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Estabelecidas e debatidas as visões antagónicas sobre o conceito de raça, importa introduzir, neste ponto, uma tentativa de definição básica do conceito de etnicidade. Segundo Manning Marable, “‘ethnicity’ is a relatively recent concept” (44), e a utilização deste termo para designar grupos humanos específicos é bastante recente, por comparação com o uso muito mais antigo do termo “raça”; as referências à etnicidade enquanto categoria identitária terão começado a surgir na literatura das Ciências Sociais na altura da Grande Depressão, nos Estados Unidos da América, generalizando-se então o seu emprego, em especial na área da Sociologia, como referência a certos grupos de imigrantes.

Também Sander L. Gilman defende que o termo “etnicidade”, tal como é usado nas Ciências Sociais – e embora a sua discussão, hoje, não esteja confinada às fronteiras dos Estados Unidos – corresponde a um conceito sociológico surgido na sociedade norte- americana, porquanto a sua complexidade se desenvolveu, em grande medida, a partir dos debates sobre o valor do universalismo e do particularismo durante a evolução do Movimento dos Direitos Civis (20). Para Werner Sollors, uma definição válida e adequada do conceito de etnicidade, ou de grupo étnico, é a proposta por R. A. Schermerhorn na obra que Sollors considera ser “the best systematic, comparative, comprehensive, and theoretical approach to ethnicity” (Theories of Ethnicity xii):

An ethnic group is … a collectivity within a larger society having real or putative common ancestry, memories of a shared historical past, and a cultural focus on one or more symbolic elements defined as the epitome of their peoplehood. Examples of such symbolic elements are: kinship patterns, physical contiguity (as in localism or sectionalism), religious affiliation, language or dialect forms, tribal affiliation, nationality, phenotypal features, or any combination of these. A necessary accompaniment is some consciousness of kind among members of the group. (Qtd. in Theories of Ethnicity xii)

Embora este conceito de etnicidade contemple a similaridade de características físicas – que são fundamentais na definição de raça –, a sua maior ênfase está colocada nos aspetos culturais e nacionais. 24 A própria coincidência de parâmetros de definição de

24 As noções de raça e etnicidade, antecedidas pelo conceito mais antigo de nação, partilham com este, no entanto, a natureza sugerida na definição proposta por Benedict Anderson na sua obra Imagined

45 raça e etnicidade, e a sua alteração ao longo do tempo, parecem evidenciar a natureza socialmente construída destes componentes identitários, contrariando noções que lhes atribuem, sobretudo no caso da raça, uma qualidade quase-essencial; 25 por outro lado,

tal sobreposição tem dificultado, como se verá mais adiante, a classificação inequívoca de grupos minoritários como raças ou etnias. A impossibilidade de enquadramento das definições de raça e etnicidade num modelo dicotómico perfeito é identificada por Sollors:

Some contemporary scholars would like to consider “race” a special “objective” category that cannot be meaningfully discussed as a part of “ethnicity”. Yet it seems that, upon closer scrutiny, the belief in a deep divide between race and ethnicity that justifies a dualistic procedure runs against the problem that the distinction between ethnicity and race is simply not a distinction between culture and nature. Few if any scholars manage to sustain a completely dualistic procedure, and even fewer advocate abstaining from any comparisons between “racial” and “ethnic” groups. (Theories of Ethnicity xxxiv)

Aceitando como ponto de partida válido a hipótese de uma maior ponderabilidade dos marcadores físicos na definição racial, e da herança cultural (língua, religião, origem territorial, nacionalidade) na definição étnica, 26 verifica-se, no entanto, que não só os

critérios das definições se alteram com o tempo e com as diferentes conjunturas, dando origem a uma aparente sinonímia, ou quase sobreposição, dos conceitos de raça e etnicidade, mas também que essas alterações podem impulsionar a transferência de grupos entre categorias identitárias – como, aliás, refere David Theo Goldberg, tomando como exemplo a sociedade norte-americana: “whether Arabs or Aborigenes, American Indians or Irish, Blacks or Hispanics, Japanese, Polish, or Gypsies, among others, are identified as a race at a given conjuncture has to do with the weight of interacting

Communities: “the nation … is an imagined political community. … It is imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion” (6).

25 De facto, o entendimento do conceito de raça assente num conjunto de características biológicas e visíveis tem-se revelado extraordinariamente duradouro: segundo Michael Omi e Howard Winant, eram ainda observáveis, na última década do século XX, vestígios da tentação de se entender a identidade racial como uma essência inata, um legado biologicamente recebido e, como tal, concreto, fixo e objectivo (54). 26 Este é o critério subjacente às definições de raça e etnicidade propostas por Bella Adams no seu estudo Asian American Literature:

“Ethnicity [:] A concept related to race. These two terms have been regarded as antonyms in a logic that opposes the biological and physiological (race) to the cultural and historical (ethnicity), and as synonyms on the basis that both are ideological categories” (198).

“Race [:] A cultural category used to differentiate people into groups, most obviously black, white and Asian. Although race is assumed to be dependent on visible physical differences such as skin colour, hair texture, and nose and eye shape, critical race theorists argue that people learn to see those differences. As such, then, racial categorization involves cultural historical processes that are not in themselves stable” (199).

46 formative considerations at the time (“The Semantics of Race” 555). Também Sollors faz notar o facto de certos grupos identificados no passado em termos raciais o serem nos nossos dias em termos étnicos: “before the rise of the word ‘ethnicity’, the word ‘race’ was widely used to refer to larger and smaller groupings of mankind: for example, the Irish race or the Jewish race” (Beyond Ethnicity 38).

O discurso académico parece exprimir alguma indefinição sobre os conceitos de raça e etnicidade, face aos seus contornos imprecisos e à sua quase-sobreposição, originando debates sobre duas hipóteses distintas: o entendimento da raça como um marcador identitário, incluído na categoria mais abrangente da etnicidade – uma teoria defendida por Sollors – “Ethnicity includes dominant groups … in which race, while sometimes facilitating external identification, is merely one aspect of ethnicity” (Beyond Ethnicity 36) – ou como uma categoria identitária per se, definida sobretudo pelo seu desenvolvimento histórico particular; é esta a interpretação de Omi e Winant, que fazem notar que algumas minorias têm rejeitado a noção de raça como um marcador identitário dentro da categoria da etnicidade, defendendo o reconhecimento de uma identidade racial mais marcada, capaz de exigir e justificar o próprio reconhecimento de grupo – bem como dos respetivos direitos, reclamados como reparação de percursos históricos afetados por sistemas de opressão, cujas consequências continuam presentes na vida das sociedades influenciadas por preconceitos relacionados com a identidade (20).

Com o propósito de invocar, num mesmo termo, tanto as características comuns como as diferenças entre os conceitos de raça e etnicidade, bem como a sua interpenetrabilidade, Goldberg cunhou o vocábulo “ethnorace”, que tem implícito não só o reconhecimento da grande coincidência de parâmetros que definem raça e etnicidade, mas também o facto de a formação de grupos étnicos ser significativamente influenciada pela agencialidade e subjetividade dos seus membros – características menos presentes no processo de formação de grupos raciais, normalmente dominados pela imposição externa (e impossível de controlar a partir do interior) de definições assentes em marcas físicas visíveis: “ethnoraces can also be established by consent. Here membership turns more or less straightforwardly on choice and self-affirmation” (“The Semantics of Race” 554).

A utilidade do termo “ethnorace” é também defendida por Linda Alcoff, que o entende como mais adequado, por exemplo, a uma correta definição da identidade de imigrantes pertencentes a grupos étnicos com origem na América Latina: ao contrário dos

47 termos “raça” e “etnicidade”, “ethnorace” invoca não só os elementos da agencialidade humana e da subjetividade, que Alcoff considera presentes no processo de criação da identidade daqueles grupos, mas também as particularidades físicas, visíveis, que estes podem apresentar e que os distinguem de outros grupos étnicos ou racializados – “the uncontrolled racializing aspects associated with the visible body” (Visible Identities 246).

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