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2 INQUÉRITO POLICIAL: DA INQUISITORIEDADE AO PROJETO DE

2.2 A inquisitoriedade do inquérito policial e sua inadequação ao sistema acusatório de

Contemporaneamente, o Estado é regido por normas fundamentais e princípios constituídos por uma norma superior que é a Constituição Federal, a qual acolhe as demais normas que compõe o ordenamento jurídico. Esta composição de leis formam uma pirâmide hierárquica, consistindo estas normas na atribuição de regrar e limitar as ações, do particular como também do Estado, formando o Estado Democrático de Direito.

Contudo, o inquérito policial atualmente utilizado no Brasil é um sistema redondamente antiquado, visto que não se é permitido exercer o direito ao contraditório e a ampla defesa, tanto que o investigado somente terá conhecimento dos fatos pertencentes ao inquérito quando já se tem uma composição de atos já praticados, por ora já criado um juízo sobre sua culpa, ainda que não definitivo, mas capaz de justificar uma acusação formal.

Denis Lopes (2018) discorre sobre a transgressão das normas constitucionais e os danos que o sistema inquisitivo causa ao acusado, e refere o quão é preciso acometer-se sobre os prejuízos que também são causados ao Estado. Pois, no momento em que a execução de diligências se dá carente de constitucionalidade, é preciso sua reprodução durante a fase processual, transformando a instrução criminal num procedimento repetitivo e desgastante.

O que diferencia o inquérito policial das outras formas de investigação são as características nele predominantes, pois que é realizado pela polícia judiciária de forma escrita, sigilosa, dispensável e inquisitiva, não sendo necessária a observância do

contraditório, o que atribui à autoridade policial uma maior discricionariedade para realizar as diligências que achar necessárias dentro de seus limites.

É perceptível o intuito de atribuir reduzido valor probatório ao inquérito policial, a reconhecer a investigação policial como um meio somente de se obter informações preliminares a subsidiar o oferecimento da denúncia ou da queixa. É o que a Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS confirma ao proferir o julgado a seguir transcrito em relação a não utilização dos elementos informativos da investigação preliminar:

APELAÇÃO CRIME. PATRIMÔNIO. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA.

ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS NO CURSO

DO INQUÉRITO POLICIAL QUE NÃO SE SOBREPÕEM À PROVA JUDICIAL, SERVINDO TÃO SOMENTE PARA SUSTENTAR O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ABSOLVIÇÃO DO RÉU QUE SE IMPÕE. SENTENÇA REFORMADA. De acordo com o disposto no Art. 155 do Código de Processo Penal, os elementos informativos da investigação preliminar podem ser usados apenas de maneira subsidiária, complementando a prova judicial, produzida sob o crivo do contraditório, não sendo idôneos para fundamentar exclusivamente a condenação criminal, uma vez que colhidos sem a participação dialética das partes. No caso dos autos, malgrado a autoridade policial tenha conseguido reunir indícios de autoria a permitir que o Ministério Público ajuizasse a ação penal, não logrou êxito o Parquet em confirmar, através da prova judicializada produzida na instrução criminal, os elementos colhidos durante o inquérito policial ou outros que sustentassem a condenação. Nesta senda, tendo em vista a ausência de prova judicializada, não há qualquer indicativo seguro, produzido à luz do contraditório, que demonstre que o réu tenha adquirido, mantido em depósito ou exposto à venda, no exercício da sua atividade comercial, 03 (três) botijões de gás, não se tendo como extrair juízo de condenação, salvo forte dose de presunção, que não pode militar em desfavor do réu. APELAÇÃO PROVIDA. (RIO GRANDE DO SUL, 2019).

Essa ausência de princípios basilares é o que provoca o questionamento acerca da incompatibilidade do inquérito policial com a Constituição Federal, pois são esses alguns dos princípios que formam um Estado Democrático de Direito, considerando que o Brasil exerce o constitucionalismo para conduzir a vida do país e da sociedade em que nele habita. Além do que, é indiscutível a superioridade da norma constitucional frente ao restante da legislação, afirmando-se com maior ênfase o quão todo e qualquer processo ou procedimento deve se desenvolver em consonância com as garantias processuais.

O contraditório está fundado no artigo 5º, LV da Constituição Federal, constituindo o rol de princípios essenciais ao Estado Democrático de Direito. É com base nele que o sujeito

terá a chance de se pronunciar em sua defesa, Lopes Jr. (2010, p. 218) define o contraditório, e ressalta a sua imprescindibilidade:

O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas). É imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo.

Da mesma forma como o princípio do devido processo legal, o contraditório é vital, pois o indivíduo precisa ter conhecimento dos fatos que lhe são imputados, para que possa tomar providências, exercendo seu direito de defesa, inicialmente pelas alegações a ele veiculadas. Necessita o acusado de que lhe seja dada a oportunidade de expor fatos que impeçam ou modifiquem o teor das acusações a ele imputadas, com intuito de demonstrar sua inocência. Até mesmo poder ser capaz de ajudar, uma vez que se demonstre inocente, na comprovação da materialidade do delito, ou até mesmo na identificação do verdadeiro culpado, colaborando significativamente com o Estado na apuração dos fatos.

O autor Lopes Junior (2012, p.242) estabelece a essencialidade no direito do acusado em ter informação e participação no processo, ter o conhecimento completo da acusação, e do que se sucede, sendo transmitidos todos os atos processuais, de regra não podendo manter em segredo, correndo o risco de violação do contraditório.

Esse segredo decorre de outra característica que torna o inquérito policial inadequado ao sistema acusatório de garantias que é a sua natureza sigilosa, o que, conforme Lopes Jr. (2018), impede o pleno exercício do direito de defesa.

A justificação para a não utilização do contraditório e da ampla defesa na fase preliminar é a necessidade de impossibilitar que o indiciado prejudique a investigação. Lopes Jr. (2018) relata que não é isso o que ocorre na prática, até porque, muitas vezes, a autoridade policial renuncia ao sigilo, ao tornar pública a investigação ou parte dela pela mídia. E, nesse sentido, o fato de o investigado ter acesso aos autos do inquérito, ou tomar conhecimento do teor da investigação, desse modo, e quem sabe com isso prejudicá-la, em nada tem a ver com a inexistência da defesa técnica. Ou seja, mesmo que não haja uma defesa técnica,

efetivamente, ou ainda que houvesse, não é isso que o fomentará na prática de atos a prejudicar a investigação.

Um exemplo que pode ser citado aqui sobre a publicidade de atos do inquérito policial, são as exposições de interceptações telefônicas, muitas vezes divulgadas em rede nacional, em jornais de televisões, no decurso do inquérito. Veja-se a manchete retirada do site G1Globo, publicada em 16 de março de 2016:

Moro derruba sigilo e divulga grampo de ligação entre Lula e Dilma; ouça

Ligação foi feita às 13h32 desta quarta-feira (16).

Em outra conversa, Lula diz que não iria para o governo para se proteger. O juiz Sérgio Moro retirou nesta quarta-feira (16) o sigilo de interceptações telefônicas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As conversas gravadas pela Polícia Federal incluem diálogo desta quarta com a presidente Dilma

Rousseff, que o nomeou como ministro chefe da Casa Civil. (grifo do autor)

(CASTRO, NUNES, NETTO, 2016)

No entanto, é sabido que o advogado tem a permissão de livre acesso ao inquérito, firmado pelo artigo 7º da Lei 8.906/94, averígua-se:

Art. 7º São direitos do advogado:

XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;

Mas o que se pode analisar, frente a decisão prolatada pela Segunda Câmara Criminal da Comarca de Viamão, é que não se aplica essa permissão como livre acesso:

MANDADO DE SEGURANÇA. DELITO DE HOMICÍDIO. ACESSO DO ADVOGADO AOS AUTOS DO INQUÉRITO POLICIAL. SÚMULA VINCULANTE Nº 14, DO STF. Quando do despacho liminar, assentei o teor abaixo transcrito em parte: A decisão da autoridade coatora, indeferindo o pedido de acesso aos autos, afasta, em tese, a incidência da Súmula Vinculante nº 14 ao caso concreto, devido a suas peculiaridades. Informou que pendiam algumas diligências indispensáveis ao prosseguimento do feito. O próprio artigo 7º-§ 11, do Estatuto da OAB, estabelece restrições ao princípio da publicidade, quando se tratar de diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos, quando houver risco de comprometimento das diligências. A jurisprudência do STJ não considera como absoluto o direito de o advogado ter acesso aos autos de inquérito, que esteja sendo conduzido sob sigilo, lembrando que o princípio da ampla defesa não se aplica ao inquérito policial, que é mero procedimento administrativo de investigação inquisitorial (RMS 17.691/SC e 15.167/PR).

Sendo assim, não se constata, de plano, violação à Súmula em testilha, assim redigida: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, JÁ DOCUMENTADOS em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. Penso, assim, que deva ser assegurado ao impetrante o direito de acesso aos autos da investigação, tombada sob nº 039/2.19.0002567-7, mas somente quanto às provas já produzidas e documentadas nos mesmos autos e referentes ao investigado Alexandre, excluídas, em consequência, aquelas providências necessárias para o integral cumprimento das demais diligências, cuja concretização deve se dar em segredo de justiça. Na eventualidade dos elementos de prova já documentados nos autos (decreto de preventiva, por exemplo) comprometerem a eficiência, eficácia e finalidade das diligências investigatórias ainda em curso, o juízo de origem poderá sombrear (...) as passagens que identifiquem nomes, endereços e diligências deferidas contra outros inculpados ou terceiros, evitando-se, deste modo, eventual prejuízo quanto às diligências ainda não cumpridas. Diante do exposto, concedo em parte a liminar pleiteada, permitindo que o impetrante tenha acesso aos autos em que foi decretada a prisão de Alexandre, mas restrito àqueles documentos referentes apenas ao investigado e excetuando as providências necessárias para o integral cumprimento das demais diligências cobertas pelo segredo de justiça e enquanto não documentadas em ditos autos. Em complementação à decisão exarada em sede de liminar, e com o objetivo de harmonizar o decidido com a necessária preservação do material que baliza eventuais diligências em andamento, esclareço que o direito do impetrante em ter vista dos autos limita-se às dependências do Cartório Judicial, sendo resguardado ao requerente, contudo, extrair de tais autos as cópias de que necessita, às suas expensas. Saliento que as cópias deverão ser extraídas pela serventia cartorária. LIMINAR RATIFICADA. SEGURANÇA CONCEDIDA EM PARTE. (RIO GRANDE DO SUL, 2019).

Diante do exposto, compreende-se a tão aventada inconstitucionalidade do princípio inquisitivo predominante do inquérito policial, já que o Ministério Público pode realizar ou requisitar atos de investigação, e por outro lado o acusado e seu advogado podem requerer, porém o delegado não é obrigado a realizá-las, podendo o acusado se valer de provas somente quando iniciada a ação penal, iniciando uma conclusão que por ora já esta predeterminado.

O que se vê diante disso, quando se fala em um juízo pré-constituído, é a violação do princípio da presunção de inocência. Para Luigi Ferrajoli (2002, p. 441), este é um princípio fundamental de civilidade:

Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena. Sendo assim, o principio, o principio de submissão à jurisdição – exigindo, em sentido lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7), e, em sentido estrito, que não

haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação (Tese T63) – postula a presunção de inocência do imputado até a prova contrária decretada pela sentença definitiva de condenação. Trata-se, como afirmou Luigi Lucchini, de “um corolário lógico do fim racional consignado ao processo” e também a “primeira e fundamental garantia que o procedimento assegura ao cidadão: presunção juris, como sói dizer-se, isto é, até prova contrária”. A culpa, e não inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto de juízo.

Como decorrência do direito ao contraditório, está o direito à ampla defesa, distintos entre si, como refere Lopes Jr. (2010), em que um consiste em direito à informação, enquanto o outro consiste mais em direito à reação. E mais, refere-se “à defesa técnica como indisponível” (LOPES JR, 2005, p. 335), constatando ser uma condição para a “paridade de armas”, sendo imprescindível para a concreta atuação do contraditório, desenvolvendo a imparcialidade do juiz, representando um meio de autoproteção do sistema processual penal.

Assim, além da demanda pela proteção do acusado, a aplicação dos princípios ora citados agregaria muitas vantagens à persecução penal, pois, como abordado no decorrer do texto, as informações obtidas no inquérito policial, caso pudessem ser utilizadas como meio de prova na ação penal, facilitariam o curso do processo, tornando-o mais célere e mais eficaz.

Resta evidente, nesse contexto, o quão ultrapassado está o inquérito policial enquanto procedimento investigatório, acarretando prejuízos não só ao acusado como ao Estado. Ao primeiro, pelo fato de não poder desfrutar de seus direitos previstos na Constituição Federal, e ao segundo, por ter um trabalho redobrado, no momento em que terão de ser refeitas as diligências da fase preliminar, para que possam embasar a decisão judicial, o que contribui para a lentidão e, por vezes, à ineficácia do processo judicial.

2.3 As reformas previstas para o atual CPP e as mudanças em relação ao inquérito

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