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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3. A Integralidade nas ações e serviços de saúde

Como dito anteriormente, acredita-se que a construção da integralidade da assistência em saúde representa um dos grandes desafios no processo de implementação do SUS. De acordo com a Lei 8.080, de 1990, a integralidade se configura em um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (PINHEIRO, 2009, p. 256).

De acordo com Mattos (2006, p.44), pode-se identificar três conjuntos de sentidos para integralidade. O primeiro sentido seria, a integralidade como um traço

da boa medicina. Para o autor, este conjunto de sentidos

(...) relaciona-se com um movimento que ficou conhecido como medicina integral. Suas origens remontam às discussões sobre o ensino médico nos Estados Unidos. Em linhas gerais, a medicina integral criticava o fato de os médicos adotarem diante de seus pacientes uma atitude cada vez mais fragmentária. Inseridos num sistema que privilegiava as especialidades médicas, construídas em torno de diversos aparelhos ou sistemas anátomo-fisiológicos, os médicos tendiam a recortar analiticamente seus pacientes, atentando tão-somente para os aspectos ligados ao funcionamento do sistema ou aparelho no qual se especializaram. Isso significava ao mesmo tempo a impossibilidade de apreender as necessidades mais abrangentes de seus pacientes. Além de fragmentária, aquela atitude freqüentemente adotada por médicos era vista como reducionista, pois o conhecimento médico nas diversas especialidades ressaltava as dimensões exclusivamente biológicas, em detrimento das considerações psicológicas e sociais.

Dessa forma, a integralidade como um traço da boa medicina, responderia ao sofrimento do paciente, que ao procurar o serviço de saúde teria um atendimento não reducionista ao seu sistema biológico, uma vez que a integralidade pressupõe um encontro ou acolhida onde a atitude do médico, por meio da conversa, busca identificar demandas relacionadas à saúde não se limitando somente àquelas explícitas. Nesse conjunto de sentidos, há também a preocupação do profissional com o uso das técnicas de prevenção, de modo a criar um comportamento adequado do consumo de bens e serviços de saúde.

O segundo conjunto de sentidos para integralidade, segundo Mattos (2006, p.52), é a integralidade como modo de organizar as práticas. Para ele, este conjunto de sentidos está relacionado

mais diretamente com a organização dos serviços e das práticas de saúde. A criação, na década de setenta, do antigo Sistema Nacional de Saúde (SNS), consolidou uma antiga divisão entre as instituições responsáveis pela saúde pública e pela assistência médica — a primeira era pensada como sendo da alçada do Ministério da Saúde, enquanto a segunda ficava na alçada do Ministério da Previdência Social. Uma das razões para tal dissociação era o reconhecimento de que as necessidades das práticas de saúde pública e das práticas assistenciais eram bastante distintas. As últimas eram demandadas diretamente pela população, enquanto as primeiras eram apreendidas inicialmente pelos técnicos. Do ponto de vista da formulação de políticas e propostas de ação, parecia aos defensores do antigo SNS que seria melhor dispor de um corpo de técnicos diferenciado para tratar de cada um desses tipos de necessidade de serviços de saúde. Assim, os técnicos da Previdência deveriam processar a demanda por atendimento médico, buscando viabilizar seu atendimento. Já os técnicos do Ministério da Saúde deveriam identificar aquelas necessidades mais típicas da saúde pública, não diretamente demandadas pela população, e organizar propostas de intervenção. Estas, seguindo uma tradição secular, eram pensadas de modo centralizado: isto é, os técnicos do Ministério da Saúde definiam as estratégias de enfrentamento de um problema de saúde pública e elaboravam normas sobre as atividades que deveriam ser empreendidas. Tais atividades eram executadas em serviços de saúde pública, e não no conjunto de serviços públicos de saúde.

Nesse segundo conjunto de sentidos para integralidade, seria necessária, como afirma Pinheiro (2009, p. 256), “uma certa ‘horizontalização’ dos programas anteriormente verticais, desenhados pelo Ministério da Saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde. ” Dessa forma, a articulação entre a demanda programada e a demanda espontânea, seria uma estratégia para se aplicar protocolos de diagnóstico e identificar situações de risco para a saúde, além de possibilitar o desenvolvimento de atividades coletivas de saúde junto à comunidade.

O terceiro conjunto de sentidos de acordo com Mattos (2006, p.57) é, a

integralidade e políticas especiais, que destaca que o mesmo

(...) é relativo às configurações de certas políticas específicas, chamadas aqui de políticas especiais. São políticas especificamente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem um certo grupo populacional. Poderíamos falar que esse terceiro conjunto de sentidos da integralidade trata de atributos das respostas governamentais a certos problemas de saúde, ou às necessidades de certos grupos específicos.

Nesse processo, a integralidade é constituída como ato em saúde, no dia a dia, vivenciado pelos sujeitos atores (profissionais e gestores) nos serviços de saúde. Diante desta concepção é possível destacar experiências de práticas em saúde transformadoras na vida das pessoas que buscam cuidados. Tais práticas criativas e eficientes de cuidado em saúde, construídas por iniciativas municipais e estaduais, ultrapassam os modelos pensados para sua efetivação.

Tais experiências favorecem o repensar no que diz respeito aos processos de trabalho, da gestão, do planejamento, além de propiciar a construção de novos saberes e práticas em saúde. Dessa forma, as experiências de integralidade apresentam conceitos, definições e noções numa perspectiva mais ampliada em relação a definição legal, podendo ser reconhecida como uma ação social, resultado da interação democrática entre os atores no cotidiano de suas práticas, na oferta do cuidado de saúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema.

Segundo Pinheiro (2009, p. 258), a integralidade pode ser reconhecida como meio de concretizar o direito à saúde e a considera fundamental:

eixo prioritário de uma política de saúde, ou seja como meio de concretizar a saúde como uma questão de cidadania, significa compreender sua operacionalização a partir de dois movimentos recíprocos a serem desenvolvidos pelos sujeitos implicados nos processos organizativos em saúde: a superação de obstáculos e a implantação de inovações no cotidiano dos serviços de saúde, nas relações entre os níveis de gestão do SUS e nas relações destes com a sociedade.

Para a autora, os dois movimentos citados anteriormente, constituem as principais ligações da integralidade como meio de concretizar o direito à saúde da população, do qual surgem questões consideradas importantes para sua apropriação conceitual e prática no campo da saúde coletiva.

Ainda segundo Pinheiro (2009, p. 259), é necessário ter atenção para três dimensões que constituem a integralidade como meio para efetivar o direito à saúde: “a organização dos serviços, os conhecimentos e práticas de trabalhadores de saúde e as políticas governamentais com participação da população”.

Outro aspecto a ser considerado, segundo Pinheiro (2009), é a integralidade produtora da cidadania do cuidado. Este aspecto da integralidade refere-se ao “ato de cuidar integral que tem as práticas de saúde como eixos políticos-organizativos,

formas de construir inovações e novas tecnologias de atenção aos usuários no SUS” (PINHEIRO, 2009, p. 260).

Na integralidade o usuário é considerado como sujeito a ser atendido e respeitado em suas demandas e necessidades. A percepção da integralidade se dá por meio da resolução das demandas do trabalho, da equipe e dos serviços de saúde, que acontece com a realização de discussões permanentes, de capacitações, com a utilização de protocolos e reorganização dos serviços. Como exemplo, é possível destacar o acolhimento ao usuário baseado no compartilhamento da gestão do cuidado que acontece por meio da participação do usuário nas decisões sobre a saúde que se deseja obter. O acolhimento é visto, segundo Pinheiro (2009) como a estratégia para sondar processos intermediários que constroem relações nas práticas de saúde. Ele busca a produção da responsabilização clínica e sanitária e a intervenção resolutiva, além de reconhecer que, sem o acolhimento e vínculo, não há responsabilização (FRANCO et. al, 1999 apud PINHEIRO, 2009). Pode-se dizer então, sobre a concepção da integralidade como uma construção coletiva, que se constitui no “espaço de encontro dos diferentes sujeitos implicados na produção do cuidado em saúde” (PINHEIRO, 2009, p.262).

Ao refletir sobre a luta pela equidade e pela integralidade, Cecílio (2006, p. 113), também afirma a necessidade de repensar aspectos importantes da organização do processo de trabalho, da gestão e planejamento e da construção de novos saberes e práticas em saúde. O autor faz suas análises a partir das necessidades de saúde. Tais necessidades seriam o centro de intervenções e práticas, e ajudariam, potencialmente, os trabalhadores/equipes/serviços/rede de serviços a fazer uma melhor escuta daqueles que buscam cuidados em saúde. Ainda segundo o autor, o desafio seria conseguirmos fazer uma conceituação de necessidades de saúde que pudesse ser apropriada e implementada pelos trabalhadores de saúde nos seus cotidianos.

Cecilio (2006) trabalha com a ideia de que “as necessidades de saúde poderiam ser apreendidas em uma taxonomia organizada em quatro grandes conjuntos de necessidades” (CECILIO e MATSUMOTO, 1999 apud CECILIO, 2006, p. 114).

Ele afirma que o primeiro conjunto, diz respeito a se ter “boas condições de

vida”, como o ambiente, que determina o processo saúde/doença; como também os

sociedades capitalistas, que explicam bem sobre os modos de adoecimento e morte dos mesmos. Além de aspectos como o acesso à água tratada, as condições de moradia e aos hábitos pessoais.

O segundo conjunto de necessidades de saúde que constitui a taxonomia destaca a necessidade de se ter acesso e se poder consumir toda tecnologia de saúde32 capaz de melhorar e prolongar a vida.

Considerando os conceitos de tecnologias duras33, leve-duras34 e leves35 (MERHY, 1997, p.16), aqui é preciso abandonar qualquer intensão de hierarquizar estas tecnologias.

32 Para Emerson Elias Merhy e Laura Camargo Macruz Feuerwerkerno, no encontro entre o médico e

o usuário, este profissional de saúde utiliza “caixas de tecnológicas” para agir nesse processo de interseção. Ferramentas tecnológicas, como saberes e seus desdobramentos materiais e imateriais, que fazem sentido de acordo com o lugar que ocupam nesse encontro e conforme as finalidades que almeja. Seriam três tipos de caixas de ferramentas: uma vinculada à propedêutica e aos procedimentos (diagnósticos e terapêuticos), outra aos saberes e outra às relações trabalhador-usuário, cada uma delas expressando processos produtivos singulares implicados em certos tipos de produtos. Disponível em URL: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-25.pdf Acesso em: 22 junho de 2015.

33 De acordo com Emerson Elias Merhy e Laura Camargo Macruz Feuerwerkerno (1997), a primeira

caixa de ferramentas é a que permite manusear o estetoscópio, o endoscópio e outros equipamentos que possibilitam perscrutar, acessar dados físicos, exames laboratoriais e imagens, necessários para alimentar o raciocínio clínico e também todos os outros equipamentos e medicamentos utilizados nas intervenções terapêuticas. Esses processos consomem trabalho morto (das máquinas) e trabalho vivo de seus operadores. A essas chamamos tecnologias duras. Disponível em URL: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-25.pdf Acesso em: 22 junho de 2015.

34 Segundo os mesmos autores, a segunda caixa de ferramentas permite processar o olhar do médico

sobre o usuário, como objeto de sua intervenção, em um processo de apreensão de seu mundo e de suas necessidades a partir de um certo ponto de vista. Esse olhar é construído a partir de certos saberes bem definidos, como a clínica, a epidemiologia (trabalho morto, pois produzido anteriormente), mas no momento concreto do agir do médico, mediante seu trabalho vivo em ato, em sua interação com o usuário (imprevisto, singular), há uma mediação imposta - pela incerteza e pela situação específica – ao raciocínio clínico do médico. Esse é sempre um território de tensão entre a dureza do olhar armado e do pensamento estruturado e a leveza exigida pelo usuário. É a partir deste terreno que os produtos da primeira caixa de ferramentas ganham significados como atos de saúde. E como não há um só modo de realizar o ato clínico, pode predominar a dureza (e os processos mais estruturados) ou pode predominar a leveza (e os processos mais maleáveis, mais permeáveis). Às tecnologias operantes nesse território chamamos tecnologias leve-duras. Disponível em URL: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-25.pdf Acesso em: 22 junho de 2015.

35 Para os autores citados anteriormente, a terceira caixa de ferramentas é a que permite a produção

de relações envolvidas no encontro trabalhador-usuário mediante a escuta, o interesse, a construção de vínculos, de confiança; é a que possibilita mais precisamente captar a singularidade, o contexto, o universo cultural, os modos específicos de viver determinadas situações por parte do usuário, enriquecendo e ampliando o raciocínio clínico do médico. Os processos produtivos nesse espaço só se realizam em ato e nas intercessões entre médico e usuário. É nesse território que a ética do exercício profissional e os saberes sobre a relação médico-paciente adquirem importância, evidenciando a relevância do trabalho vivo do médico nesse momento. É também neste território – das relações, do encontro, de trabalho vivo em ato – que o usuário tem maiores possibilidades de atuar, de interagir, de imprimir sua marca, de também afetar. Às tecnologias envolvidas na produção desse encontro chamamos leves. Disponível em URL: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos- 25.pdf Acesso em: 22 junho de 2015.

Cecilio (2006, p. 115) trabalha ainda “com a ideia de que o valor de uso que assume cada tecnologia de saúde é sempre definida a partir da necessidade de cada pessoa, em cada singular momento que vive”.

Ele aponta ainda para um terceiro conjunto de necessidades que diz respeito “à insubstituível criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou um profissional – vínculo enquanto referência e relação de confiança, algo como o rosto ‘sistema’ de saúde para o usuário” (CECILIO, 2006, p. 115). De acordo com o autor, vínculo enquanto referência e relação de confiança, o estabelecimento de uma relação contínua no tempo, pessoal e intransferível.

O quarto conjunto de necessidades está relacionado “à necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de levar a vida” (CECILIO, 2001, p. 115). Para que o indivíduo construa essa autonomia, é necessária informação e educação em saúde. Dessa forma, cada sujeito reconstrói os sentidos de sua própria vida, favorecendo mudanças na busca da satisfação de suas necessidades.

Nessa perspectiva, segundo Pinheiro e Luz (2003) apud Viana (2012, p. 34),

vale ressaltar que a integralidade se consolida a partir da organização dos processos de trabalho e depende de outros fatores para sua materialização, tais como, a criação de vínculos entre usuários e trabalhadores e a construção da autonomia da pessoa que busca o serviço de saúde para o atendimento de suas demandas e a satisfação de suas necessidades.

Pelo exposto, pode-se afirmar que a integralidade deve ser o resultado da articulação das ações e serviços de saúde e deve ser concebida no espaço singular do mesmo, a partir do diálogo e da ação de cada profissional de saúde e de seus usuários.

Ressalta-se que a integralidade deve ser reconhecida como um princípio de organização das redes de cuidado, a partir da atenção básica, da assistência à saúde e da relação entre o trabalho na Unidade e os demais níveis do Sistema.