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A instrumentalização judicial dos Operados de Direito

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1.2. A rede de saúde mental no estado do Tocantins e os significados construídos

1.2.1. Como os Operadores do Direito significam a Política de Saúde Mental para o

1.2.1.2. A instrumentalização judicial dos Operados de Direito

Uma vez que os Operadores do Direito significam a atenção psiquiátrica tradicional de internação como sendo a prática mais eficaz e que o acesso aos serviços são difíceis devido ao número insuficiente de oferta, a consequência direta é o uso do “poder da caneta” para o cumprimento da lei. As estratégias autoritárias das internações involuntárias e compulsórias são utilizadas pelos Operadores do Direito sob o discurso do cuidado ou do acolhimento às demandas familiares.

Os Operadores do Direito, diante da inexistência de serviços públicos de atenção à saúde mental para o adolescente, acabam judicializando o atendimento com uso dos mecanismos de internações compulsórias, como forma de obrigar o Estado a se responsabilizar pela atenção ao adolescente dependente químico e custear o tratamento, no caso a internação.

A seguinte fala reforça essa análise.

A gente tinha muita dificuldade do Estado assumir esse tratamento. Agora o Conselho [Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas] tem dado esse apoio, a Secretaria [Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos] também está mais empenhada em tratar. Agora também

tem a rede pública de saúde que poderia fazer esse tratamento mais emergencial quando a situação exige. Também o número de leitos é muito pequeno para a quantidade de usuários que ocasionalmente precisa. Então, [...] a gente se depara sempre com

- 64 - química, dependência alcoólica, assim, doenças graves, tudo isso... a gente consegue, mas a custo de muito esforço, com medidas

drásticas para fazer a coisa funcionar (Janete, juíza).

As “medidas drásticas” expostas pela juíza e o apoio do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas, reconhecido por ela, são exemplos de que o recurso da judicialização da saúde mental no estado do Tocantins tem sido utilizado com frequência. No que se refere a essa judicialização, vale fazer uma reflexão sobre a contradição que emerge em nossa sociedade quando se estabelecem políticas democráticas em um espaço social marcado pelas relações de poder, no qual, diante da dificuldade de universalizar uma ideia, as concepções mais singulares, cujos sentidos são construídos subjetivamente, acabam prevalecendo. Assim, no caso da saúde mental tocantinense, judicializar a atenção significa basicamente utilizar-se das internações compulsórias, já que o significado de tratamento eficaz para os Operadores do Direito é de que ele ocorre com a internação, e não nos CAPSad.

Essa reflexão é importante quando nos remetemos aos processos de judicialização que têm ocorrido com frequência em todos os âmbitos sociais. Essa “intromissão” do Estado (Juizado, Promotoria, Defensoria) na vida privada das pessoas, embora possa significar a forma encontrada para garantir o acesso ao atendimento necessário, acaba por produzir uma subjugação dos sujeitos a um poder que sofre influência não apenas das condições objetivas da falta de serviços disponíveis, mas também das condições subjetivas de quem julga. Ou seja, pode-se incorrer no risco de que a atenção demandada não seja referenciada apenas pelo olhar de quem necessita, como, por exemplo, os usuários e suas famílias, mas também, e principalmente, por quem tem o poder de fazer cumprir.

Esse olhar do outro sobre a vida privada de alguém, em uma sociedade que sofre fortemente a influência de uma saúde comercializada e de uma prática histórica de políticas higienistas, pode impor ao sujeito que necessita de atendimento em saúde mental uma condição diversa daquela que lhe é de direito. Principalmente, se retomarmos a história da atenção dada a quem está com sofrimento psíquico, a condição que poderá lhe ser imposta recairá na perspectiva da normalização e das políticas de “limpeza social”.

Dessa forma, a judicialização, que tem de início, na sociedade democrática, a finalidade de exigir que os direitos sejam garantidos com base na coletividade e na universalidade, acaba por reproduzir práticas que podem, ao contrário, extirpar os

- 65 - direitos das pessoas. Isso ocorre, principalmente, quando é uma política pública não consolidada, se considerarmos os quatro eixos propostos por Amarante (2001) – político-jurídico, técnico-assistencial, teórico-conceitual e sociocultural. Amarante (2001) argumenta que, para a efetivação da Reforma Psiquiátrica, os eixos teórico- conceitual e sociocultural ainda precisam ser transformados. Incluímos, neste estudo, mais um eixo: o subjetivo. Argumentamos que, quando não há a transformação dos quatro eixos na implementação de uma política pública, condição necessária para sua consolidação, o eixo subjetivo prevalece. No entanto é um eixo subjetivo ainda não transformado, arraigado e impregnado de ideologias disseminadas pelos poderes externos hegemônicos.

Defendemos que a prevalência do eixo subjetivo em uma política pública é o principal indicador de que ela ainda não se consolidou, uma vez que não está direcionada ao coletivo, mas a grupos específicos ou a indivíduos.

Os significados construídos por esses importantes atores sociais, os representantes dos Operadores do Direito, indicam o quão vulnerável a política da Reforma Psiquiátrica ainda se encontra no Brasil e os riscos que ela incorre de retroceder nos avanços já estabelecidos e ceder à prática institucionalizante. A institucionalização ainda insiste em se manter, principalmente na rede privada, com o apoio dos Operadores do Direito, que buscam garantir o acesso aos serviços à população mais empobrecida, sob o discurso do cuidado.

As seguintes falas exemplificam essa análise.

A gente tem que correr atrás dessas coisas, não é? A internação tem custos e a gente tem que... Agora o Conselho Estadual sobre

Drogas tem arcado com as despesas do tratamento. Isso tem ajudado bastante. Porque o grande problema é esse: a pessoa, na maioria das vezes, em função da miséria mesmo em que vive, acaba se envolvendo com a droga e aí para tratar não tem recursos, a família

não tem como custear (Janete, juíza).

Quantos pais chegam aqui: doutora, prende meu filho porque senão

ele vai matar alguém ou vai morrer, faz alguma coisa, ele está usando droga, ele está vendendo, ele está traficando, ele leva tudo lá

de casa, ele está me ameaçando. Isso é quase todo dia que acontece. Então que sociedade é essa? [...] E isso está muito relacionado às drogas, por isso aí entra a questão da saúde mental [...]. Quantos

hospitais psiquiátricos fecharam nos últimos anos? E agora não se tem vagas para pôr esses doentes (Abadia promotora).

- 66 - Esses significados parecem ser construídos com base no modelo das políticas higienistas, fundadas na lógica da higiene mental. Esse modelo transformou o usuário de drogas em um “novo louco” ou em um criminoso, principalmente aquele usuário que é pobre ou que comete ato infracional, que necessita de atendimento, mas “não se tem vagas para pôr esses doentes”.

Dessa forma, para pensar a atenção à saúde mental do usuário de drogas, a sociedade, de um modo geral, acabou dividindo sua compreensão sobre como deve ser feita a intervenção e as formas de atenção passaram a se distinguir de acordo com a classe social dos sujeitos que tinham necessidades de saúde decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Embasada nesse modelo social excludente, a atenção destinada aos dependentes ricos serão as clínicas psiquiátricas particulares, ou, no caso do envolvimento com o tráfico, o pagamento de um advogado para defendê-los; aos dependentes pobres destinam-se a intervenção autoritária do Estado, como forma de garantir acesso ao tratamento obrigatório, para que não sejam inseridos nos serviços “utópicos” de Atenção Psicossocial. As falas apresentadas anteriormente representam bem essas significações.

Por outro lado, as falas evidenciam contradições que demarcam que as estratégias de internação para o tratamento, embora sejam as mais acionadas por esse grupo de participantes, não possuem significados consolidados de que sejam eficientes. Segundo eles, o tratamento deve interferir no contexto de vida das pessoas, como está expresso na seguinte fala:

A internação só vai fazer sentido se for para mexer no livre arbítrio dessa pessoa, para ele conseguir deixar de usar [a droga]. Por isso [...]

tem várias estatísticas aí que mostram que a internação não é a solução, por quê? Porque não atinge a pessoa, ela sai e volta para as drogas, tem a recaída e volta para as clínicas. Por quê? Porque não

modifica o modo de vida delas. Se não modificar o modus vivendi, ela vai continuar usando drogas (Abadia, promotora).

Pelo exemplo acima, podemos argumentar que, apesar da evidência de que o tratamento que tem sido buscado pelos Operadores do Direito seja o tradicional, de internação, há uma compreensão por parte desses atores de que a “internação não é a solução”. Essa compreensão expressa a contradição, já que se reconhece que o tratamento “não atinge a pessoa, ela sai e volta para as drogas”, mas ainda assim é a medida acionada pelos Operadores do Direito.

- 67 - Acreditar que a “internação não é a solução” poderia ser um significado que provocasse novas estratégias a serem utilizadas pelos Operadores do Direito, como, por exemplo, acionar os CAPSad ou exigir a criação desses serviços. Mas, como não conseguem atribuir aos serviços psicossociais significados de que são eficazes, acabam permanecendo na defesa da lógica de institucionalização e reproduzindo as práticas de políticas higienistas.

Não há reconhecimento de que o tratamento ofertado pelos CAPSad é adequado. Ao contrário, algumas falas, inclusive, ressaltam as dúvidas que pairam sobre essa modalidade de atenção e sobre sua potencialidade em intervir na vida do usuário dependente.

A fala que se segue exemplifica essas dúvidas sobre a efetividade da Atenção Psicossocial ofertada pelos CAPSad.

Aqui tem o CAPS, mas o CAPS tem deixado muito a desejar. Eu acho que assim... já avançou, não dá para desmerecer a estrutura, dizer que não funciona, mas ainda é bem precária, deixa muito a desejar. [...] Os espaços de atendimento são reduzidos e muitas vezes mal estruturados [...]. O atendimento é demorado para começar e acaba não tendo continuidade, como seria necessário. A grande maioria

das vezes o adolescente abandona o tratamento e não é feito nada para resgatar esse paciente, porque a tendência do tratamento ambulatorial mesmo é o paciente se evadir (Janete, juíza).

É bastante clara a contradição que perpassa a compreensão sobre a efetividade do tratamento ofertado pelo CAPS entre os Operadores do Direito. Na modalidade de Atenção Psicossocial, o usuário circula livremente pelo seu espaço social, não fica enclausurado em uma instituição e tem a autonomia de se envolver, ou não, na proposta de atendimento. O relato anterior evidencia que essa autonomia e livre circulação são significadas como fatores que contribuem para a não adesão do usuário ao tratamento. Assim, a Atenção Psicossocial significa atendimento ineficaz, já que o usuário tende a se “evadir” e o serviço não faz “nada para resgatar o paciente”.

Ao mesmo tempo, essa fala realça as deficiências do atendimento psicossocial do CAPS que tem sido ofertado aos adolescentes no Tocantins, já que indicam que o atendimento é demorado para começar e acaba não tendo continuidade. A pesquisa documental reforçou essa análise, pois verificamos que, dos 19 adolescentes usuários vinculados ao CAPSad, na época da pesquisa, apenas quatro estavam no serviço há mais de seis meses e tinham frequência assídua ou compatível com a sua modalidade de

- 68 - atenção na unidade (semi-intensivo, não intensivo ou intensivo). O restante ou estava no início do tratamento na unidade ou não tinha muitos registros de atendimento. A maioria constava apenas o registro do primeiro atendimento, indicando que talvez o adolescente já tivesse abandonado o tratamento, apesar de ainda estar sendo considerado ativo pela unidade. Ao entrar em contato com as famílias, ficou claro que muitos dos adolescentes já não frequentavam mais o CAPSad III de Palmas.

O Quadro 7 apresenta a relação entre o número de adolescentes e o tempo de permanência no CAPSad de Palmas, no momento da coleta das informações em documentos.

Quadro 7 – Número de adolescentes vinculados ao CAPSad e tempo de permanência na unidade

Quantidade de adolescentes ativos

Período de vinculação no CAPSad até a data da pesquisa

1 10 dias 4 1 mês 2 2 meses 3 4 meses 5 5 meses 2 8 meses 1 9 meses 1 1 ano e 9 meses

Total de adolescentes 19 adolescentes

Fonte: dados extraídos da pesquisa documental (análise de prontuários), realizada em novembro de 2012.

Essas informações evidenciam que a adesão dos adolescentes ao tratamento ofertado na modalidade psicossocial tem sido baixa, sua frequência não é assídua. Além disso, as buscas ativas, que deveriam ser feitas pelos profissionais do CAPSad, não estão ocorrendo de forma efetiva, já que a maioria dos adolescentes com prontuários ativos na unidade está no serviço há menos de seis meses (um total de 15, dos 19 adolescentes) e há poucos registros em seus prontuários. Muitas vezes, os registros se resumem a um único atendimento, o atendimento do médico, e não há nenhum registro de busca ativa realizada pela equipe do CAPSad.

A principal diretriz política da Atenção Psicossocial é o cuidado do usuário em seu ambiente social. O que requer empenho do serviço para além dos cuidados no interior da unidade, que possibilite construção de uma rede comunitária de apoio, realização de busca ativa do usuário que abandona e sua vinculação a um projeto terapêutico individualizado, que projete o adolescente para diversas atividades que extrapolem os cuidados unicamente médicos.

- 69 - No entanto as falas destacadas anteriormente, associadas aos resultados da pesquisa documental, demonstram que essas estratégias não estão sendo utilizadas de forma eficaz e têm gerado, por parte dos Operadores do Direito e da sociedade em geral (já que as próprias famílias solicitam a internação), uma busca por métodos tradicionais de tratamento, em contraposição à proposta política de desinstitucionalização. Essa prática impossibilita ao adolescente permanecer em seu contexto social e produzir novos sentidos e significados à sua vida e ao seu envolvimento com o crack, o álcool e outras drogas.

Tendo compreendido como os Operadores do Direito no Tocantins significam a política da Reforma Psiquiátrica e como esses significados têm influenciado as práticas profissionais, apresentamos a seguir quais são os significados construídos entre o outro grupo de participantes desta pesquisa: o grupo que representa os Profissionais Executores das políticas de desinstitucionalização (psicólogos das unidades de atendimento e professores universitários).

1.2.2. Como os Profissionais Executores significam a Política de Saúde Mental

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