidade. Visto como bruxaria, a tentativa de fertilidade que Consuelo executa é de um conhecimento milenar reprovado pela igreja durante a Idade Média. A alquimia64 é a precursora da ciência química e farmacológica que ameaçaria os poderes divinos que a igreja professava e que a medicina se apoderaria para transformá-los na indústria mais lucrativa do mundo atual (HAAG, 2012).

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Alquimia é a palavra que indica uma ciência mística conhecida como química da Antiguidade ou da Idade Média, que tinha como principal objetivo a transmutação de um elemento em outro. Outro dos alvos da alquimia era a criação do elixir da vida ou da imortalidade, que daria a imortalidade ou vida prolongada a quem o bebesse.

A religião por sua vez, muito evocada na obra, possui uma expressão sincrética que se mostra confusa numa total mistura de ritos pagãos com ritos cristãos. O paganismo que evoca as forças da natureza na busca da reconciliação para que a mulher seja fértil rememora um conhecimento sobre o poder das ervas, um poder de cura do corpo e da alma feminina. Tudo isso associado ao uso de imagens de santos em um altar de comunhão sagrada com um Cristo negro.

A comparação da estética da obra com o momento histórico de seu lançamento ainda nos permite refletir sobre a evolução da ciência para controlar a maternidade nos idos de 1960. Compreendemos que o avanço da ciência não foi o mesmo para solucionar seu problema contrário “o da infertilidade feminina” porque este é um problema que aparentemente não existe, principalmente para uma época em que as mulheres costumavam ter muitos filhos e que o crescimento populacional era considerável, a exemplo do Baby boom americano nos anos de 1950.

Desse modo, todo conhecimento científico avança para a contra concepção que alcança uma discussão universal do progresso e da revolução feminina com movimentos feministas nunca antes pensados. A mulher aos poucos passa a ser dona de seu corpo e a estabelecer a relação de prazer com o sexo, ela passa a mover-se em ambientes que deixam de ser a casa, a família, os filhos, e parte em busca de realização profissional e estabilidade financeira.

A invenção da pílula deu nova dinâmica ao mundo e a realização feminina deixa de ser apenas e tão somente a maternidade, o seu desejo passa a ser o de ocupar o espaço público e privado de sua própria vida. O número de filhos por família cai consideravelmente e o equilíbrio demográfico já não precisa ser feito apenas pela guerra.

Contudo, o problema da não fertilidade feminina e masculina sempre existiu e a ciência da época engatinhava ainda para solucionar a questão. O primeiro bebê de proveta surgiu em 1978, anos depois de Aura, e foi um avanço científico que proporcionou a muitos casais a oportunidade de realizar um desejo. Os primeiros trabalhos experimentais em embriologia de mamíferos foram realizados com coelhos, tendo em vista suas características biológicas favoráveis,

Essas novas condições de cultura, apesar de muito simples, permitiram a expansão do desenvolvimento das técnicas de produção de embriões in vitro. Marco na história da FIV, Chang (1959) relatou o nascimento do primeiro mamífero (coelho) gerado a partir dessa técnica. A partir daí, até o final dos anos 70, vários outros relatos da obtenção de FIV seguida de nascimentos de filhotes saudáveis foram registrados (GALUPPO, 2005).

Saga, assim se chama a coelha que vive na alcova de Consuelo comendo os restos das hóstias de farinha espalhados pelo lençol, essa representante da fertilidade possui uma identidade onomástica muito apropriada para o tema; segundo o dicionário65 pode ser uma mulher que se finge de adivinha e produz encantos e artifícios, ou um relato de novela que abarca as vicissitudes de várias gerações de uma família. O que nos revela o dicionário faz sentido diante do efeito estético da obra que mostra essa mulher encantada e essa volta de outra geração feminina em tia e sobrinha.

A fertilização continua a ser um problema conflitante para os casais na atualidade, o projeto de ter um filho por uma forma não convencional demanda recursos altos e não possui garantia de êxito principalmente para mulheres após os quarenta anos, como era o caso de Consuelo, a mulher encontra mais dificuldades e riscos, mesmo com o avanço do sistema de saúde nessa esfera.

Atualmente, além da fertilização in vitro a medicina possibilita a gravidez por inseminação artificial, ou seja, cada vez mais se oferece a possibilidade da realização do sonho da maternidade.

Em relação intertextual com a dinâmica da Epistemologia do Romance gostaríamos de comentar um artigo da revista Época (2010), em que a jornalista e escritora Eliane Brum66, nos alerta para O mito da fertilidade mostrando que esse é um problema que afeta a muitos casais e que há que se tratar o assunto de forma aberta e não de modo piegas ou tornando eufêmicos sentimentos que já se encontram na frustração de não poder gerar um filho.

No artigo ela relata que as chances de uma mulher jovem engravidar naturalmente, sem nenhum problema de fertilidade com ela e com o parceiro e transando no período fértil, é de apenas 25% a cada mês. E quanto mais idade menor a probabilidade estatística. Ela conta que muitas mulheres enlouquecem ao tentar engravidar e quando não conseguem engravidar, se deixam reduzir a um útero defeituoso.

A análise crítica feita pela autora em seu texto trata de como é difícil compreender a intimidade feminina deste contexto, e acrescenta: “Espero que não seja lida só por mulheres. Imagino que não seja fácil para um homem viver todo esse processo ao lado da mulher com quem divide a vida – e o sonho de ter um filho”. E termina o artigo com uma entrevista que vale a pena ler para perceber o quanto o problema do outro não pode ser sentido por nós, mas pode ser respeitado e tratado com ética.

65 Realizamos consulta ao dicionário RAE cujo endereço eletrônico é www.rae.es 66

Ganhou mais de quarenta prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Prêmio Jabuti 2007), O Olho da Rua (2008) e Uma/Duas (2011) a reportagem completa pode ser acessada em revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI122070-15230,00-O+MITO+DA+FERTILIDADE.html

Essa convergência textual encontrada na obra de Carlos Fuentes e no artigo de Eliane Brum demonstra uma trajetória temporal da “infertilidade” (1962- 2017) e o quanto avançamos e precisamos avançar no sentido científico e discursivo dos problemas que atingem a alma humana e seus desejos.

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