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CAPÍTULO I A constituição Pastor aeternus do Concílio Vaticano I

1.3. O texto da Pastor aeternus

1.3.4. A intenção dos Padres de manter-se na tradição

Ainda que a constituição dogmática tenha definido o primado e autoridade do papa de modo conscientemente unilateral, é da máxima importância para sua compreensão perceber que o Concílio tinha a intenção de manter-se dentro da tradição antiga e universal da Igreja, o que é repetido diversas vezes no próprio texto da constituição: “segundo a fé antiga e constante da Igreja universal”80;

apoiados nos testemunhos manifestos da Sagrada Escritura e seguindo os decretos formais e evidentes tanto dos Romanos Pontífices, nossos predecessores, como dos Concílio gerais81.

A constituição chega, inclusive, a citar explicitamente, ao se referir ao magistério infalível do Romano Pontífice, o modelo do primeiro milênio: “o comprova e o declaram os concílios ecumênicos, em primeiro lugar daqueles em que o Oriente se reunia com o Ocidente em união de fé e de caridade”82.

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“Verum etiam supremi muneris docendi et gubernandi universam ecclesiam episcopi expertes non sunt.

Illud enim ligandi atque solvendi pontificium, quod Petro soli datum est, collegio quoque apostolorum suo tamen capiti coniuncto, tributum esse constat, protestante Domino: Amen dico vobis, quaecumque

alligaveritis super terram etc. Quapropter inde ab ecclesia primordiis oecumenicorum conciliorum decreta et

statuta iure merito tanquam Dei sententiam et Spiritus Sancti placita summa veneratione et pari obsequio a fidelibus suscepta sunt” (M 53, 310B-C).

80 PA prólogo (DHü 3052). 81 PA 3 (DHü 3059). 82 PA 4 (DHü 3065).

Em coerência com esta tradição, o Concílio afirmou que “a Igreja Romana, por disposição divina, possui o primado do poder ordinário sobre todas as outras” 83 e que este

primado é como causa e explicação do primado do Romano Pontífice:

Mesmo se a continuidade com a tradição antiga aqui afirmada seja problemática /.../ o concílio, em todo caso, colocará sua definição no âmbito e sob a norma da tradição universal e, de modo explícito sob a tradição do primeiro milênio. Isso se mostra igualmente no fato da Deputação da fé afirmar de modo explícito a autoridade plena e suprema do colégio dos bispos e dos concílios. Assim, a correlação entre primado e episcopado, tal como foi vivida e ensinada nos séculos antigos, permanece em vigor e representa um corretivo crítico em relação ao caráter unilateral da definição do Vaticano I. Portanto, de modo implícito, o concílio reconhece também a pluralidade de formas possíveis de realização do primado, no passado e no futuro84.

Deve-se, pois, analisar estes fundamentos apresentados pela Pastor aeternus, Sagradas Escrituras, Santos Padres e documentos conciliares, para averiguar se a compreensão do primado pontifício como monarquia absoluta é compatível e necessária à teologia do múnus primacial apresentado pelo concílio Vaticano I. Esta será a tarefa do segundo capítulo do presente trabalho.

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PA 3 (COD 813-814). Ver ainda PA 2: “foi sempre necessário que a esta Igreja Romana, ‘por causa de sua mais forte principalidade, se unisse toda a Igreja, isto é, todos os fiéis que há e donde quer que sejam’, a fim de que nessa Sé, da qual emanam todos ‘os direitos da veneranda comunhão’, unidos como membros à cabeça, se juntassem na articulação de um só corpo” (COD 813). Acerca da complexa relação entre a sede e

o sedens no caso da Igreja romana, ver GOYARROLA BELDA, Ramón. Iglesia de Roma y ministerio

petrino. Estudio sobre el sujeto del primado (sedes o sedens) en la literatura teológica postconciliar. Roma:

Edizioni Università Santa Croce, 2002. 84

CAPÍTULO II

Os fundamentos da Pastor aeternus.

O estudo dos fundamentos da Pastor aeternus deve começar pela Escritura Sagrada, a fim de verificar se é compatível com a mesma a ideia de um primado pontifício entendido como monarquia absoluta. Isso primeiramente porque, como foi dito os Padres conciliares, ao definirem o dogma de 1870, tinham intenção de ater-se aos “testemunhos das sagradas Escrituras”85, que reconheciam como regra da fé e uma das fontes da Revelação.

Mas as Escrituras não são o único fundamento da Pastor aeternus. Em Aula conciliar, nas observações ao primitivo esquema De Eccl. XI, Karl Joseph von Hefele, arcebispo de Rottenburg e professor de História da Igreja e Patrística, após concordar com a validade da argumentação bíblica apresentada, afirmou a necessidade da demonstração histórico-patrística:

Pois é próprio da nossa Igreja, em tudo que se refere ao dogma, ilustrar também com argumentos tomados da tradição, e considerar não suficiente o método meramente escriturístico dos protestantes. Vejo como plenamente necessária, especialmente ao nosso tempo, a demonstração histórica do primado, que corresponde à tradição. Já

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ouvimos muitos de nossos conterrâneos dizerem: “Vossos argumentos bíblicos para o primado são o que são; mas interroguemos os Padres”. Por isso, certamente, importa para muitos demonstrar, com argumentos históricos, que já no primeiro século da Igreja e por todo tempo posterior, o primado do Romano pontífice vigorava e era conhecido na Igreja86.

Os textos patrísticos foram igualmente considerados fundamentais pelos Padres conciliares, pelo que devem ser objeto de nossa análise. Por fim, explicitamente citados na Pastor aeternus, também os concílios ecumênicos foram acolhidos como fundamento das declarações do Vaticano I, devendo receber o presente trabalho uma igual atenção.

Seguindo essa ordem, este segundo capítulo analisará os textos bíblicos utilizados no Concílio Vaticano I como fundamentação escriturística, seguida do estudo de outras passagens nas quais o Novo Testamento apresenta o exercício da autoridade pelo apóstolo Pedro. A seguir serão analisados os textos patrísticos e conciliares, divididos em duas partes, correspondentes ao primeiro e ao segundo milênio. A parte correspondente ao primeiro milênio será, por sua vez, dividida em três etapas cronológicas: o período anterior à consolidação do primado romano, o período correspondente aos primórdios do primado romano e o período de sua consolidação. A parte referente ao segundo milênio, após uma análise da inflação do primado ocorrida nesse período, apresentará os concílios ecumênicos em ordem cronológica.