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Capítulo II – Sistema diacrítico e transcendência

2. Sistema diacrítico e transcendência

2.3. A instituição

Nos cursos que formam A instituição — A passividade (1954-55), Merleau-Ponty amplia as descrições sobre a instituição apresentadas em Sobre a fenomenologia da linguagem, em A linguagem indireta e em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, além de analisar determinados casos nos quais se atesta a passividade do corpo. A concepção de uma espessura temporal das próprias coisas, que talvez ficava ainda

implícita nos textos de 1951 e 1952, é enfim enunciada. O descentramento do processo de manifestação da experiência (isto é, a recusa do idealismo subjetivista) assume-se um empreendimento ontológico; ao contrário das obras iniciais, procura-se fazer uma “metafísica da natureza”.

Certas noções apresentadas nos artigos que antecedem os cursos no Collège de France reaparecem. É o caso da noção de “transgressão intencional”, a qual reaparece como o termo “troca” e “promiscuidade” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 172, 218) e também no comentário das relações eu-outrem: o outro é “instituído-instituinte, isto é, eu me projeto nele e ele em mim, [há] projeção-introjeção, produtividade do que eu faço nele e do ele faz em mim” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 35). A expressividade das formas mudas de expressão — de modo semelhante à forma como ela aparecia nos textos publicados e que englobava também a “inteligência” animal, ou seja, certa “simbólica das manifestações” —, assim como a especificidade da linguagem são retomadas nas descrições da animalidade, da puberdade, da criação artística, do saber teórico e da história pública. As formas de expressão são compreendidas por meio da noção de instituição, a qual se revela como o processo de estabelecimento de sentido e de significações novas.

No comentário da animalidade, Merleau-Ponty argumenta que o instinto não é dado de modo inato, como se todas as suas possibilidades já estivessem adquiridas e predeterminadas. Ao contrário, haveria certa “plasticidade do instinto” em relação ao meio em que o animal está inserido. O abetouro, por exemplo, adota o guarda do zoológico, abandona e caça seus congêneres para o guarda, além de tentar colocá-lo em seu ninho. O que determina a sexualidade, nesse exemplo, é o alter ego, o que significa que a sexualidade desenvolve-se por meio da vida em comum. Nesse sentido, a instituição animal seria retrospectiva e prospectiva. Diferentes estímulos podem suscitar determinados comportamentos, de modo que estes não são pré-determinados inatamente, mas provocados pela situação em que o animal se encontra. A cunhagem de um comportamento (Prägung) não se deve somente a fatores biológicos, mas à situação, “fora dos limites da espécie” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 51). Há, assim, no comportamento animal, um “simbolismo primordial” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 204) ou “originário” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 268), no sentido de que o animal utiliza uma experiência como substituta de outra (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 54). Os animais instituem certos padrões de comportamento por meio dos quais as situações são tratadas. Esses padrões podem sofrer desvios, de maneira que novos usos podem

aparecer. A animalidade estabelece, portanto, dimensões, certa ordenação da experiência (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 38). A espessura temporal do animal seria uma abertura ao futuro que, em seu movimento de superação e conservação, opera substituindo.

No que diz respeito à puberdade, apresenta-se uma especificidade: a instituição humana não apenas ordena fatos ou estabelece dimensões por substituição, mas “integra seu passado na significação nova” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 54; grifo meu). Na fase edipiana, há uma “vontade do impossível”, uma “sexualidade imaginária” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 56), pois a criança não pode possuir o objeto de seu desejo ou ser o seu pai. Na puberdade, essas fantasias são reativadas; contudo, agora há a possibilidade de relação com um objeto que seja objeto, isto é, com alguém fora da família (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 57, 60). As significações da fase anterior são integradas na puberdade e não liquidadas ou substituídas. Há, assim, antecipação e conservação. A questão ou problema da fase pré-madura é centralizada em torno de um novo pólo, estabelece-se um sistema cujos valores são distribuídos de maneira nova (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 60).

Em relação à criação artística, acontece uma retomada de sentido em vista de uma expressão nova. Segundo Merleau-Ponty, cada pintor retoma toda a pintura (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 78). Em face do mundo percebido, sem limites precisos e onde o campo visual se abre sobre outros campos, cada obra surge como uma lacuna que anima a pintura. Cada lacuna ou desvio torna possível um novo esforço criador, e este provoca um novo desvio a ser compensado por outras tentativas (Cf. MERLEAU- PONTY, 2003, p. 79, 86). Assim, cada nova obra se apóia sobre as precedentes e faz aparecer um novo sistema de expressão. Cada pintura é matriz de símbolos diferentes dos seus próprios, de maneira que, ao inquirir uma obra passada, o pintor aprende um novo modo de pintar (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 85). A relação do pintor com a pintura seria assim a de uma racionalidade da “busca” (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 86). As obras antecipam umas às outras e se conservam segundo um mesmo esforço de expressão.

O saber teórico, por sua vez, opera por generalização e maior formalização em relação aos conhecimentos anteriores (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 95). Diante de uma “situação-problema”, determinado elemento do saber anterior é afetado com um sentido novo, no intuito de se preencher a lacuna inicial. Acontece uma troca de estrutura, mas de tal modo que o saber anterior é conservado no novo, integrado a este.

É o que ocorre na relação entre álgebra e aritmética: a álgebra formalizada tem mais sentido que a aritmética, mas ela não a ultrapassa completamente rumo a um saber absoluto, senão que a utiliza em suas formulações. Um novo saber surge como a resolução de um caso privilegiado em uma generalidade maior. Tal troca de estrutura não acontece por subsunção, mas pela “extensão lateral do caso privilegiado” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 95), tal como, na linguagem, uma palavra ou frase descentra a significação usual e indica um sentido inédito (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 90). O que se realiza em cada novo saber é uma “verdade estrutural”, uma nova centralização ou nova perspectiva (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 91). As primeiras idealizações sobre o mundo percebido, isto é, sobre a “luz do concreto” (MERLEAU- PONTY, 2003, p. 94), abriram um campo de significações sempre retomado pelos novos saberes, e tal que estes não deixam de retornar ao concreto (Cf. MERLEAU- PONTY, 2003, p. 94) em vista de atingir uma verdade mais ampla. Assim, um saber não se desenvolve apenas como conseqüência do anterior, mas pela recorrência ao percebido. Como diz Merleau-Ponty, a ciência seria estéril de esquecesse suas origens (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 94). A estrutura formalizada retém a estrutura inicial como aquilo em que se fez a idealização, a sublimação da luz do concreto que ela ultrapassa conservando (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 94). O saber teórico tira sua produtividade da linguagem (do “ser falado”) e esta, do “ser percebido” (MERLEAU- PONTY, 2003, p. 96). Assim como a puberdade se conquista sobre o “terreno do anônimo”, das “‘significações’71 anônimas” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 60, 61), de

forma que estas não são jamais eliminadas, no saber teórico a “ingenuidade perceptiva permanece”, de modo que a “passagem do particular ao universal não termina jamais” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 97).

No que diz respeito à história pública, Merleau-Ponty diferencia dois tipos de sociedade: as que se propõe recuperar a história e as que não possuem tal característica. As primeiras se colocariam a questão de uma sociedade verdadeira, tomando parte no “jogo misterioso que é o de colocar todos os homens na balança” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 122), “de ensaiar a mistura verdadeiramente universal” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 119). Essas sociedades, ao possuírem a idéia de uma recuperação da história

71 O termo “significações”, na expressão “‘significações’ anônimas”, aparece entre aspas porque não se

trata propriamente de significações. Assim o seria se se tratasse de significações lingüísticas. Segundo Merleau-Ponty, há uma diferença entre simbolismo e significações. Estas diriam respeito às formas lingüísticas propriamente humanas, aquelas às formas da animalidade e, parece, também às formas mudas de expressão humanas, como o gesto e a percepção ingênua (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 94).

para si, seriam abertas, colocando em ação um trabalho histórico ilimitado. Elas visariam ao Miteinander ou ao Füreinander (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 122). Ao contrário, as outras sociedades, nas quais a questão da sociedade verdadeira não se coloca, seriam fechadas, não tomando parte no jogo em que todos os homens participariam. Nestas, o espírito da instituição estaria contraído, enquanto que o outro tipo de sociedade seria fiel ao a priori (ou espírito) da instituição. Merleau-Ponty, porém, adverte que as sociedades que não se colocam a questão da sociedade verdadeira não devem ser vistas como inferiores, senão que, sob certas relações, elas podem ser até mesmo mais belas que as outras (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 118, 122).

Nos cursos que formam A instituição — A passividade, Merleau-Ponty faz uso da estrutura diacrítica da linguagem para explicar a produtividade dos casos de instituição. Assim como a fala anima a língua, a escolha de um traço de pincel é como uma “lacuna expressiva” que chama outros traços. A obra é um “mundo com várias entradas” ou lacunas a serem compensadas (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 85, 86). A fala falante descentra as significações usuais e indica novos sentidos que são desvios em relação à significação precedente (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 90). Na instituição do saber acontece a integração do passado, de modo que aquilo que é superado guarda ainda um sentido. Essa produtividade, enquanto superação que conserva ou integração, é a mesma da linguagem, de maneira que assim o homem não apenas simboliza, tal como os animais — adaptação ao meio e substituição de sentidos —, mas significa, pensa, institui “culturas” (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 94). Embora a linguagem possua a especificidade de reintegrar seu passado, de compreendê-lo, as outras modalidades da expressão também operam diacriticamente, enquanto um sentido é uma lacuna ou desvio que chama outras tomadas. A instituição, portanto, encontra sua estrutura no sistema opositivo dos signos: “a instituição é a recentração (...) em torno de um novo pólo, [o] estabelecimento de um sistema de distribuição de valores ou de significações, sistema que é praticado como o sistema de uma língua (princípios de discriminação)” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 60).

Além da retomada do sistema diacrítico, oferece-se uma reapresentação da espessura temporal. Nos cursos dos anos de 1954-55 aparece a ideia de uma temporalidade do mundo, da qual o corpo fenomenal emergiria ou eclodiria (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 172, 173, 254). Na introdução a esses cursos, Merleau- Ponty afirma o seguinte: “Com [a noção de um] sujeito do campo de presença, renovação [da concepção] do tempo” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 35). A noção do

sujeito do campo de presença é forjada para retomar a tarefa de superação do idealismo, tanto o da filosofia clássica como aquele ainda presente na Fenomenologia da percepção. Desde que agora as coisas, os animais, enfim, o mundo possuem uma espessura temporal, um simbolismo, nota-se que a atividade subjetiva na constituição da experiência é novamente negada, mas também que o papel do corpo na configuração da experiência é reduzido. Na Fenomenologia da percepção, a temporalidade era inserida no mundo quando um corpo nascia, eram as equivalências corporais e seu impulso de “ir além” os fatores que inauguravam a experiência; havia um nomenclaturismo na articulação entre linguagem e vivido, e um idealismo subjetivista no nível dos movimentos anônimos do corpo, o que reduzia o ser àquilo que pode ser apreendido pelas capacidades corporais. Nos cursos de Merleau-Ponty no Collège de France, o corpo e a subjetividade deixam de ser os “titulares dos objetos intencionais” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 102) em nome da efetiva inserção em uma situação que eles não constituem. A “transgressão intencional” ou a “troca” mostra que um objeto exige tanto o meu assentimento como o dos outros, de forma que o mundo percebido é o mesmo para todos os sujeitos e não o “objeto intencional imanente” de uma consciência ou tal que ele se realiza graças aos poderes exclusivos do corpo (como ainda acontecia na Fenomenologia da percepção). Não há uma pluralidade de vistas incompossíveis diante de um mundo inteiramente objetivo, mas intersubjetividade, isto é, a visada que os outros tem sobre os objetos nega a que eu tenho, negação que me ensina a existência de outrem. Por isso, “nós existimos füreinander” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 103), como “transgressão intencional”, instituição, temporalidade. A espessura temporal das próprias coisas revela que a consciência não constitui a situação na qual ela nasce e que os esquemas corporais são passivos em relação a um sistema diacrítico, que sua perspectiva é uma reconstituição expressiva desse sistema, embora o corpo também possua uma atividade.

Na segunda parte dos cursos, a noção de passividade surge para completar as análises dos casos de instituição. Por meio da descrição do sono, do sonho, do inconsciente e da memória, Merleau-Ponty procura reforçar o argumento segundo o qual a experiência não é constituída pela consciência, e sim por uma transcendência ou espessura temporal na/da qual o sujeito psico-físico (corpo) emerge.

No documento LINGUAGEM, TEMPO E DESEJO EM MERLEAU-PONTY (páginas 95-100)