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Capítulo II – Sistema diacrítico e transcendência

2. Sistema diacrítico e transcendência

2.4. A passividade

Ao tratar do sonho e do sono, Merleau-Ponty procura distanciar-se das concepções de Sartre. Segundo este, o sono é um afastamento do mundo, a atividade livre da consciência imageante. Por meio desse afastamento, o sono e o sonho (Sartre não os teria distinguido) não fariam mais referência ao mundo percebido (MERLEAU- PONTY, 2003, p. 194). A eloqüência do imaginário far-se-ia, assim, em um vazio ou em significações puras. Apesar dessa primeira diferença entre sono e percepção, para Sartre, contudo, dormir e velar seriam homogêneos: “dormir como velar é ter consciência de alguma coisa, com simples diferença na estrutura hilética: adequação em um caso, inadequação em outro” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 195). Embora em Sartre haja uma diferença entre consciência vazia e consciência plena, tanto a vigília como o sono e o sonho seriam atividades da consciência. Todavia, pergunta-se Merleau- Ponty, se o sono é o sonho, uma atividade que se realiza na ausência do mundo, na pura significação, então como o sonhador poderia acordar, ou como um estímulo do mundo poderia despertá-lo? Ao contrário, Merleau-Ponty argumenta que o sujeito, quando dorme, não se fecha em significações puras, senão que continua situado. O mundo continua a existir à distância, como “presente-ausente” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 196) e o corpo mostra-se como o lugar em que se realiza uma diferenciação dos sistemas discriminativos (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 197). O drama individual continua no sonho, embora de modo reduzido. Isso acontece porque a relação do corpo com as coisas se dá segundo duas variáveis ou duas modalidades de campo ou ainda segundo uma distinção estrutural e não hilética. A vigília se oferece como um optimum em relação ao qual o sonho é certa “obstrução” ou “fechamento” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 196). O sonho, portanto, não se passa em puras significações, mas é uma redução da plenitude da relação com o mundo percebido. Ao dormir, o sujeito não deixa de estar no mundo, de modo que o sonho “dá satisfação” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 197) de sua inserção em um campo de presença. O corpo continua ligado ao mundo, ele respira, por exemplo, de forma que um estímulo externo pode despertá-lo. Nesse sentido, diz Merleau-Ponty: “o sonho não é o sono, mas o compromisso do sono com a vigília” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 197). No campo onírico empregam-se analogon que “evocam” ou “ecoam” o ser real (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 196, 198, 204). A passagem ao sonho é passagem a um funcionamento parcial da máquina de significar, do aparelho de viver (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 199). “A negação do mundo no sono é também um maneira de mantê-lo”, a “consciência dormente” joga com fragmentos do passado e do presente (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 268). Há um

“simbolismo onírico” que não é realizado ativamente pela consciência, mas pela temporalidade, pelas Abschattungen que não cessam seja na vigília seja no sono.

No que diz respeito ao inconsciente, Merleau-Ponty defende que não se trata de um segundo sujeito que conheceria a verdade das vivências do sujeito consciente, um segundo eu-mesmo que pensaria com clareza as experiências de que o sujeito só teria a aparência (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 211). Ao supor um segundo sujeito, Freud tornou o inconsciente explícito para esse segundo eu-mesmo, de forma que o inconsciente foi suprimido. Para dissolver essa duplicação, Merleau-Ponty apresenta o inconsciente como consciência perceptiva. Esta “é tanto impercepção como percepção” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 212). A percepção realiza uma tomada expressiva em face das coisas; contudo, uma tomada não abarca todos os elementos do campo sensível, de modo que ela é também uma não-percepção dos elementos que ela não atinge em sua visada. A percepção seria assim a “concreção” de um campo de experiência “muito mais amplo”, uma “vibração do mundo”; o percebido seria “o que falta ao mundo para ser total” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 217). Desde que a percepção envolve a não- percepção, o inconsciente pode ser entendido como a “sedimentação da vida perceptiva” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 213), como simbolismo pré-objetivo que pode conduzir e generalizar uma história pessoal (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 212). Se a atividade perceptiva é sedimentação, isto é, “esquecimento e possibilidade de reativação” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 213), o inconsciente, enquanto matriz simbólica cristalizada, pode operar “contra o [teor] do real” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 213). Haveria uma generalidade (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 231) do campo de existência (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 198), uma passividade por meio da qual o inconsciente, enquanto simbolismo sedimentado, pode interferir e até conduzir um drama individual. O inconsciente, portanto, enquanto opera por meio de uma “lógica de implicação e de promiscuidade” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 269), é consciência perceptiva.

Continuando sua análise dos casos de passividade, Merleau-Ponty analisa a memória. Esta não é fornecida pela operação sintética de um segundo sujeito, que ligaria as vivências passadas às do presente, pois tal operação transforma o passado em verdade objetiva. Dessa forma, o inconsciente contém as lembranças e a análise presente diz a verdade do passado. O presente constitui o passado ao transportá-lo à verdade objetiva (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 249, 251). A memória torna-se desse modo consciência do passado e este, representação (MERLEAU-PONTY, 2003, p.

252). Ao contrário, Merleau-Ponty argumenta que o passado é um poder do corpo. O passado é uma “polarização” do poder do corpo, “uma potência [do] corpo já empregada” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 254). Isso acontece porque o corpo possui uma espessura temporal, a qual permite que o passado seja integrado ao momento presente como uma maneira de existir que passou: “o odor chama um modo de existência (...) e nos faz existir ao mesmo tempo outrora e agora” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 255). O movimento corporal opera em uma atmosfera de generalidade, de modo que uma situação atual procura ser completada por uma “norma”, “típica” ou “mundo adequado” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 254, 255): uma fadiga pode recolocar o sujeito no nível das fadigas da infância (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 255, 276). Dessa maneira, uma postura corporal “significa uma certa espessura do tempo escoado” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 255). A presença carnal da temporalidade faz com que o tempo seja lido nos esquemas corporais, de modo que, graças a um acasalamento temporal, o corpo passado e o corpo presente são a explicitação um do outro (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 254, 255). O tempo está incorporado no corpo (Cf. MERLEAU-PONTY, 2003, p. 256). Cada esquema postural “detém e desenha uma série de posições e de possibilidades temporais” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 270). A generalidade estrutural da percepção a cada momento pode ligar uma situação atual a uma passada. A memória, assim, não é uma atividade da consciência, mas a passividade do corpo.

No documento LINGUAGEM, TEMPO E DESEJO EM MERLEAU-PONTY (páginas 100-103)