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Importa, como se referiu na introdução a este primeiro capítulo, estabelecer um aparelho teórico sobre a identidade social, focando os conceitos na sua constituição com maior relevância para o tema central deste trabalho: raça e etnicidade. Atendendo à relação de grande proximidade entre ambos, será indispensável proceder a uma breve perspetiva sobre a sua história e evolução, considerando as conclusões de vários sociólogos e críticos culturais sobre a sua origem, ontologia e percursos.

A ideia da raça como uma categoria que distingue grupos humanos com características físicas diferentes não é indissociável da história do expansionismo europeu: o grande número de viagens de exploração à volta do mundo produziu, desde o início do empreendimento, inúmeros relatos sobre terras e gentes distantes, o que contribuiu para acentuar a impressão dos europeus de que a Europa era “civilizada”, enquanto as outras paragens e as suas gentes eram “estranhas”, como argumenta o filósofo Emmanuel Chukwudi Eze: “Savagery could then be physically located outside Europe, outside of light, so that Africa, for example, was considered the Dark Continent, and a terra nulla” (5).

Esta noção inicial da raça contribuiria para o estabelecimento de uma hierarquia social que colocava os europeus no topo da cadeia humana, relegando para a sua base os povos não europeus, considerados inferiores em termos de desenvolvimento cultural, intelectual e moral; e a absoluta determinação das potências colonizadoras em tomarem posse, a qualquer custo, das riquezas ultramarinas, tornaria óbvias as vantagens da utilização do trabalho escravo. Assim, a visão monogenista, inspirada no discurso religioso, segundo a qual os seres humanos teriam todos a mesma origem, sendo as diferenças entre grupos consequências do esforço de adaptação a condições naturais, foi sendo gradualmente suplantada pela teoria poligenista: sem origem comum, os grupos humanos teriam características biológicas distintas que justificavam a sua organização numa estrutura social hierarquizada.

Todavia, este lento processo, iniciado após o advento das incursões em territórios até então desconhecidos, não deixou de ser acompanhado por movimentos contrários à

38 escravização dos nativos justificada pela raça, nomeadamente por parte da Igreja Católica, que, como observa Dorothy Roberts, aceitava a necessidade de conquistar e subjugar os infiéis mas defendia a sua libertação uma vez convertidos ao cristianismo, em obediência à diretiva emitida em 1455 pelo papa Nicolau V – que viria, contudo, a ser progressivamente ignorada:

Spanish, Venetian, and Portuguese royalty vastly expanded the importation of dark-skinned slaves and, as the rationale of Christian convertion no longer suited the growing enterprise of perpetual forced black labor, began to evade the papal mandate to emancipate converted captives by describing them as less than human. (6)

Uma das primeiras e mais importantes manifestações de preocupação com este tema teve lugar durante o debate, ocorrido em 1550, que ficaria conhecido como “a controvérsia de Valladolid”. 19 Neste encontro, o dominicano Bartolomeu de Las Casas

e o filósofo e teólogo Juan Ginés de Sepúlveda apresentaram perante o legado papal, membros do clero e representantes da monarquia argumentos opostos sobre a natureza, os direitos e o justo tratamento dos nativos do continente sul-americano: segundo Sepúlveda, a credulidade dos nativos, a sua suscetibilidade a doenças trazidas pelo colonizador, as suas práticas sanguinárias e bárbaras, entre as quais se incluíam o infanticídio e o canibalismo, seriam características atribuídas por Deus àqueles povos – que teriam sido intencionalmente criados, portanto, como uma espécie diferente, sem inteligência e alma, destinada à posse do conquistador; Las Casas contestou este estatuto de inferioridade dos indígenas – que Sepúlveda defendia ser comprovado pelas próprias fragilidades que haviam permitido a sua conquista pelos espanhóis – enfatizando a sua plena humanidade, condenando a mutilação e extermínio de milhares, e opondo-se à manutenção dos sobreviventes em condições de vida desumanas.

Perante os argumentos dos dois contendores, o representante do papa haveria de decidir pela tese de Las Casas: os indígenas seriam seres com alma, tal como os colonizadores, e a sua escravização uma etapa a manter apenas até que fossem convertidos ao cristianismo; em seguida, deveriam ser libertados, como determinava o mandado papal. As necessidades laborais das colónias, invocadas por Sepúlveda, poderiam ser asseguradas pelo trabalho dos africanos – uma sugestão apresentada por

19 David Theo Goldberg, um dos impulsionadores da corrente Critical Race Theory, entende que o debate de Valladolid pode ser considerado uma das primeiras manifestações conhecidas de antirracismo (Are We All Postracial Yet? 14).

39 Las Casas e que, segundo Christine Chivallon, viria a ter uma influência determinante no seu processo de escravização:

[The famous Valladolid Controversy] is connected to the fate of the Africans, since it was Las Casas himself who suggested the replacement of Indian labour by that of Africans, on the condition that the king authorise their importation to the Americas. … At the end of his life, Las Casas recognised his error, but was no longer able to defend the cause of the Blacks with the same fire that he had militated in favour of the Indians. (7)

Assim, ao longo dos séculos seguintes, as potências imperialistas europeias aumentariam a importação de negros, ignorando progressivamente a diretiva papal que obrigava à emancipação dos escravos convertidos – ou seja, as manifestações de preocupação com a natureza e direitos de povos diferentes, surgidas após o advento da expansão europeia, foram capitulando perante as pressões do empreendimento colonizador. Como observa o sociólogo Stephen Spencer, esta tendência acentuou-se por influência do pensamento de vários filósofos iluministas:

[D]ivergent views about race and racial categories stem from the Enlightenment when divisive categorising and pseudo-scientific views of racial difference emerged albeit with resistance from some philosophers who held fast to ideas of universal humanity united by given capacity for reasoning and civil life and that differences were in fact due to climatic or agricultural variations. (34)

Também Emmanuel Eze defende que a filosofia do Iluminismo foi instrumental na codificação e institucionalização do conceito europeu da raça, tanto nos meios científicos como populares. No seu estudo Race and the Enlightenment, Eze compilou excertos de vários ensaios, quase todos publicados no século XVIII, que demonstram a importância do pensamento dos mais notáveis filósofos setecentistas na articulação de um sentimento de superioridade, não só cultural mas também racial, dos povos europeus – sobretudo, os naturais do norte da Europa. Este conjunto de ensaios é também revelador de ausência de uniformidade no discurso iluminista sobre a raça: se, em vários destes textos, razão e civilização são entendidas como prerrogativas da raça branca, e a barbárie como própria dos povos africanos, noutros, embora em menor número, continuam ser a aceites como válidas as teorias monogenistas, atribuindo a génese de toda a humanidade a um tronco comum e explicando as diferenças de aspeto físico e de nível de desenvolvimento com a influência do clima, alimentação e geografia.

Contam-se entre estes, por exemplo, George Louis Leclerc: “there was originally but one species, who, after multiplying and spreading over the whole surface of the earth, have undergone various changes by the influence of climate, food, mode of living, epidemic diseases, and the mixture of dissimilar individuals” (27); e James Beattie, que,

40 opondo-se à noção aristotélica de que alguns homens são naturalmente talhados para a escravização, defendia a liberdade como um direito universal e natural de toda a humanidade, sendo a equalização dos níveis civilizacionais de todos os seus grupos apenas uma questão de tempo: “The inhabitants of Great Britain and France were as savage 2,000 years ago as those of Africa and America are this day. To civilize a nation is a work which requires a long time to accomplish” (35).

Todavia, na compilação de Eze, são mais numerosos os ensaios de filósofos que defendiam as teorias do poligenismo e a existência de uma espécie humana – a que dera origem apenas à raça branca – e várias subespécies marcadamente inferiores. Eze reproduz alguns – por exemplo, de David Hume: “I am apt to suspect the negroes and in general all other species of men (for there are four or five different kinds) to be naturally inferior to the whites” (33); de Immanuel Kant, que dedicou muito do seu tempo a investigar e ensinar antropologia e geografia cultural: “The Negroes of Africa have by nature no feeling that rises above the trifling. … So fundamental is the difference between these two races of man, and it appears to be as great in regard to mental capacities as in color” (55); de Thomas Jefferson, crente na inferioridade natural dos negros, que seriam aptos apenas para o trabalho manual e incapazes de desenvolvimento intelectual:

In reason [the blacks are] much inferior, as I think one could scarcely be found capable of tracing and comprehending the investigations of Euclid; and … in imagination they are dull, tasteless, and anomalous. … never yet could I find that a black had uttered a thought above the level of plain narration; never seen even an elementary trait of painting or sculpture. (98-99)

e de George Cuvier: “The projection of the lower parts of the [Negro race’s] face, and the thick lips, evidently approximate it to the monkey tribe; the hordes of which it consists have always remained in the most complete state of utter barbarism” (105).20

20 No seu ensaio “Idleness in South Africa”, J. M. Coetzee inclui o excerto, que a seguir se transcreve, de um relato de viagem publicado em 1652 por Jodocus Hondius. As observações do cartógrafo holandês sobre o povo hotentote, recolhidas na África do Sul, transmitem a mesma imagem de inferioridade e de barbárie que os filósofos iluministas acima citados viriam a atribuir aos povos africanos, cerca de um século mais tarde: “The local natives have everything in common with the dumb cattle, barring their human nature... [They] are handicapped in their speech, clucking like turkey-cocks or like the people of Alpine Germany who have developed goiter by drinking the hard snow water… Their food consists of herbs, cattle, wild animals and fish. The animals are eaten together with their internal organs. Having been shaken out a little, the intestines are not washed but as soon as the animal has been slaughtered or discovered they are eaten raw, skin and all… A number of them will sleep together in the veld, making no difference between men and women… They all smell fiercely, as can be noticed at a distance of more than twelve feet against the wind, and they also give the appearance of never having washed” (Qtd. in Coetzee 119).

41 Eze reproduz no seu estudo duas entradas da palavra “negro” – uma na Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers e outra na Encyclopaedia Britannica – registadas no último quartel do século XVIII, e que põem bem em evidência a criação de uma imagem de inferioridade física, moral e cultural associada à raça negra:

Nègre: Man who inhabits different parts of the earth, from the Tropic of Cancer to the Tropic of Capricorn… They appear to constitute a new species of manking. … If one moves further away from the Equator toward the Antarctic, the black skin becomes lighter, but the ugliness remains: one finds there this same wicked people that inhabits the African Meridian. (Qtd. in Eze 91) NEGRO, Homo pelli nigra, a name given to a variety of the human species, who are entirely black, and are found in the torrid zone, especially in that part of Africa which lies within the tropics. … Vices the most notorious seem to be the portion of this unhappy race: idleness, treachery, revenge, cruelty, impudence, stealing, lying, profanity, debauchery, nastiness and intemperance, are said to have extinguished the principles of natural law, and to have silenced the reproofs of conscience. They are strangers to every sentiment of compassion, and are an awful example of the corruption of man when left to himself. (Qtd. in Eze 93-94)

O mesmo crítico observa que Georg F. Hegel defendeu, na sua obra Lectures on the Philosophy of World History, publicada entre 1822 e 1828, que “from a philosophical point of view, non-European peoples – American Indians, Africans, and Asians – are less human than Europeans because, to varying degrees, they are not fully aware of themselves as conscious, historical beings” (109). Hegel entendia ainda que a escravatura era uma fase necessária à educação dos africanos pelos europeus, e que os empreendimentos colonialistas seriam, ao mesmo tempo, um imperativo e uma consequência lógica da modernização das sociedades europeias, justificada pelo facto de a Europa ser civilizada e as vítimas do colonialismo serem bárbaras, estando as sociedades mais avançadas conscientes de que “the rights of the barbarians are unequal to [their] own” (Qtd. in Eze 149).

Assim, na primeira metade do século XIX, estava já consolidada, na Europa, a visão das raças não brancas como inferiores – uma inferioridade indissociável de características inatas, biológicas, passíveis de constatação pretensamente científica, aparentemente justificando o estabelecimento de uma hierarquia racial que criaria uma poderosa linha de fratura entre europeus e não europeus, alicerçada nas teorias do poligenismo, da inferioridade natural dos povos colonizados e da raça como um conceito biológico.

Porém, parece ser a própria história da origem e desenvolvimento da noção moderna de raça a desmentir uma natureza fundada na biologia; como defende Dorothy Roberts, a raça será, pelo contrário, um conceito eminentemente político: “racial

42 classifications did not occur in response to scientific advances in human biology, but in response to sociopolitical imperatives. They reveal that what is being defined, organized, and interpreted is a political relationship and not an innate classification” (5). Ainda segundo Roberts, tanto o número de raças que se considera existir em cada momento, como os atributos que definem cada grupo racial, têm mudado ao longo dos tempos e em todos os países, sendo políticos os motivos de tais alterações.

Na mesma linha de pensamento, Stuart Hall considera que a raça é “a discursive construct, … a sliding signifier” (“Race, the Floating Signifier” 5). 21 Na sua perspetiva,

a raça é um dos mais importantes conceitos na organização de sistemas de classificação de grupos humanos; todavia, a constatação da sua óbvia natureza flutuante torna insustentáveis as interpretações que procuram fundamentação na biologia ou na genética – da qual não existe, aliás, nenhuma comprovação científica 22– para as diferenças entre

grupos humanos, pelo que a raça corresponderá não a um conjunto determinado de características imanentes, biológicas e fixas, mas a um conceito, instável e variável, de índole histórico-social e cultural.

Para Paul Gilroy, a própria noção de raça é eticamente indefensável, mesmo quando resulta de um processo de autoidentificação; a destruição (desejável) das hierarquias fundadas na identidade racial, cuja presença, em várias sociedades contemporâneas, o crítico reconhece, exige que a humanidade se liberte definitivamente da tendência histórica para estabelecer divisões com base em perceções de diferenças

21 Também Robert G. Lee define a raça como uma construção discursiva que, uma vez criada como uma categoria de diferença, se dissemina largamente em todas as estruturas sociais. Referindo-se ao caso dos imigrantes de origem asiática em território norte-americano, observa Lee que “The Oriental as a racial category is produced, not only in popular discourse about race per se but also in discourses having to do with class, gender and sexuality, family, and nation. Once produced in those discourses, the Oriental becomes a participant in the production and reproduction of those social identities” (7).

22 O Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990 e concluído em 2003, e que tornou possível o mapeamento da ancestralidade genética, contesta precisamente o entendimento essencialista, fundado na biologia, da natureza da raça – tal como recorda Vivian Chou, num artigo publicado num blogue da Universidade de Harvard, e citando as conclusões de um estudo conduzido em 2002 por cientistas da Universidade de Stanford: “If separate racial or ethnic groups actually existed, we would expect to find ‘trademark’ alleles and other genetic features that are characteristic of a single group but not present in any others. However, the 2002 Stanford study found that only 7.4% of over 4000 alleles were specific to one geographical region. Furthermore, even when region-specific alleles did appear, they only occurred in about 1% of the people from that region – hardly enough to be any kind of trademark. Thus, there is no evidence that the groups we commonly call ‘races’ have distinct, unifying genetic identities. In fact, there is ample variation within races. … Ultimately, there is so much ambiguity between the races, and so much variation within them, that two people of European descent may be more genetically similar to an Asian person than they are to each other” (n.p.).

43 raciais. Todavia, Gilroy assinala as múltiplas dificuldades deste objetivo: se, por um lado, os privilegiados da hierarquia racial não desejam, ainda que inconscientemente, abdicar das suas prerrogativas, por outro lado, as identidades raciais historicamente oprimidas “have built complex traditions of politics, ethics, identity, and culture” (Against Race 12), tendo desenvolvido ao longo de séculos uma estratégia de defesa assente em grande medida nos conceitos dos opressores; como faz notar Gilroy, “[w]hen ideas of racial particularity are inverted in this defensive manner so that they provide sources of pride rather than shame and humiliation, they become difficult to relinquish” (Against Race 12).

Gilroy propõe, para a contemporaneidade, uma nova definição da identidade racial negra: despida de essencialismos, indiferente a marcadores físicos, deverá ser considerada como resultado dos vínculos comuns da história, experiências e perceções do mundo, um resultado aberto à crítica e, sobretudo, à mudança no sentido da formação de laços de solidariedade mais abrangentes, não limitados a afinidades raciais: 23

Those of us tied by affinity as well as kinship to histories of suffering and victimage have an additional responsibility not to betray our capacity to imagine democracy and justice as indivisible, nonsectarian forms. … diverse stories of suffering can be recognized as belonging to anyone who dares to possess them and in good faith employ them as interpretative devices through which we may clarify the limits of our selves, the basis of our solidarities, and perhaps pronounce upon the value of our values. (Against Race 230)

As observações de Roberts, Hall e Gilroy apontam para a natureza construída da identidade racial, e revelam bem a impossibilidade de se atingir uma compreensão plena, quer do processo de formação da raça, quer do racismo, sem se tomar em conta o contexto histórico e social em que os diferentes conceitos de raça se desenvolveram, e no qual são invocados. Como faz notar David Theo Goldberg, as próprias características selecionadas como referências que permitem atribuir uma identidade racial são também condicionadas pelo seu tempo e local, e sujeitas a mudanças:

In using ‘race’ and the terms bearing racial significance, social subjects racialize the people and population groups whom they characterize and to whom they refer. In order to get at the specific connotations of the term in this process by which peoples and populations are transformed into races, one has to determine, in a sense both empirically and archaeologically, how the term is being used. That the range of reference has largely turned on characteristics such as skin colour, physiognomy, blood or genes, descent or claimed kinship, historical origin or original

23 Defendendo o caráter real da raça (um aspeto que será discutido mais à frente), o sociólogo Eduardo Bonilla-Silva opõe-se ao entendimento de Gilroy: “Denying the social reality of race because of its constructed nature … unfortunately, has become respectable in academia. This position … has now been adopted … even [by] radicals (or former radicals) such as Paul Gilroy” (272).

44

geographical location, language, and culture … is a fact of the historical condition; it could have extended, and could extend beyond these. (“The Semantics of Race” 560)

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