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1 O CONCEITO DE MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VYGOTSKY

1.3 A influência da Gestalt e da Antropologia

Além da influência do marxismo, já nuclear no pensamento de Vygotsky desde seus primeiros escritos, podemos identificar, ainda, os experimentos de Köhler com o

chimpanzé Sultão e as afirmações de Koffa sobre a experiência como fonte genuína de influência na composição do conceito de mediação “semiótica”. Para Köhler, aos chimpanzés faltava “o inestimável instrumento técnico” (Veer, Valsiner, 1996:238) da linguagem, da fala. Portanto, não havia para os chimpanzés a possibilidade de construir representações duradouras de situações problema. Não conseguiam sustentar um problema de modo articulado longe do alcance de sua percepção imediata. O conjunto de representações que articulavam estava restrito às impressões dos objetos em seu campo perceptivo. A memória conceitual que possibilitaria a representação e consequente antecipação de uma ação não estava presente. A cognição dos símios que não dominavam o universo simbólico da linguagem e da fala resumia-se a uma ação sempre sincrônica, contando apenas com os elementos presentes no campo visual dos chimpanzés, e que se esgotava em sua própria estrutura de percepção. Quando uma ferramenta surgia no campo sincrônico de percepção do chimpanzé, a gestalt (forma) do campo perceptivo podia ser alterada. A mediação instrumental da ferramenta apenas se estabelecia com a presença física do objeto no campo visual do antropóide. Vygotsky tinha amplo conhecimento destes experimentos e do modo como os gestaltistas o compreendiam, inclusive suas tentativas de migrar suas conquistas científicas para o universo humano. Koffa, por exemplo, deduzia que:

“As palavras usadas por crianças poderiam ser consideradas em certo sentido, semelhante à vara dada aos chimpanzés: sua introdução alterava a Gestalt e possibilitava a solução da tarefa”. (Koffa citado por Veer, Valsiner, 1996:238).

“ao invés de aplicar diretamente sua função natural à solução de uma tarefa definida, a criança coloca entre aquela função e a tarefa um certo meio auxiliar, uma certa maneira, com auxílio da qual a criança consegue realizar a tarefa. Se ela quiser se lembrar de uma série difícil, ela inventa um signo convencional, e esse signo, introduzido entre a tarefa e a memória, ajuda a dominar melhor a tarefa. O uso direto e natural da função é substituído por uma forma cultural complicada.” (Luria citado por Ratner, 1995:43).

Vygotsky notará a importância da representação através da palavra comparando a estrutura da memória de povos primitivos com povos que desenvolveram alguma técnica mnemônica mediada ou instrumentalizada simbolicamente. Segundo Vygotsky (Veer, Valsiner, 1996:237), povos culturalmente mais desenvolvidos utilizavam representações simbólicas para mediar ações cognitivas, como a memória. À semelhança da vara que mediava a ação dos chimpanzés, os símbolos, ou técnica cultural de representação, ocupava o espaço de mediador de processos psicológicos superiores. Culturas mais desenvolvidas haviam agrupado os recursos de técnica “psicológica” em uma estrutura coletiva, em bens socioculturais que atingiam a todos, qualificando o desempenho cognitivo dos membros de sua comunidade. Na cultura residiam as estratégias de representação e aperfeiçoamento cognitivo que podiam ser trocadas, comunicadas e aprendidas por muitas gerações. Assim, o processo histórico seria um fator decisivo na composição do psiquismo. Seria, mesmo, determinante. O desenvolvimento cultural de uma civilização influenciaria, capacitando ou

não, o psiquismo e as funções superiores de seus membros. A abordagem de Vygotsky conclui que a cultura acumula um repertório de técnicas de mediação das funções psicológicas e cognitivas, como as ferramentas equipam as habilidades de manipulação, perceptiva e executiva do corpo humano. Para Vygotsky,

“Sistemas de contagem e a linguagem escrita e falada não serviam apenas a uma função definida no mundo exterior - digamos, a preservação da tradição em textos escritos -, mas serviam também como instrumentos para o crescente controle do comportamento humano. Eram sistemas de signos que transformavam o nosso funcionamento mental, como instrumentos transformam o universo inanimado” (Veer, Valsiner, 1996:234).

Outra fonte nítida de influência do conceito de mediação em Vygotsky está nas pesquisas e descobertas etnográficas de Lévy-Bruhl e Thurnwald. Na ocasião, a influência da pesquisa sociológica e antropológica passava, sobretudo, por Durkheim e seu modelo de investigação, no qual recusava admitir que uma teoria psicológica pudesse explicar o homem sem suas extensões sociais (Veer, Valsiner, 1996:227). O complexo funcionamento psicológico do homem não poderia ser compreendido longe de sua formalização cultural. A mediação exercida pelas representações coletivas - capitais simbólicos de recursos cognitivos - configurava o homem sob aspectos comuns, compartilhados culturalmente com outros homens. Os dados etnográficos citados e interpretados por Vygotsky comparavam dados culturais envolvidos com os processos psicológicos superiores, como a memória. Assim Vygotsky observava culturas que utilizavam mensageiros “falados”,

culturas basicamente orais, e culturas que desenvolveram a escrita como técnica de mediação mnemônica. De fato,

“as descobertas etnográficas relatadas por Lévy- Bruhl e Thurnwald – por exemplo, o lançamento de ossos como um procedimento de tomada de decisões, o uso de partes do corpo em procedimentos de contagem e o uso de vários recursos mnemônicos e

sistemas de escrita – sugeriam que,

historicamente, os seres humanos haviam desenvolvido vários instrumentos culturais para auxiliar seu desempenho mental” (Veer, valsiner, 1996).

A perspectiva de estudar culturas “primitivas” decorre de uma aplicação direta do princípio epistemológico genético, quando, ao voltar-se para o desenvolvimento humano, descreve “o desenvolvimento da criança como um processo descontínuo, marcado por crises e conflitos, além de direcionado para o futuro, desvinculando tal processo da prisão da progressividade” (Vasconcellos, Valsiner, 1995:47). Assim, Vygotsky e Luria identificam “três linhas principais no desenvolvimento do comportamento – evolutiva, histórica e ontogenética” (Wertsch, 1996:10), postulando um conceito genético radical, de elevada abrangência, e que hoje está restrito ao domínio da ontogênese.

Ao propor uma perspectiva genética para o estudo da história sociocultural dos homens, Vygotsky e Luria estabelecem distinções psicológicas entre as civilizações em função dos recursos culturais que dominavam. Assim, as culturas poderiam ser classificadas como pertencentes a diferentes estágios do desenvolvimento da humanidade, visão intensamente questionada pelo relativismo lingüístico e cultural em antropologia. Vygotsky e Luria

“não apresentaram apenas uma abordagem transcultural, em que se comparam diversos grupos étnicos de povos pré-letrados, mas uma abordagem

trans-histórica que examina os diferentes

estágios de desenvolvimento pelos quais a espécie humana, desde seus primórdios nos macacos antropóides. Para a teoria do desenvolvimento humano de Vygotsky, os termos cultural e histórico são importantes; contudo a ênfase maior é posta sobre as diferenças históricas.” (Knox, 1996:18).

E Wertsch assinala:

“Baseando-se nas idéias de Hegel, Marx, Lévy- Bruhl e outros, ele (Vygotsky) tendia a ver o que hoje chamaríamos de diferenças transculturais como diferenças trans-históricas... esse é um ponto importante que distingue as idéias de Vygotsky das desenvolvidas na antropologia norte- americana por Franz Boas, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf” (Wertsch citado por Knox, 1996:18).

Como observou Wertsch, Franz Boas foi um dos que rejeitaram a concepção de “ordenação evolucionista” das línguas e culturas. Notamos que a simples transposição da perspectiva genética para uma visão histórica do “desenvolvimento sociocultural” não prevaleceu no quadro das ciências humanas, ainda que no interior de um contexto genético “histórico” profundamente questionado e combatido, a relação entre cultura e cognição se tenha mantido sobre outras bases, sobretudo, sobre bases ontogenéticas. Ou ainda que a relação entre as culturas humanas não indicasse

situações históricas hierarquizadas e complementares em um quadro evolutivo, a noção de cultura universal escalonada perseverou entre os membros da teoria histórico-cultural na ocasião. A noção de mediação foi mantida sem a perspectiva “trans-histórica” de culturas contemporâneas.

Um outro papel decisivo que a noção de instrumento associada à de mediação proporcionou à teoria Histórico- Cultural foi a possibilidade de aproximar história, cultura e mediação, porque ao contrário das habilidades naturais, físicas, contidas no próprio corpo, as ferramentas “não- naturais” ou culturais podem ser continuamente, ou historicamente, aprimoradas. E além do continuado aprimoramento, os instrumentos garantem a universalidade da ação e uma consciência criteriosa, que pode dispor de forma reflexiva as diferentes ferramentas e suas respectivas especificidades. Assim “os humanos possuem uma série ilimitada de habilidades potenciais em virtude da ilimitada variedade de instrumentos que podem inventar.” (Pannekoek citado por Ratner, 1995:43).

De forma análoga, se considerarmos signos como instrumentos psíquicos, encontraremos propriedades semelhantes em relação às atividades cognitivas. Então, devemos admitir, como sugere Ratner, que:

“O pensamento relacional, inspirado em instrumentos, multiplica enormemente a quantidade de informações que o organismo deve processar, uma vez que se torna possível grande número de permutações e relações: cada objeto pode ser considerado em relação a cada aspecto de outros objetos e a cada combinação de outros objetos”. (Ratner, 1995:44).

Um exemplo pungente da relação do signo como mediador de habilidades cognitivas pode ser exemplificado pela prática da matemática. Os símbolos e operações grafadas constituem uma estrutura mnêmica de processo, onde a execução de uma cadeia lógica pode ser acompanhada, cartografada ao longo do desenvolvimento de um problema, além de socializada e transmitida. A tecnologia cultural da escrita dotou o homem de uma memória imediata, espacial, desdobrada e disponível sobre sua consciência. Para Goody (citado por Ratner, 1995:44-45), “Os números escritos podem ser manipulados de maneira muito mais complexa do que as palavras e, assim, a escrita potencializa a matemática superior de um modo que teria sido impossível com a comunicação oral”. O instrumento técnico e cultural da escrita exerce forte influência sobre outras propriedades ou habilidades cognitivas e modalidades de consciência, tal como a sensibilidade estética, ao potencializar a música com sua notação específica, a pintura, com seu repertório estilístico de representação, também a escultura de forma semelhante e outras artes, amplamente mediadas por signos e padrões históricos de significação que definem a estética e a estilística de uma época ou grupo social.