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3. DETALHAMENTO DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

3.1. A INSPIRAÇÃO ETNOGRÁFICA

Para estar próximo dos surdos e compreender como a surdez se apresenta através dessas pessoas, optou-se pela utilização de um estudo de campo e da observação direta como principal técnica de construção de dados. Essa aproximação do objeto, originária na Antropologia Social, ganhou força a partir da publicação de Os

Argonautas do Pacífico Ocidental de Bronislaw Malinowski e reformulou as bases do

método no qual a aproximação acima proposta está inserida: a etnografia (GEERTZ, 1989). O legado deixado por Malinowski (1978) refere-se à necessidade do pesquisador de ir a campo e realizar o “olhar antropológico”, ou seja, compreender um grupo cultural a partir do ponto de vista de seus próprios membros, através de seus relatos, costumes e valores compartilhados na vivência com o pesquisador. Originalmente, a etnografia se ocupou de comunidades “tradicionais”, tribos indígenas e povos primitivos, com o intento de buscar conhecer culturas diferentes. Geralmente afastados da “civilização” ocidental, esses povos despertavam interesse de pesquisadores devido à distinção no modo pelo qual se organizavam, na forma como criavam e mantinham suas relações na sua estrutura familiar e social, etc.. Recentemente esse método tem sido utilizado em outros contextos, na medida em que esses grupos foram perdendo suas características originais, principalmente ao estreitarem suas relações com o “homem comum”; modo pelo qual Malinowski (1978) denominou os não “nativos”.

Nesse novo contexto, os trabalhos antropológicos também se voltaram para o estudo da diferença cultural, das práticas sociais e dos comportamentos no contexto urbano, conforme realizado por Magnani (2002, 2003). Assim, outros campos de saber se incorporaram à Antropologia, buscando criar novos cenários de investigação, como, por exemplo, a Antropologia do Consumo, a Antropologia Urbana, Antropologia Rural, Antropologia Política, entre tantas outras. Nesses novos campos de investigação, a etnografia representa mais do que um método, essa atividade atua como algo que dá essência ao conhecimento e à compreensão da visão, do ponto de vista do “outro” (CALIMAN; RUSLEY, 2008).

Para os fins desta pesquisa, buscou-se estabelecer a relação entre a perspectiva cultural proposta pelos estudos surdos, a sugestão de aproximação na comunidade

surda proposta por Strobel (2008) e a interpretação de alguns significados que surgem a partir de uma descrição de situações de consumo de um grupo particular, formados por surdos da cidade de Vitória.

Termos como “consumo”, “cultura”, “surdez”, “comunidade”, “identidade”, “diferença” e “inclusão”, entre diversos outros, tanto em obras que promovem a aproximação cultural da surdez com o consumo, quanto oriundos dos primeiros contatos com a comunidade surda, serão contemplados pela utilização da observação direta e do estudo de campo. Mais especificamente com o que ensinam Malinowski (1978), Geertz (1989) e Magnani (2002, 2003).

De acordo com Geertz (1989), o trabalho de campo do pesquisador é buscar a compreensão acerca da cultura de determinado grupo. Assim, a partir de uma observação direta dos fatos, cabe ao mesmo realizar uma descrição densa desse grupo para acessar os significados e sentidos que estão emaranhados na teia de significações. Ou seja, é necessária uma descrição minuciosa dos eventos sociais que são capazes de representar grandes questões nos contextos sociais em que estão integrados.

A pesquisa etnográfica visa, portanto, investigar determinado grupo através do que é produzido a respeito do mesmo, a partir do ponto de vista dos membros que o compõem, em busca dos valores, costumes, crenças e significados que dão sentidos e norteiam as relações sociais que ali ocorrem. Conforme postula Geertz (1989), o objeto do estudo não é o lócus do estudo. Em outras palavras, a busca pela compreensão dos significados compartilhados por determinado grupo cultural não de se dá pelo estudo do grupo e sim, se apresenta através da reflexão sobre o que pode ser encontrado nele.

A partir de sua presença no grupo, o pesquisador se depara tanto com informações que lhe saltam aos olhos, quanto com ações sociais corriqueiras, pequenos hábitos e fatos cotidianos. Tão importante quanto observar os eventos que causam estranhamento, o registro dos fatos aparentemente menos importantes, ou familiares, se apresenta como fundamental na construção dos dados, pois, além do cimento social do grupo estar em cada relação que seus membros estão

vivenciando, os pequenos fatos podem estar relacionados a grandes temas (GEERTZ, 1989).

Assim, a descrição dos fatos vivenciados deve ser microscópica. Isso é, cabe ao pesquisador narrar o mais próximo possível da realidade em que o evento se apresenta e deixar que os fatos falem por si mesmo. Entretanto, não podem ser deixadas de lado as “interpretações antropológicas”, através da compreensão de que as ações sociais permitem comentários a respeito de mais do que elas mesmas. Essas interpretações do pesquisador ocorrem em todos os níveis do trabalho de campo, nos primeiros contatos, nas descrições sobre o que é observado até no relato dos informantes; nos rituais mais corriqueiros e até nos que são estranhos ao pesquisador. Pois, para Geertz (1989), a compreensão dos costumes, dos hábitos e dos significados de determinada cultura se dá da mesma forma em que se busca construir uma leitura de um estranho manuscrito que por vezes se mostra fragmentado, incoerente, emendado e com comentários tendenciosos. Portanto, com a ajuda das interpretações, através de cada fragmento, das emendas e das incoerências encontradas, é possível buscar experimentar a construção de uma leitura a partir do outro.

Necessário também para tal empreitada de aproximação com o grupo que compõe o objeto de estudo é estabelecer relações com sujeitos-chave, informantes privilegiados ou intermediadores culturais. Torna-se importante obter apoio para realizar a pesquisa. Acresce a relevância o fato de essas pessoas, por possuírem posições privilegiadas no grupo, poderem contribuir com uma melhor observação da realidade do contexto do grupo.

Igualmente valorosa é a participação do pesquisador nos eventos e atividades realizadas pelo grupo, quais sejam encontros, discussões ou passeios. O envolvimento do pesquisador se torna necessário em alguns momentos para legitimar sua presença no grupo, ao passo que em outras circunstâncias é devido abster-se, manter-se neutro e limitar sua participação à observação e à anotação das informações.

Assim, o pesquisador se apresenta como o cronista e o historiador da sequência de acontecimentos que marcaram o período em que esteve em campo, na medida em que sua situação no grupo, através do contato constante, assuma um caráter natural, em plena harmonia (MALINOWSKI, 1978).

A presença no grupo reforça relatos de primeira e segunda mão (GEERTZ, 1989), uma vez que se afastam dos preconceitos e das opiniões já sedimentadas do “homem comum”, as pessoas que possuem relações com o grupo, mas não dominam os “imponderáveis da vida real”. De acordo com esse antropólogo, o trabalho do pesquisador só pode ser validado caso em sua leitura esteja clara a distinção dos resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas, por um lado, e, por outro, as inferências, baseadas no bom senso e na intuição do pesquisador.

Dessa forma, a busca pelos “imponderáveis da vida real” – os fenômenos como se apresentam nas relações sociais, tais como cuidados com a vestimenta, rotina do trabalho pessoal, modo de preparo e consumo de alimentos, tom das conversas, amizades, simpatias e aversões – nada significa caso estejam vazios de “pensamentos e emoções” do observador (MALINOWSKI, 1978).

Evidentemente que tanto Geertz (1989) quanto Malinowski (1978) acreditam que a simples descrição dos acontecimentos, sem a convivência com os “nativos” e sem inferências reflexivas, não ajuda na compreensão do comportamento do ser humano na sociedade. Do mesmo modo, o pesquisador não encontrará os rituais, as leis, os costumes e os significados de determinado grupo expressos em manuais ou em cartilhas, já que essas informações estão culturalmente incorporadas nos comportamentos e nos hábitos de cada membro do grupo. Assim, tais informações só poderão ser acessadas por intermédio das relações sociais que o pesquisador mantiver com o grupo, pois seus membros obedecem às ordens socialmente instituídas que, por vezes, não as entendem e não conseguem expressá-las coerentemente (MALINOWSKI, 1978).

Além disso, a ocorrência de um fato permite aos participantes tecer comentários dos mais diversos. Nestes, satisfação, indignação, desconforto, estranheza e demais

sentimentos provocam oposições e complementaridades, capazes de fornecer ao pesquisador maior número de detalhes.

Malinowski (1978) afirma que a coleta de dados referentes a diversos fatos vividos pelo grupo estudado é uma das fases principais da pesquisa de campo. Obrigatoriamente esse levantamento deve ser realizado com todos os fatos que estiverem ao alcance do pesquisador, especificamente com a utilização de um diário de campo. Dessa forma, os fenômenos passam a ser estudados a partir de suas possíveis manifestações concretas.

É importante que a coleta de dados e registro das impressões ocorram desde o início, isto é, a partir dos primeiros contatos com o grupo pesquisado. Isso porque certos fatos que, quando novos, impressionam, deixam de ser notados na medida em que se tornam familiares. Há também outros fatos que só passam a ser percebidos depois de algum tempo, quando já se conhece bem as condições do grupo. Nesse sentido, o diário de campo, redigido sistematicamente no decorrer dos trabalhos é, para Malinowski (1978), o instrumento ideal para a observação direta. Malinowski (1978) nos aponta três unidades para identificarmos os princípios dessa aproximação metodológica. Num primeiro momento, faz-se necessário que o pesquisador possua objetivo científico e esteja ciente das especificidades do método. Em segundo lugar, a imersão do pesquisador no campo deve permitir uma socialização similar a do “nativo”, sem ajuda de “outros brancos”. Finalmente, métodos específicos de coleta devem servir de aporte à observação direta, tais como entrevistas e utilização de recursos audiovisuais, entre outros.

Outra tríade deixada por Malinowski (1978) refere-se aos caminhos distintos e necessários para uma pesquisa de cunho etnográfico atingir seus objetivos. Por um lado, o pesquisador deve mapear os costumes e as leis que regem a vida do grupo estudado, por essa via, a busca é observar o maior número possível de manifestações concretas que constituem o grupo. Por outro lado, é necessário observar e registrar todos os comportamentos do grupo, estranhos ou não ao pesquisador. Igualmente importante é registrar as opiniões, os comentários, as expressões e as palavras dos pesquisados.

Malinowski (1978) acredita que, em conformidade com os conjuntos de premissas acima, é possível que o pesquisador compreenda o ponto de vista dos membros do grupo, o modo com que lidam com os demais e a visão de mundo dessas pessoas. Pois, em cada grupo, em cada cultura, é possível encontrar valores próprios, instituições diferentes e códigos de lei e moralidade. Nelas, as pessoas possuem suas próprias ambições, seus próprios impulsos e desejam diferentes formas de felicidade, pelas quais buscam o próprio interesse vital; que podem premiar as virtudes ou punir os defeitos (MALINOWSKI, 1978).