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A Inquisição portuguesa e a perseguição à feitiçaria

No documento Marcus Vinicius Reis (páginas 62-69)

1 AS MÚLTIPLAS FACES DO CRIME DE FEITIÇARIA NO SÉCULO XVI

1.4 A problemática da “caça as bruxas” no Portugal do século XVI

1.4.2 A Inquisição portuguesa e a perseguição à feitiçaria

O ingresso da feitiçaria enquanto delito a ser perseguido pelos Tribunais do Santo Ofício vigentes em Portugal acompanhou o processo de delimitação da noção de heresia e do próprio crime em questão. Em outras palavras, o uso de rituais mágico-religiosos e a condenação destes deixou de ser uma tradição essencialmente jurídica – quanto ao âmbito civil português – para integrar o entendimento de que, conforme a natureza das práticas, poderiam ser interpretadas a partir de um conteúdo herético, sendo necessário, portanto, a intervenção inquisitorial nessa problemática.

Não significa considerar, por outro lado, que a Inquisição portuguesa tenha atuado de forma autônoma ao poder civil. Conforme salientou Bethencourt, por diversos momentos é possível entender o Santo Ofício em Portugal enquanto um tribunal régio, já que comungara de modelos de organização análogos aos presentes na administração política bem como de

152 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

interpretações referentes, por exemplo, ao delito da feitiçaria153. O que fez dessa instância o espaço privilegiado para o julgamento desse delito diz respeito ao próprio processo de imposição promovido pelas autoridades inquisitoriais, em que reafirmavam a maior competência do Santo Oficio em avaliar os relatos envolvendo rituais mágico-religiosos.

Para José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, o pano de fundo por trás dessa imposição reside no interesse da Inquisição portuguesa em construir um horizonte de controle da

religiosidade para além da perseguição aos cristãos-novos154. Partindo de um panorama mais

amplo, e que não merece ser negligenciado, Adriano Prosperi enxerga o avanço da Inquisição para o terreno da magia ilícita como parte integrante de um contexto voltado para o próprio debate em torno da realidade ou não da feitiçaria e da bruxaria e dos posicionamentos a serem seguidos pelas autoridades frente a esses delitos; apostasia ou uma simples

superstição?155.

Nesse sentido, duas proposições, quando da natureza essencial das práticas mágico-

religiosas envolvendo a invocação dos diabos, foram, no entender de Paiva, universais entre a

literatura portuguesa e compartilhadas por diversos Inquisidores: nem toda prática mágico-

religiosa consistia na heresia e que esta sempre se fazia presente com a invocação dos diabos

e a atuação destes em ações não permitidas pela sua natureza (revelar futuros contingentes ou

promover milagres), o que iria contra a lógica da crença “ortodoxa da Igreja Romana”156.

Com a intepretação – nem sempre natural, como já ressaltado – de que determinado ritual de invocação demoníaca consistia num ato claro de heresia, o processo inquisitorial era estabelecido.

Contudo, para que esse processo interpretativo se iniciasse entre as autoridades do Santo Ofício, era necessário o mecanismo da delação, alimentado, pela iniciativa de muitos indivíduos em externar à Inquisição o perfil de bons fieis e eliminar, assim, quaisquer desconfianças para com eles. Conforme menciona Paiva, o conhecimento de alguém suspeito por feitiçaria ou bruxaria poderia ser feito das mais variadas formas: “a denúncia feita por pessoas comuns, a denúncia feita por agentes do Santo Ofício (comissários e familiares), a chegada ao Santo Ofício de um processo iniciado num tribunal eclesiástico ou secular, uma

153

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 279.

154 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa: 1536-1821. Lisboa: A

esfera dos livros, 2013. p. 77.

155

PROSPERI, Adriano. Tribunais da consciência. Inquisidores, Confessores, Missionários. Trad. de Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 395-396.

auto-acusação [...] e finalmente uma qualquer delação feita durante uma visita da

Inquisição”157

.

Era comum, também, o relativo metodismo do Inquisidor, ou seja, não bastava apenas um depoimento para que o interesse em investigar um suposto herege emergisse. Geralmente a “fama pública” – termo recorrente nos processos envolvendo a feitiçaria – era o ponto central que instigava as autoridades a irem afundo nos relatos, inquirindo testemunhas e acusados. Seguia-se o período em que um mandado de captura era expedido pelo Inquisidor a fim de efetivar a prisão do individuo acusado e, assim, iniciar a fase de arguições. Esse período, por sua vez, variava conforme a atuação das autoridades e dos réus, ou seja, se confirmavam a possível participação em um pacto logo nos primeiros questionamentos ou se essa confissão emergia aos poucos diante da própria relação desigual entre Inquisidor e acusado.

Por parte dos inquisidores, José Pedro Paiva chama a atenção para duas questões recorrentes entre as atitudes dessas autoridades durante as arguições. Primeiramente, a ausência de quaisquer interesses por parte dos juízes em diagnosticar alguma marca nos acusados que corroborasse o pacto diabólico; característica que foi recorrente entre as autoridades de outras regiões europeias. Além disso, o pouco interesse entre os Inquisidores de se conhecer possíveis cúmplices dos réus foi recorrente nas análises levantadas pelo autor158.

Francisco Bethencourt, por exemplo, menciona a quase ausência dos tormentos, citando apenas um único caso para o século XVI, em que essa estratégia foi utilizada no processo de Inês Dias. Afirmou, também, que nem sempre era posto em prática todo o aparato em torno dos códigos que deveriam ser seguidos pelo inquisidor ao longo de um determinado processo. Para a “magia ilícita”, esse atropelo ritualístico é ainda mais evidente seja pela confissão prematura do réu ou mesmo pela displicência das autoridades em seguir o

Regimento de 1552 e as diretrizes pré-definidas159.

Quanto aos que caíam nas malhas inquisitoriais por meio de práticas mágico-

religiosas, ilícitas aos olhos das autoridades, as atitudes não foram muito distantes do

contexto reconstruído por Carlo Ginzburg na região italiana do Friul. Conforme adiantado acima, havia uma relação desigual, em que a posição do inquisidor frente ao que era relatado

157 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra

(1650-1740). Coimbra: Minerva-história. 1992. p. 58.

158

Ibidem. p. 65.

159 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

prevalecia nas sentenças. Para Francisco Bethencourt, essa iniciativa de se caracterizar os que interviam no sobrenatural como “intermediários do demônio”, enquadrando-os na noção de

feitiçaria, era resultado do próprio esforço católico em controlar a vida espiritual da

população bem como o acesso desta ao mundo sobrenatural160.

Prevalecia, assim, um forte condicionamento diante dos episódios mencionados pelos réus, embora seja possível para o historiador ir além dessa regulação e encontrar indícios de uma “cultura popular” ainda autônoma frente ao sobrenatural. Para os sentenciados, as saídas eram mais complicadas, já que geralmente prevalecia o processo de ajustamento dos episódios relatados aos estereótipos inquisitoriais do pacto diabólico.

Entretanto, mesmo com esse processo de ajustamento, vale ressaltar que a Inquisição portuguesa assumiu atitudes diversificadas quanto às formas de se debruçar frente aos relatos envolvendo supostas feitiçarias. Não é de se espantar essa dúvida, já que, conforme citado, havia poucos pontos de concordância entre as autoridades civis e eclesiásticas a respeito das práticas mágico-religiosas. Sendo assim, os questionamentos eram recorrentes entre os inquisidores quanto à suposta presença dos diabos e de pactos promovidos com essas criaturas, o que também contribuiu – para além da literatura que circulava – para que o ceticismo não fosse uma posição homogênea entre essas autoridades. Dúvidas e hesitações pairavam nos processos, o que por vezes contribuía para que o próprio réu se beneficiasse

com a soltura, segundo Bethencourt161.

Processada em 1655, a portuguesa Luísa de Azevedo se livrou de maiores sentenças por conta da divergência de opiniões entre o Inquisidor que a processou e os juízes do Conselho Geral do Santo Ofício, já que, segundo o autor, nenhum objeto sagrado foi por ela utilizado tampouco nenhum efeito sobrenatural com participação dos diabos teria sido provado em seu processo. Sem adiantar nossas análises, Maria Gonçalves e Felícia Tourinho não teriam a mesma sorte, já que Heitor Furtado de Mendonça – então visitador na América portuguesa – se interessou pelas denúncias que as relacionavam à participação e, inclusive, pacto com os diabos – no caso de Maria Gonçalves –, sendo sentenciadas em 1593 e 1595, respectivamente. A caracterização do alcance da heresia, da veracidade dos relatos e, por fim, a determinação da existência do pacto diabólico para, então, estabelecer um processo inquisitorial, não foram elementos pacíficos tampouco integraram um processo homogêneo para o Santo Ofício português.

160

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 291.

A respeito de uma visão global da repressão inquisitorial portuguesa no século XVI, os dados construídos por Francisco Bethencourt são essenciais para mapearmos o alcance das preocupações do Santo Ofício português para com o delito em questão bem como do campo religioso constituído pelos “mágicos” no Portugal quinhentista.

Preocupado com a atuação dos três Tribunais – Évora, Coimbra e Lisboa –, o autor se debruçou em cada caso a fim de esclarecer detalhadamente os ritmos referentes à repressão inquisitorial nesse período, destacando o número de processos de cada instância bem como das principais sentenças utilizadas pelo Santo Ofício diante dos rituais mágico-religiosos:

Tabela 1 – Processos de rituais mágico-religiosos dos Tribunais do Santo Ofício português no século XVI. 1540-49 1550-59 1560-69 1570-79 1780-89 1590-99 Inq. E. 5 45 4 4 2 1 Inq. C. - - 2 3 4 - Inq. L 2 4 2 1 7 8 Total 7 49 8 8 13 9 Total 61 9 24 94

Fonte: BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 285.

Com um olhar mais reduzido, as informações levantadas por Daniela Calainho também merecem destaque por apontarem para a relação entre o Santo Ofício português e a presença de mulatos e africanos inseridos nesse contexto de proliferação e repressão às práticas mágicas:

Tabela 2 – Motivações das práticas mágico-religiosas realizadas por negros e mulatos processados pela Inquisição portuguesa - Século XVI.

Relacionamentos pessoais

Curandeirismo Proteção Total

# % # % # % #

1540-60 6 5 0

Total para o século XVI

6 54,5 5 45,5 0 0,0 11

Fonte: CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. Anexos.

OBS: Ressaltamos que a tabela trazida para a discussão é parte da construída pela autora, que abarca, também, os séculos XVII e XVIII.

Os dados aqui citados e construídos pelos autores revelam, assim, o que Francisco Bethencourt chamou de “um fenômeno residual na atividade do tribunal” diante dos rituais

mágico-religiosos que emergiam por meio de denúncias ou até mesmo confissões. Mesmo

sem a segurança total dos números verificados, o autor afirmou que, dentro do número global de processos estabelecidos pelos três tribunais atuantes em Portugal, o delito da feitiçaria não ultrapassou a casa dos 2%. Relativa “brandura” que foi corroborada pela tabela construída pelo autor a respeito das sentenças:

Tabela 3 – Sentenças dos processos de rituais mágico-religiosos pela Inquisição portuguesa – Século XVI

Inq. E Inq. C Inq. L Total %

PENAS Degredo 24 - 3 27 28,7 Cárcere 18 1 1 20 21,3 Outras/Solto 11 8 19 38 40,4 Não Consta 8 - 1 9 9,6 PUBLICIDADE Auto da fé 19 2 3 24 40,7 Exposição pública 23 - 2 25 42,4 Na mesa 2 3 5 10 16,9 RECONCILIAÇÃO Abjuração de leve 13 3 5 21 52,5 Abj. de veemente 15 1 3 19 47,5

Fonte: BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 286.

Com exceção da década de 1550, em que os números em torno do delito da feitiçaria são expressivos na Inquisição de Évora – por conta, segundo Bethencourt, de uma devassa promovida na região a fim de encontrar indícios da existência desse crime –, podemos

concluir que Portugal esteve distante do auge da perseguição, delimitada cronologicamente por Delumeau. A convicção religiosa europeia de que a ameaça do Diabo e seus agentes era iminente, tornando-se urgente uma intervenção mais organizada, não foi seguida fielmente pelos seus pares portugueses, mesmo tendo na presença africana um importante peso na diversificação do acesso ao sobrenatural. A violenta repressão nessas regiões mencionadas foi paralela a uma ação “residual” dos tribunais inquisitoriais lusitanos. As próprias sentenças evidenciam essa disparidade, já que nenhum caso envolvendo esse crime foi relaxado ao braço secular, ou seja, condenado à morte.

Incertezas frente ao delito da feitiçaria, debates diversos a respeito da essência desse crime ou mesmo a ausência de grandes ondas persecutórias frente a indivíduos identificados como responsáveis por pactuarem com os diabos foram capazes de revelar, por sua vez, o

avanço de uma “visão mágica do mundo”, nas palavras de Francisco Bethencourt162.

Revelaram, também, que mesmo com esse quadro de dúvidas, as iniciativas inquisitoriais em ampliar seus domínios no campo espiritual português não cessaram. O caso do Tribunal de Lisboa é forte exemplo dessa assertiva, já que, mesmo com a fraca atuação dos Inquisidores para com a feitiçaria, optou por alargar sua jurisdição para os domínios ultramarinos lusitanos, como o Novo Mundo, por exemplo. Ampliou, por conseguinte, o objetivo em reafirmar a posição da Igreja como única via de acesso lícito ao sobrenatural e o olhar para aqueles que contrariavam essa proposição por meio das práticas mágico-religiosas, principalmente as que contavam com possíveis invocações diabólicas. No além-mar, as Visitações se tornariam importantes mecanismos de tentativa de controle das vivências espirituais dos fieis, fazendo emergir, em consequência, uma religiosidade heterodoxa em que as práticas mágico-religiosas e a recorrência destas entre as mulheres possuiu um importante peso no século XVI.

162 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

2 - O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS E O CONTROLE DAS

No documento Marcus Vinicius Reis (páginas 62-69)