• Nenhum resultado encontrado

2 – DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

2.4 – A INSERÇÃO CIVIL NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Assim como a perspectiva apresentada na seção anterior, a democracia deliberativa se apresentou nas últimas décadas como alternativa de modelo democrático no hiato existente nas democracias contemporâneas liberais. Se a modalidade participativa pressupõe envolvimento cidadão direto nas decisões políticas como condição para legitimidade política, a democracia deliberativa, por seu turno, acrescenta uma nova camada de participação: a que considera a deliberação pública como motor da engrenagem democrática.

Embora ainda haja obstáculos na política formal para a construção de debates amplos e outras instâncias deliberativas, é possível identificar que ―as democracias constitucionais modernas abriram espaço para muitas formas de deliberação pública‖ (BOHMAN, 2009). As liberdades individuais, de imprensa, de escolha ideológica, religião etc., asseguradas pelas democracias liberais, são fontes iniciais para que deliberações ocorram nos espaços destinados, sejam eles formais ou informais.

É possível identificar desenhos de vetores de estudo que versam sobre diversas questões acerca da deliberação pública. Desde concepções mais normativas, voltadas para a verificação de pressupostos teóricos imprescindíveis para legitimidade democrática (FUNG, 2004; COHEN, 2007; GUTMANN e THOMPSON, 2007; BENHABIB, 2009), até trabalhos empíricos e estudos de caso (SCHOLOSBERG, ZAVESTOSKI e SHULMAN 2007; SAMPAIO 2010, 2011). Ainda que se avance, em níveis diferentes, por essas linhas, nota-se a adoção com mais freqüência dos estudos de Jurgen Habermas (1997) e sua concepção de esfera pública, deliberação e legitimidade democrática.

Inicialmente, é preciso entender que outros estudiosos empreenderam esforços em discutir a deliberação, como nos mostra Held (2006), que resgata autores como Claus Offe, Ulrich Preuss e Bernard Manin. Ainda assim, Habermas se tornou peça fundamental na base teórica desses estudiosos mais recentes, apresentando

normatizações mais abrangentes e calcadas em ideais mais próximos da realidade social

das últimas décadas18.

Habermas (1997) considera que o caminho mais correto – e, em certo ponto, natural – para propor um modelo de democracia é seguir pela via normativa, que teria um sentido genuíno e se formaria de maneira intuitiva. Assim, fica claro a tensão com o modelo liberal e suas concepções excessivamente realistas e escassamente falha em parâmetros normativos. No trajeto oposto aos modelos tradicionais, Habermas acredita na formação democrática a partir do entendimento mútuo, da troca de informações pública, de um ―auto-entendimento ético-político‖ (p. 19) e busca pelo consenso na tomada de decisão pública.

Deste modo, Habermas busca entender política e legitimidade democrática por meio da racionalidade humana, admitindo que os cidadãos são competentes para discutir sobre assuntos que lhes dizem respeito.

Através de seus conceitos de racionalidade comunicativa e da ação comunicativa, Habermas pode fortalecer sua idéia inicial da importância da comunicação, da interação dos indivíduos, das deliberações públicas para o sistema político. Habermas, assim, lança bases vitais para sua teoria de uma democracia deliberativa. Habermas (1997) deseja uma verdadeira soberania popular e através de seu modelo deliberativo explica como o poder comunicativo se relaciona com o administrativo. O objetivo é apresentar as condições para a gênese legítima da lei. A razão que apresenta e testa normas assume uma forma procedimental nas condições de procedimentos justos e seguindo as pressuposições da comunicação, que suportam a feitura das leis (SAMPAIO, 2010, p. 48).

A questão da legitimidade democrática via participação, já bastante abordado na seção anterior, também é tema análogo à teoria deliberativa. A diferença é que nesse modelo a legitimidade só é alcançada via processos comunicativos entre os cidadãos (BENHABIB, 2009), uma vez que as decisões só são chanceladas a partir de processos deliberativos públicos. Deste modo, assume-se também que as ―decisões representam um ponto de vista imparcial hipoteticamente igualitário com relação aos interesses de todos‖ (p. 112). O foco está, portanto, em pensar o poder do Estado somente legitimado via envolvimento direto dos indivíduos.

18

Embora essa afirmação permaneça intacta, é preciso ressaltar que apresentaremos ao longo dessa seção argumentos e explicações de autores que, segundo Sampaio (2010), atuam na linha de atualização da teoria de Habermas. Assim, mesmo que não se fundam completamente aos postulados do autor alemão, esses autores fornecem subsídios para se pensar a democracia deliberativa como um todo.

Habermas se distancia ainda mais da raiz liberal ao assumir uma posição de crítica à separação entre Estado e sociedade civil. No entanto, não se coloca em oposição total, como fazem alguns autores de origem participativa, mas entende que a esfera civil toma para si arenas de discussões públicas como meio de construção de poder autônomo que a distingue do poder econômico e estatal. Na prática, essa noção se expressa não na legitimidade por si de uma lei votada pela maioria, mas sim no seio das discussões, explanações e troca de razões públicas empreendidas pelos cidadãos (HELD, 2006). Esses fluxos comunicacionais se dão na esfera pública, solução democrática encontrada por Habermas para que a deliberação se justifique (DRYZEK, 2004) e se forme de maneira mais alargada e consistente.

Gomes (2008) explica que o conceito de esfera pública, embora tomado por variações ao longo de décadas, consolida-se novamente quando Habermas a preenche da noção de ―ação comunicativa‖, ―formação discursiva da opinião e da vontade‖ e ―discurso‖. ―No centro da discussão sobre esfera pública, estão os processos pelos quais são formadas a opinião e a vontade coletivas‖ (p. 71). Assim, o pensamento do bem- estar comum é uma construção social coletiva daqueles que assim desejarem participar (MAIA, 2008), pois Habermas entende que os cidadãos são suficientemente preparados para enviar demandas para a esfera política decisória.

Isso leva à noção de que a soberania popular é alcançada de forma diferente do que entendem os liberais.

A soberania do povo retira-se para o anonimato dos processos democráticos e para a implementação jurídica de seus pressupostos comunicativos pretensiosos para fazer-se valer como poder produzido comunicativamente. Para sermos mais precisos, esse poder resulta das interações entre a formação da vontade institucionalizada constitucionalmente e esferas públicas mobilizadas culturalmente, as quais encontram, por seu turno, uma base nas associações de uma sociedade civil que se distancia tanto do Estado como da economia (HABERMAS, 1997, p. 24).

Assim, o debate político é ordenado e calcado no bem comum (COHEN, 2009), longe de amarras institucionais burocráticas, mas acopladas a elas, assumindo que é possível encarar o processo político como factível nas relações cotidianas das pessoas. Mansbridge (2009) empreende especial atenção a essa questão, mostrando que, se a conversação cotidiana não é deliberativa por si só, ela se constitui como importante componente da deliberação pública. Assume-se, portanto, relações comunicativas entre membros do poder institucional entre si, entre esses e cidadãos ordinários, entre

indivíduos ―soltos‖, entre indivíduos organizados, entre agentes da mídia, partidos e organizações em geral – todos estes fazendo parte do que Mansbridge (2009) chama de sistema deliberativo: um amplo ambiente de conversação e trocas argumentativas.

Essa vertente, na verdade, amplia o conceito tradicional da teoria para pensar os espaços públicos mais abrangentes, não só reconhecendo os momentos formais de decisão política (eleições, votações de conselhos, referendos etc.) como importantes. Nesse contexto, a concepção de política é ampliada para se atentar a contextos práticos da vida social (MAIA, 2008), aos modos mais simples de trocas informativas como fazendo parte do motor deliberativo que legitima as decisões políticas. Essa seria, portanto, a esfera pública informal.

Há derivações na bibliografia normativa da democracia deliberativa que seguem pelo caminho do modelo que passou do estágio teórico puramente para uma etapa de working in progress (CHAMBERS, 2003). Por isso, é possível identificar uma série de normas e exigências que se formam a partir da noção básica de deliberação e que atendem a propósitos que saem dessa mesma raiz. Marques A. (2008), num esforço de síntese de diversos autores da área, resume alguns princípios que o processo

deliberativo deve ter: igualdade, publicidade, reciprocidade, reflexividade,

accountability, autonomia, ausência de coerção e respeito mútuo. A autora lembra também que os participantes da deliberação devem estar cientes e de acordo das normas do processo e da dinâmica das trocas argumentativas.

Na tentativa de organizar o debate e suprimir dúvidas com relação ao sistema, Cooke (2009) desenvolve cinco argumentos a favor da democracia deliberativa. Primeiro, o processo de deliberação tem poder educativo, fato que segue na linha de pensamento de teóricos participativos, como John Stuart Mill (2009). Logo, ao deliberar na esfera pública, o cidadão aperfeiçoa aspectos morais e cívicos e tende a participar ainda mais no futuro. Segundo, a deliberação gera sentido de comunidade – tema, mais uma vez, comum a autores participativos, como Barber (1984). Assim, indivíduos que deliberam e participam dos negócios públicos passam a reconhecer-se na própria comunidade, uma vez que esses fluxos comunicacionais se dão em múltimas vias dentro dessa localidade. Terceiro, deliberação significa que o resultado do processo será melhor aceito pelo cidadão porque tal resultado é oriundo da discussão pública e se

torna, portanto, mais justo. Quarto, derivando do anterior, o resultado final da deliberação também é racional em sua concepção prática.

Cooke (2009), no entanto, chama a atenção para o fato de que esses argumentos só são possíveis se houver o entendimento de que a democracia deliberativa é constitutiva de um ideal de ―quem somos‖, ou seja, o ideal de um self específico das democracias ocidentais ou até mesmo da noção de um entorno social formado por cidadãos com um sentido de condução social semelhante. Ainda, a deliberação proporcionaria uma melhoria dessas questões.

Já Cohen (2009) se concentra em estabelecer cinco características principais da deliberação formal. Primeiro, indivíduos deliberam na espera de que isso ocorra novamente num futuro indefinido. Segundo, há entendimento geral entre os participantes de que as normas que regem o jogo são compartilhadas, assim como a própria estruturação do debate e seus resultados. Terceiro, apesar de cada indivíduo possuir liberdade e pensar a partir de parâmetros próprios, não se pensa num conjunto de ideais dominantes, e sim no entendimento mútuo. Quarto, as regras e normas da deliberação devem ser públicas, claras e objetivas, pois a confluência entre elas e o resultado efetivo deve ser considerado. Quinto, os participantes de uma deliberação se reconhecem como capazes, assumindo que são iguais uns aos outros na possibilidade de trocas argumentativas eficientes.

A despeito do cumprimento ou não desses princípios – que, na verdade, dependem de diversos outros fatores e não são unanimidade na bibliografia – é possível entender a teoria deliberativa como assentada em dois aspectos básicos. Por um lado, verifica-se seu forte tom antiliberal no sentido da aceitação do poder da sociedade civil como construtor de melhores decisões políticas, além do fato de que deve haver maior contato entre a esfera política e esfera civil. Por outro lado, encara-se a participação a partir das trocas argumentativas e de fluxos comunicacionais alternativos aos meios formais da política, formando na esfera pública as discussões que legitimam o resultado a decisão política.

3 – ESFERA CIVIL, PODER LOCAL E PARTICIPAÇÃO