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Felícia Tourinho e a busca pela intervenção nos destinos

No documento Marcus Vinicius Reis (páginas 156-173)

4 AS PRÁTICAS MÁGICO-RELIGIOSAS NOS PROCESSOS DE FELÍCIA

4.1 Felícia Tourinho e a busca pela intervenção nos destinos

Conforme já avaliado, a preocupação com os constantes acessos das camadas populares ao âmbito do sobrenatural, sem quaisquer mediações oficiais – diga-se Igreja Católica – também se inseriu no âmbito jurídico português quinhentista, antes mesmo do Concílio de Trento, como nas Ordenações Manuelinas. Não era um interesse vazio, pelo contrário, a possibilidade de intervir diretamente nos destinos, sem a necessidade de uma instituição que se encontrava em crise, era tentadora também para o contexto lusitano e, claro, problemática para as autoridades. A tentativa de silenciar as manifestações populares concorreu diretamente com o cada vez maior interesse dos indivíduos em contar com o sobrenatural sem a necessidade direta de intermediadores.

Iniciado em dezembro de 1545, o Concílio de Trento, convocado pelo então papa Paulo III, pode ser entendido, assim, como um movimento de tentativa de reação ao avanço do protestantismo na Europa. Todavia, é simplista pensar a época tridentina como resultado

único dessa ameaça protestante; tratou-se de importante elemento que sedimentou as fissuras

que já eram vivenciadas pela Igreja Católica422. Era necessário, portanto, uma reação

estruturante em prol da reforma institucional e, ao mesmo tempo, da reconquista espiritual dos fieis que por vezes já não enxergavam no catolicismo a melhor via para a salvação.

Esta reconquista se insere, a nosso ver, em uma intensa disputa religiosa voltada para o controle oficial do sobrenatural e, assim, da visão de mundo a ser seguida. A Igreja Católica, então fragilizada, manteve o objetivo de permanecer no monopólio desse campo através da dessa reconquista. Para além do protestantismo, a fragilidade do catolicismo entre as populações – nesse caso, não falamos apenas do contexto europeu – permitiu a emergência de uma infinidade de manifestações espirituais dos leigos durante o medievo e, principalmente, modernidade. Importante consequência desse novo contexto de efervescência religiosa se deu pelo próprio reconhecimento de certos indivíduos de que seriam possuidores da capacidade de comunicação direta com o sobrenatural, sem a necessidade da intervenção direta do clero para essa finalidade.

Essa comunicação se expressaria principalmente em duas práticas largamente difundidas entre a população. Falamos do visionarismo e das práticas de adivinhação, sendo consideradas, a nosso ver, como uma tentativa não institucionalizada de se comunicar com o sobrenatural a fim dos indivíduos obterem respostas futuras ou até mesmo de buscar intervir, a seu favor, nessa temporalidade, sem o intermédio da Igreja.

Para o campo divinatório, houve uma sistematização que, no entender de José Pedro Paiva, representava uma lógica dentro da rede de operações que o adivinho praticava de modo a intervir no tempo: “[...] os procedimentos dos mágicos prendem-se com três tipos de questões: saber o destino e situação de pessoas desaparecidas [...]; descobrir o paradeiro de

bens e adivinhar certos acontecimentos não os tendo presenciado”423

.

Francisco Bethencourt, por exemplo, cita o caso de Madalena Correia, portuguesa, que, juntamente com sua filha, promovera algumas práticas oraculares no altar da igreja de Nossa Senhora dos Remédios, em Évora. Mediante a invocação de anjos e santos, tornava-se capaz de ter visões em uma pequena “conta de cristal furada e metida num pauzinho”; uma

forma rudimentar do que viria a ser a bola de cristal, segundo o autor424.

422

DELUMEAU, Jean. Nascimento e Afirmação da Reforma. Trad. de João Pedro Mendes. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 196.

423 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra

(1650-1740). Coimbra: Minerva-história, 1992. p. 128.

424 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

Vale lembrar que a prevalência dessas práticas em Portugal se deu no meio urbano, principalmente, conforme apontou José Pedro Paiva. Tampouco se restringiu apenas aos meios iletrados e que compunham em grande parte os estratos populares, já que o autor identificou durante os séculos XVII e XVIII a participação importante de letrados que se interessavam por quem era reconhecido pela capacidade divinatória no diversos espaços lusitanos425.

Essa intervenção nos destinos não esteve, por sua vez, distante do contexto colonial, pelo contrário, a própria presença de um processo inquisitorial interessado em investigar supostas práticas de adivinhação foi promovido, como veremos adiante. Além do mais, algumas denúncias também revelaram o interesse, principalmente feminino, na manipulação do tempo via mundo sobrenatural e, talvez, de construir minimamente um espaço de autonomia.

Destaque, assim, para a participação dos escravos africanos no processo de circulação de crenças e saberes voltados para esses rituais por todo o Império português. Profecias e prenúncios astrológicos prevaleceram no Portugal dos Quinhentos, resultado do próprio contexto de mobilidade social e geográfica de uma sociedade que vivenciava novos descobrimentos e que enxergava neles a possibilidade de mudar de vida. Não faltam exemplos, assim, de indivíduos identificados por Francisco Bethencourt e interessados na descoberta de tesouros, no paradeiro de seus cônjuges ou nos possíveis perigos que poderiam

acontecer durante uma viagem426. Na América portuguesa, por fim, a contribuição é notória

para o processo de sincretismo religioso vivenciado nesse espaço desde o século XVI, embora

a presença maior de africanos tenha ocorrido nos séculos posteriores427. As adivinhações

também integraram, assim, o rol de práticas e crenças utilizadas por esses indivíduos no Novo Mundo, como o escravo André, citado neste trabalho, e que fora denunciado por tais rituais.

Conforme destacamos no capítulo anterior, tendo por base os gráficos construídos, a adivinhação na América portuguesa quinhentista pode ser considerada como uma das práticas

mágico-religiosas mais recorrentes entre a população. Recorrência maior, ainda, entre a

presença feminina tanto no interesse pelos por esses ritos como supostamente praticando-os, revelando os primeiros indícios de uma tentativa das mulheres em procurar espaços de

425

PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774. Lisboa: Editorial Notícias, 1997. p. 118.

426 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 64-65.

427

Laura de Mello e Souza afirma que “uma colônia escravista estava pois fadada ao sincretismo religioso.”: Cf: MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 93.

autonomia para além da normatização vigente. Talvez esse constante interesse em tais práticas possa ser pensado como uma das motivações para que Felícia Tourinho fosse chamada à Visitação de modo a esclarecer supostos rituais envolvendo também as práticas aqui mencionadas. Sem adiantar maiores conclusões a respeito dessa forma de religiosidade encontrada no contexto em questão, reforçamos o entendimento de que a possibilidade de intervir nos destinos se mostrou sedutora para a figura feminina, principalmente pela condição de protagonismo e/ou relativa autonomia ofertada pela recorrência a esses rituais.

O fato de, principalmente na Bahia, não apenas uma mulher ter concentrado a recorrência de rituais de adivinhação pode ter se tornado, desse modo, indício de uma prática heterodoxa que circulava na América e que atingiria novas problemáticas com a visitação em Pernambuco. Falamos, portanto, do processo que Felícia Tourinho sofreu como resultado da denúncia de Domyngas Jorge, associando-a a práticas de adivinhação bem como à invocação do Diabo.

Objetivamos, assim, destrinchar o código ritualístico possivelmente utilizado pela acusada e relatado tanto na denúncia quanto nas arguições promovidas pelas autoridades à Felícia Tourinho, e que tornaram tais rituais mais complexos e visados pelas autoridades. Retomamos, assim, um diálogo historiográfico a respeito da forte tradição que a América portuguesa ao longo dos séculos possuiu com indivíduos, em geral, mulheres, considerados “adivinhos”, no qual por vezes a participação do Diabo era recorrente, tornando esse campo um importante espaço de fuga para a figura feminina diante de contextos desfavoráveis.

Visamos, também, identificar as possíveis motivações para que o uso desse ritual tenha se efetivado, comparando, por sua vez, com os ritos denunciados na Visitação à Bahia. É nosso intuito trabalhar com a hipótese de que Felícia Tourinho tenha se tornado um “bode expiatório” diante da recorrência de denúncias durante a visita à Bahia que tinham como objeto principal episódios envolvendo a adivinhação; uma única denúncia foi capaz de motivar o estabelecimento do processo em questão.

Enfim, buscaremos inserir seu processo no jogo de interpretações promovido pelas autoridades que tendiam a enquadrá-la no entendimento de que havia se relacionado com o Diabo, elemento que se tornaria primordial das adivinhações que a acusada supostamente teria praticado, reafirmando, também, a misoginia vigente. É, portanto, uma discussão que envolve

a “formação cultural de compromisso”, analisada por Carlo Ginzburg428

e a interação entre a

“cultura erudita” e “cultura popular”, pensada por Peter Burke429

, como forma de discutirmos a mescla, o hibridismo de referências simbólicas que entraram em conflito a partir de seu processo. É, também, um debate a respeito do modo como o discurso misógino encabeçado pelos eruditos alcançou, na maioria das vezes, sucesso, corroborando a relação natural das mulheres com o Demônio.

Natural de Monterrey, reino de Galiza, a cristã-velha Domyngas Jorge morava em Igarassu juntamente com seu cônjuge, Paulo de Abreu. As notícias a respeito da presença do Santo Ofício na Bahia já deveriam circular na Capitania de Pernambuco e suas regiões. Ciente da necessidade de demonstrar que sua vida era regrada em boas ações cristãs, externadas para uma sociedade onde as noções de público e privado eram fluidas, ainda nos primeiros momentos da visitação em Pernambuco a denunciante resolveu comparecer diante do Visitador. Rememorar um episódio ocorrido a mais de nove anos e considerá-lo passível de denúncia a partir do Monitório afixado, podia também se justificar dentro do interesse em reafirmar sua condição de boa cristã.

Ao relatar este episódio, a denunciante disse que este teria acontecido na época em que esteve presa na cadeia pública de Olinda por conta de viver “amancebada com um homem casado”. Infelizmente a documentação referente à visitação em Pernambuco não foi capaz de esclarecer essa questão, se Paulo de Abreu era o homem no qual vivia ou se estava no reino, enquanto sua mulher estava em bigamia. Contudo, ela é reveladora do desregramento que o matrimônio possuía na América portuguesa e que fora analisado, por exemplo, na obra de

Ronaldo Vainfas430.

Afora essa problemática moral que preocupava os clérigos, a denunciante afirmou que, durante sua prisão, uma mulher de nome Felícia Tourinho – além de citar o nome de outra mulher, dita Antónia Vaz, sem detalhar, contudo, quem era – teria tomado uma tesoura e

fincado o objeto em um “chapim”431

para, em seguida, levantá-lo com “ambos dedos mostradores” proferindo, ao mesmo tempo, as seguintes palavras: “diabo guadelhudo, diabo orelhudo, diabo felpudo tu me dygas sevay Joam por tal parte digo por tal camynho [...] se

isto ser verdade tu faças andar isto se não ser verdade não ho faças andar então”432

. Em

429 BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. Tradução de Denise Bottmann: São Paulo: Companhia

das Letras, 2010.

430

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

431 Em Rafael Bluteau, o significado de chapim é o de uma espécie de calçado composto de quatro ou cinco

solas, o que atualmente pode ser considerado um salto. Cf: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino (1713). Rio de Janeiro: UERJ, s.d [CD-ROM]. p. 276.

432 DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 01268. Processo de Felícia Tourinho.

seguida, o “chapim”, juntamente com a tesoura, teria “rodeado” na direção da denunciante após as palavras proferidas por Felícia Tourinho, confirmando-se, assim, o paradeiro do homem citado no ritual. Domyngas Jorge ainda destacou que essa prática teria se repetido por algumas vezes durante a detenção de ambas na cadeia.

A utilização da tesoura e sua associação com outro objeto também compuseram o rol de práticas utilizadas pelos adivinhos tanto na metrópole como em outros tempos e espaços da América portuguesa. Em Francisco Bethencourt, por exemplo, temos o caso de Brites Frazoa, que se confessaria à Inquisição de Évora no século XVI. Envolvida em questões cotidianas, como o interesse de uma mulher em saber quem lhe roubara uma camisa, as adivinhações também foram correntes em suas práticas que combinavam o uso da tesoura com uma joeira:

[...] pega na tesoura com a cliente, cada uma no seu anel, levantando com ela a joeira; conjura a joeira da parte de Deus, são Pedro, são Paulo e são Pulo para que diga a verdade sobre quem furtou a camisa; depois de nomear alguns suspeitos sem que a joeira se movesse, referiu o albardeiro e, quando disse são Pulo “a joeira andou ao redor e ela declarante ficou maravilhada.433

José Pedro Paiva nos atentara para a recorrência do uso da tesoura e peneira como objetos que adquiriam significado ritualístico nas adivinhações em Portugal. O exemplo que menciona a respeito dos escritos de Luís de La Penha, residente em Évora, demonstram não apenas uma prática corrente, mas a persistência de elementos nessa forma de adivinhação:

nos escritos de que era proprietário Luís de La Penha, de Évora, a forma de a executar vem assim descrita: “Tomarao huma tesoura e metella am cruzada numa pineira e dirao por Sam Pedro e Sam Paullo e Sam Pullao e por Sam Pero Pulao e pelos sinco planetas do mundo que se he tal cousa nomeada o que querem saber que tu andes para a parte direita e senao que estejas queda e isto dito sinco vezes sobre a tesoura tomaram pelos ellos.434

Em contrapartida, o uso dos “sinco planetas do mundo” que, em determinado ritual, poderia adquirir coerência para o praticante, em outra ocasião poderiam ser substituídos por algo mais familiar ao indivíduo, como a água, tradicional na magia religiosa e utilizada por Antónia Maria na Recife setecentista. Laura de Mello e Souza nos conta que, ao ser procurada por um aspirante a padre, a dita Antónia teria enchido um alguidar com água, colocando uma moeda e uma folha de papel no fundo. Em seguida, tomara uma peneira com uma tesoura, sendo segurada por ela e por Francisco Xavier, o aspirante. Pouco tempo depois fora

433 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 70.

434 PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774. Lisboa: Editorial

ordenado para padre, o que confirmaria, a seu ver, a existência de sortilégios na sua

ordenação435.

Persistências e, também, ressignificações que poderiam, portanto, variar conforme as demandas existentes, à crença em determinados objetos a serem utilizados bem como nas criaturas invocadas, como os três diabos possivelmente conjurados por Felícia Tourinho através da tesoura e do “chapim”.

Conforme apontara José Pedro Paiva, juntamente com os “malefícios”, esses rituais integraram o rol das principais heterodoxias no Portugal moderno quando das relações com o

sobrenatural436. Sendo assim, ao chegar a Pernambuco, Heitor Furtado de Mendonça – já

ciente dessa problemática tanto em Portugal como na Bahia – se inclinou para o interesse em minar o alcance de rituais que concorriam diretamente com o catolicismo a respeito da autoridade em se controlar os destinos; uma concorrência que teve a participação decisiva da mulher, conforme já mencionado no item anterior. Um problema que seria potencializado com a participação dos diabos nos rituais de adivinhação relatados pela denunciante, diferente dos casos que chegaram ao Visitador durante o tempo em que estivera na Bahia.

A possível irreverência ou vulgarização dos diabos, denominando-os de “felpudo”, “orelhudo” e “guedelhudo”, indica, por outro lado, não apenas uma problemática aos olhos inquisitoriais, mas, também, a quase infinidade de representações que a “cultura popular” promoveu durante a modernidade diante do considerado maior inimigo da cristandade. Talvez o próprio corpo clerical, os teólogos, enfim, aqueles que se dispuseram adjetivar Lúcifer como grande destruidor da humanidade, príncipe do mundo, tenha falhado em divulgar de forma mais incisiva essa atmosfera de medo para a “cultura popular”, ou mesmo subestimado a capacidade de apropriação e ressignificação da população comum.

Mesmo com uma concepção da queda do “Anjo Rebelde”, ou Lucífer, delimitada nos longínquos séculos II e III e com a maior institucionalização dessa figura, incluindo a definição dos espaços habitados pelas criaturas demoníacas, parece-nos que todo esse esforço dos padres da Igreja possuiu alguns limites. Embora usemos o caso envolvendo Felícia Tourinho, não é difícil encontrar, como já o fizemos, relatos em que a participação do Diabo é quase que familiar aos indivíduos, sendo invocados para os mais diversos objetivos. Detalhe que nos faz pensar que este uso em nosso recorte, por exemplo, possa remontar até mesmo ao

435 MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil

colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 159.

436 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra

período anterior à ascensão de Satã, em que Jean Delumeau percebeu uma teatralização e

domínio dos indivíduos sobre essa criatura e seus pares437.

Afirmação que pode ser complementada com a visão de Laura de Mello e Souza a respeito da trajetória de Felícia Tourinho, bem como das práticas de adivinhação que compuseram a religiosidade na América portuguesa. Primeiramente, pelo caso de Felícia ter sido um dos raros registros em que as práticas em questão se combinam com a invocação de Satã que, no entender da autora, conservam um “sabor ainda medieval, acentuando-lhe os

traços de magia ritual”438

. Além disso, mesmo com o interesse no conjuro desses personagens, a autora acredita que essas práticas se aproximam mais de uma folclorização do catolicismo

do que necessariamente um ritual de feitiçaria439.

Acreditamos, assim, na possibilidade de existência de um importante desnível de interpretações entre a “cultura dirigente” e uma população pouco interessada em se inserir na forte tradição demonológica que também encontrava ecos em meio às autoridades da visitação e do próprio clero ali residente.

Por outro lado, é necessário lembrarmo-nos que um processo inquisitorial é também uma relação de poder desigual em que o inquisidor possuía instrumentos físicos e psicológicos para a identificação do pacto demoníaco, objetivo primordial em acusações como a de Domyngas Jorge. Por isso, também é válido analisar como se delimitou esse desnível por meio das interações existentes entre “cultura erudita” e “cultura popular” a partir do momento em que Felícia Tourinho foi presa pelo Santo Ofício e interrogada pelas autoridades.

No espaço de um ano e meio, quase, após a denúncia promovida por Domyngas Jorge, a prisão de Felícia Tourinho aconteceu, em 8 de maio de 1595. Todavia, embora a morosidade tenha existido entre o período da denúncia e o início do processo, este, por sua vez, ocorreu de forma rápida, tendo sua sentença proferida em 9 de junho do mesmo ano, praticamente um mês de atividades. Essa relativa rapidez por parte do Visitador no desenrolar desse processo acabou por refletir na própria limitação que este possui para algumas questões que serão levantadas a seguir.

Com a denúncia de Domyngas Jorge trasladada pelo notário Manoel Francisco, em 8 de maio de 1595 o Visitador convocaria diante de si a acusada Felícia Tourinho,

437 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo, Companhia

das Letras, 2009. p. 247-249.

438

MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 161.

estabelecendo oficialmente o processo de investigações para com a denúncia que tinha em mãos. Mesmo sendo “mulher doente e pobre”, a prisão se efetivou após fazer o juramento de

No documento Marcus Vinicius Reis (páginas 156-173)